Por AIRTON PASCHOA*
Comentário sobre filme de Sérgio Bianchi
Logo no início, o filme Cronicamente Inviável, dirigido por Sérgio Bianchi (2000), revela seu princípio de construção. Na intervenção do diretor, quando se refazem duas cenas, para torná-las “mais adaptadas à realidade”, ganha corpo e voz a lei poética que passará a reger os diversos quadros dessa estrutura episódica. Antes de refazê-las, de adaptá-las mais à realidade, numa alusão provavelmente que ela — a realidade — é mais perversa que a ficção, ou que a ficção não logra alcançar sua crueldade, antes de exibir, enfim, cenas mais realistas, com os mendigos sendo proibidos de comer restos de comida e de dar de ombros a madame ao esquecer o pagamento da faxineira, um ruído de choque de veículo anuncia a reelaboração ficcional, antecipando uma resolução frequente do filme, pela violência, a qual examinaremos mais adiante.
Esse princípio de construção irrompe ainda em mais dois momentos, quando nova intervenção in off declara — depois de mostrá-la em sua “verdadeira infância”, submetida ao trabalho escravo na produção de carvão no Centro-oeste — que “inventar outro passado para Amanda não chegaria nem a ser uma mentira”, e logo a vemos, a “sofisticada gerente do restaurante do Luís”, em pleno idílio com a natureza, no mundo encantado do mato virgem e de nossas mais caras lendas, penteada carinhosamente pela mãe, colhendo e comendo caju, tomando banho de cachoeira…
Em outro momento, a mesma voz in off complementa, no mesmo sentido, que “inventar outra profissão para Amanda não chega nem a ser uma mentira, da mesma forma que não foi uma mentira inventar seu passado bucólico”, e passamos — após apreciá-la cuidando carinhosamente dos seus negócios, isto é, engordando-os, literalmente, na ala infantil de algum hospital, — passamos a acompanhá-la em entrevista, adentrando novo ramo, um “Centro Profissionalizante p/ Índios”. Em lugar de comerciar carne tenra, a flagramos desta vez a agenciar nativos em ONG financiada por banco holandês…
Se atentarmos porém às alternativas ficcionais que nos propõe essa lei poética (proibir ou não proibir mendigos de comer restos de comida; sentir ou não sentir remorso por esquecer o dinheiro da empregada; ser criança carvoeira ou ser criança feliz; traficar órgãos infantis ou agenciar índios), notaremos que não constituem propriamente alternativas. Ora melhorando, ora piorando a primeira realidade ficcional, mas não a mudando substancialmente, alterando-a portanto mais ou menos, as alternativas integram uma espécie de sistema de equivalência geral, no qual as coisas são mais ou menos iguais, se equivalem em alguma medida, assim ou assado, — um sistema pois em que tudo vale mais ou menos tudo e nada muda radicalmente nada, e que põe no mesmo plano, numa variação de escala que apenas repete a invariabilidade de resultados, tanto o mais quanto o menos criminoso.
A esse princípio de construção poético, que regula o universo fictício do filme, podemos dar o nome de lei de equivalência geral, — uma lei que organiza fundo os vários planos do mundo que cria. É a mesma lei, por sinal, que permite compreender a “psicologia”, digamos, instável de uma personagem como Maria Alice, oscilando exasperada entre o cinismo, a caridade e a crueldade, num mesmo continuum por vezes, como a sua primeira intervenção, a qual abre o filme.
Mas haveria mesmo diferença entre sentimentos tão díspares? Noutra sequência, ao exibi-la divertindo-se macabramente com crianças se matando por brinquedos, que ela mesma dera de presente a duas das iscas, aprendemos que a filantropia pode ser uma forma de crueldade.
Não é ainda outra lei que justifica admitir, sem crise de verossimilhança, que um intelectual de esquerda, preocupado com “formas de dominação autoritária”, autor de um livro de combate, Brasil Ilegal, e de repercussão, discutido em programa de tevê, que este mesmo intelectual militante trafique órgãos de crianças para completar o orçamento doméstico. Assim tanto faz se escrevem livros ou se desmancham criancinhas, pois, no fundo, no fundo, são formas de violência, do corpo ou da realidade, física ou intelectual, pouco importa.
Mas por que pouco importa? por que tanto faz? por que tudo mais ou menos se equivale? Exatamente por isso. Porque a violência reponta como denominador comum, como uma espécie de equivalente geral, apto a resolver todas as equações que arma o filme. Dito de outro modo, a lei de equivalência geral tem também sua moeda corrente, que regula todas as trocas sociais: a violência.
Em violência se resolvem muitos quadros do filme, direta ou indiretamente. Assim, fazendeiros e sem-terra se equivalem pela violência; como pela violência se equivalem mãe apanhando de filho e adolescente assaltante apanhando de populares e paramilitares. A violência do patrão, que come e cospe, equivale à dos assaltantes, que o fazem cagar de medo. Assaltar não tem graça, o divertido é humilhar… Se não se bate na patroa, bate-se no mais próximo, na empregada, e namorada. Se não se bate no passageiro “civilizado”, que reclama segurança, bate-se o táxi. Quando crianças de rua não se matam por brinquedos, resolvendo diretamente um quadro, são mortas por atropelamentos, os quais resolvem indiretamente duas cenas de tensão no restaurante grã-fino (uma discussão envolvendo o garçom, a negra e a judia, e outra, quase ao final do filme, entre Maria Alice e Luís, sobre fugir ou não fugir do país; na hora do brinde a Nova Iorque, em vez de vidros tilintando, ouvimos o barulho de vidros de carro estilhaçando, em novo atropelamento).
No “retrato falado” do Brasil, levado a cabo pelo intelectual progressista em suas andanças a serviço, se assiste amiúde a quadros de violência: são índios, foliões, adolescentes de rua, todos devidamente apanhando da polícia. Isto, quando não é a própria natureza violentada, e a violência ganha então foros de atributo essencial do Homem, e não mais apenas do brasileiro e seu “conhecido espírito de extermínio”, atingindo as raias da Ontologia (Homem, teu nome é destruição!), como na sequência da queimada e da devastação ecológica na Amazônia.
Pela violência, a experiência fundamental do filme, passam praticamente todas as figuras centrais: Alice apanha do filho; Josilene, do amante (Osvaldo); Carlos é vítima do taxista; Adam, do patrão; este, por sua vez, é agredido pelos assaltantes.
Não bastasse sua presença em sentido estrito, pululam ainda no filme suas mais variadas formas, como a violência verbal, nas discussões de trânsito, de rua; a violência virtual, nos famélicos sob a alça de mira (policial?); a violência sexual (a aula de putaria, ministrada por Jair a Adam); a violência de classe (a aula de pregar botão, ministrada por Carlos à empregada; a aula de pôr mesa, ministrada por Amanda ao garçom; a aula de terrorismo… “sem violência”, psicológico? ministrada por Adam a trabalhadores embasbacados; a aula de legalismo, ministrada a uma plateia pasma pela segunda madame do atropelamento; sem contar a teoria do trambique nacional, defendida por Carlos, e a de Luís, para reduzir em dois terços a “contradição social”, baixando de três para um o número de refeições por dia).
O que resulta dessa lei de equivalência geral, e dessa violência generalizada? Resulta, para além de uma estrutura episódica, fragmentada, a que poderíamos subtrair ou acrescer quadros indefinidamente, uma estrutura por assim dizer paralítica. E isto por várias razões: paralítica porque não ocorre propriamente progressão dramatúrgica (nas situações vividas, de pouco desenvolvimento, e resolvidas rapidamente, brutalmente quase, em lances de violência, é como se tudo passasse mas não transcorresse); paralítica porque estamos nós, espectadores extraídos em média dos mesmos estratos sociais, submetidos sistematicamente à paralisia do choque; paralítica ainda porque predomina o sentimento de sem-saída, de impotência ante um mundo fechado e sufocado, ordenado pelo crime e para o crime.
Não precisa dizer quão sombrio sai o retrato do país, tingido dum negativismo total, radical, absoluto. Sem invalidar seu diagnóstico, e prognóstico, que assim não dá pé mesmo, interessa-nos agora procurar especificar um pouco a posição social do legislador (legista?) desse universo ficcional – entendendo por isso, convém deixar claro, não a pessoa do diretor, nem a de seus colaboradores, mas aquela instância narrativa que estrutura um certo olhar do filme.
Felizmente ambicioso, querendo dar conta do estado nosso, retratá-lo imparcialmente de norte a sul, de leste a oeste, Cronicamente Inviável mobiliza, para tanto, uma multiplicidade de discursos, de enfoques, os quais defrontam ferozmente entre si, conformando uma verdadeira praça de guerra: o discurso sem-terra; o discurso proprietário; o discurso indígena; o discurso civilizado ou civilizador (pelo intelectual de esquerda); o discurso multiculturalista; o discurso regionalista ou separatista; o discurso neoliberal (executiva do Banco Central); o discurso das minorias ou do politicamente correto; o discurso das ONGs; o discurso legalista (da segunda madame do atropelamento); o discurso “alienado-religioso” (da sem-teto) etc. O mote de todos eles — a famigerada desigualdade social brasileira, ou o país em situação socialmente trágica.
Como o filme porém traz um núcleo de figuras centrais (menos personagens e mais tipos sociais talvez, reconhecíveis pela fala), predomina, porque recorrente, certo discurso, por assim dizer hegemônico, proferido — com a tradicional grossura da nossa gente fina,[1]numa encenação já evidentemente crítica — à mesa de restaurante elegante de São Paulo, o “restaurante do Luís”. Que fazer? nada? alguma coisa?
Dentro do clubinho, formado por pequenos empresários, Luís e Carlos, cínicos e indiferentes, reproduzem, com perdão do sociologismo vulgar, o discurso de nossos estratos médios “globalizados”, e que, reproduzindo, por sua vez, a visão de nossas elites desterritorializadas, não vê saída senão pelo aeroporto, rumo a Nova Iorque, onde “a violência é mais civilizada”. Esse ponto de vista “globalizado”, requentando a tese da inviabilidade nacional por razões raciais e/ou culturais, é como que ilustrado pelo périplo de Alfredo pelo país ilegal, cujo “retrato falado” apenas acentua seu círculo vicioso (o rosto?) de miséria e violência.
Em oposição ao discurso vitorioso, sobressai apenas o de Adam, dado que Amanda sempre cala, Valdir e Ceará saem de fininho (quando a patronal gerente surge de repente no vestiário dos funcionários para esculhambar Adam, sempre atrasado e relapso) e Josilene, como boa “escrava”, ofende mas defende a patroa ato contínuo, quando a vê ameaçada pelo namorado. Quanto ao discurso do garçom “terrorista”, como considerar de fato alternativo um discurso que prega a revolução em hora de rush, em ônibus superlotado, e na primeira oportunidade baixa… a guarda, digamos, aos encantos do patrão? ou que prega o terror… sem violência?
Não havendo oposição consistente ao ponto de vista hegemônico, talvez uma leve diferença em seu interior nos permita vislumbrar o ponto de vista que organiza o filme, sua posição social.
Graças a suas oscilações, sua exasperação, seus espasmos, sua histeria, Maria Alice funciona como uma espécie de pêndulo nervoso, ameaçando ir de um polo ao outro do espectro ideológico das nossas camadas médias, ora se aproximando, ora se afastando do dominante, ora aderindo a ele, ora o negando. Visto que o “fazer alguma coisa” da personagem se trai por si só, por não ultrapassar a caridade com as crianças de rua ou a amabilidade com seus motoboys, Maria Alice não avança até o polo contrário, mais crítico.
Não avança mas abre caminho. Quem o faz, quem avança por essa brecha, é o filme, condenando o discurso internamente hegemônico, cínico ou compassivo, de nossa classe média “globalizada”, — admiravelmente exposta aliás em suas entranhas nauseabundas, — aquela que está conectada (uma palavra chave) ao alto padrão de consumo do Primeiro Mundo; aquela, viajada e esclarecida, cacoetada de marxismos, que conhece na carne as mazelas da periferia e reconhece no corpo as benesses do centro, e na qual se incluem tantos artistas e intelectuais nossos; aquela classe média, enfim, que aprendeu a apreciar as delícias da Civilização do Capital, com suas prateleiras abarrotadas de bens, materiais, culturais, tanto faz, e cujo sonho, no fundo, no fundo, é consumir em paz.
À semelhança dos outros pontos de vista mobilizados, encenados todos criticamente, quando não satirizados, a leve fratura no interior do clubinho, meio cindido entre o cínico e o compassivo, que se autodestroem mutuamente à mesa do restaurante, é igualmente desclassificada. Vale dizer, o filme expõe mas não esposa o ponto de vista internamente hegemônico.
Mesmo mantendo-se dentro do campo de visão das classes médias, em sua desconfiança extrema de pontos de vista “extremistas”, sejam positivadores, via “globalizados”, sejam negadores, via organizações populares e/ou socialistas, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), o enfoque do filme se desloca do polo vencedor, desqualificando-o também em sua versão filantropa, ao polo oposto, como que fazendo coro com frações médias urbanas e radicalizadas, embora avessas a radicalismos, daquelas que tanto fizeram (e fazem) falta à nossa história, e cujo anseio mais profundo, quase inconsciente, ecoa certa mudança dentro da ordem, democrática, social-democrática, capaz de varrer das ruas a miséria nacional, autenticamente social-democrata, à europeia, referência sempre obrigatória – uma posição social não muito dissonante, em moldura nacional, de certo petismo (aliás, o hegemônico).
Para uma contraprova, basta continuar um pouco o filme. No quadro final, espécie de documentário encenado, ou encenação documental, com tipos e fala autênticos, o discurso da mãe sem-teto lobriga para o filho um futuro de “grande homem”. Sarcasmo à parte (futuro aos sem-futuro?!), e desconsiderando que já nem sabemos o que significa isso numa sociedade de massas (“grande homem” sem criado de quarto!?), podemos traduzir o anseio maternal por “doutor”, em termos nacionais, ou senhoriais, termo obviamente conservador, mas ajustado, na visão do filme, à mentalidade passiva, senzalesca, própria do lúmpen e seus afins, os trabalhadores e serviçais, rurais ou urbanos, sempre boquiabertos ante instruções que mal compreendem, manipulados que são por lideranças criminosas e ignorantes, pois as eventualmente legítimas não aguentam e caem fora (relembremos a “companheira” que discute com o “capataz” dos sem-terra e sai esbravejando que “trabalhador é diferente de escravo”).
O olhar conservador dirigido aos de baixo não implica contudo conservadorismo absoluto. Na perspectiva do filme, não mais do lúmpen visto por ele, não é o “doutor” que desponta, este também sob suspeição (recordemos a aula de legalismo da segunda madame do atropelamento, e a breve mas contundente lição legalista de outra madame, certamente doutora também, ao motorista de ônibus: “se me encostar um dedo, eu acabo com tua vidinha de nordestino burro!”).
No seu horizonte de estratos médios urbanos radicalizados, o qual, como se viu, desautoriza — sem exceção — um a um os tipos sociais acionados (os “globalizados”, cínicos ou compassivos; os trabalhadores, bocós, quando não revoltados e ressentidos; os intelectuais, impotentes e vendidos; os sem-nada, sem futuro, senão como alvo de fuzil, e por aí vai), o “grande homem” não ficaria longe do ser abrigado das necessidades mais elementares, do “homem comum”, por assim dizer, com seus direitos básicos resguardados (até quando, sabe Deus, ou o Capital…), conforme o bê-á-bá da cartilha social-democrata, de cuja justeza humana, a propósito, ninguém, de sã consciência, discordaria, nem sequer os donos da vida… não fossem os malditos constrangimentos do mercado! Numa palavra, sua concepção de homem não estaria longe do “cidadão”, em linguagem mais progressista e universal (ou ocidental).
O sentimento de impotência, de sem-saída, que dá na encenação nervosa, exasperada, inconformada, quiçá desesperançada, e que o quadro final ameaça melancolizar, com relembrar os milhões de vidas desperdiçadas, praticamente natimortas, sem futuro humano à vista, a curto prazo, pelo menos, — deriva da constatação que o homem brasileiro está muito aquém do “cidadão comum”, da certeza talvez que a urgência da nossa tragédia social, do nosso drama nacional, não sofrerá solução (se for o caso) em compasso idêntico.
Para rematar, não podemos senão saudar este filme formidando, endoscopia ofuscante que é dos movimentos ideológicos intestinos de nossas classes médias, debatendo-se convulsionadas ante o séquito de horrores que põe em cena nossa odiosa desigualdade social. Da encenação memorável desse enfoque hegemônico, mas fraturado, Cronicamente Inviável retira sua força explosiva, nela residindo sua grande novidade — sua novidade e seu limite.
*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de A vida dos pinguins (Nankin, 2014)
Publicado originalmente na Revista USP n.º 49, mar/abr/mai/2001 sob o título “A classe média vai ao inferno”
Referência
Cronicamente inviável
Brasil, 2000, 101 minutos
Direção: Sérgio Bianchi
Elenco: Betty Gofman; Cecil Thiré; Daniel Dantas; Dira Paes; Umberto Magnani
Nota
[1] A ironia zombeteira pertence a Antonio Candido.