Por LUIZ RECAMÁN*
Comentário sobre uma coletânea de textos da arquiteta Lina Bo Bardi
Os textos reunidos em Lina por escrito possibilitam uma reflexão sobre a atuação de Lina Bo Bardi como arquiteta, e, principalmente, que se recolham pistas da relação direta e vital entre essa atuação e o país que ela escolheu para viver. De pouco proveito seria aí tentar buscar pensamento rigoroso, reflexões originais. Diferentemente dos outros arquitetos de sua geração, Lina economiza sentenças, é direta e não procura agradar. Para ela, não existe teoria, apenas recursos intelectuais para enfrentar e transformar as coisas.
À primeira vista, o livro pode ser incluído na voga em certa medida nostálgica que impulsiona as publicações sobre as palavras e as obras de importantes arquitetos brasileiros do século XX. E nem sempre escapam de certo edulcoramento que procura resgatar soluções alijadas de seu forte conteúdo histórico (ainda que quase sempre revestidas de rigor historiográfico, pesquisa acadêmica etc.).
Mas, neste caso, o tiro pode sair pela culatra. A sequência dos textos, década a década, não permite uma exegese, nem conformam uma base “teórica” articulada. Aparecem frases e conceitos que são pontas de icebergs conceituais que a autora mobiliza, em sínteses precisas e que transitam por temas atuais (de arquitetura e pensamento social), sempre renovados a cada fase.
Seus textos, os melhores, são um mar repleto desses icebergs, que compõem um coerente trajeto. Coerente não porque retilíneo, mas porque movente, respondendo às vicissitudes da história recente do país, jamais separada da orquestração global. Lina constrói uma consistente resposta arquitetônica e cultural que vai se transformando para manter sua potência: em águas calmas, turvas ou revoltas. E tal resposta é, sim, original e do melhor calibre, considerados os anos de nossa modernização social e sua crise.
Vinda da Itália em 1946, desiludida com os retrocessos da nova coalizão política, trouxe consigo os debates que começavam a emergir nesse país, e que deflagrariam grandes mudanças na cultura arquitetônica europeia na década de 1950. A jovem Lina era uma militante das novas causas do organicismo (via Bruno Zevi) e do neo-realismo italiano. São seus textos mais ingênuos (escritos na Itália ainda), que demonstram como a discípula interpretava essas novas posições.
Em resumo: a nova articulação da arquitetura com a paisagem e com a cidade, e a aproximação do repertório moderno com as tradições populares, tanto do edifício como do mobiliário. O inimigo comum: o novo academicismo moderno, herdeiro do formalismo racionalista. A jovem politizada estendia essa crítica a todo “idealismo”, na defesa intransigente da forte ligação entre pensamento e as formas concretas da experiência humana.
Retenha-se: essa expansão do pensamento arquitetônico acrescenta uma dimensão cultural programaticamente obliterada pela radicalidade funcionalista anterior. Uma nova semântica deveria ser inventada a partir das novas tecnologias e das formas artesanais populares (nesse momento, no contexto cultural europeu).
Nada mais deslocado, à primeira vista, da emergente arquitetura moderna brasileira, que nesse momento já voava com suas próprias asas, depois de aprendida a lição corbusiana. Mas dois fatores puderam construir uma nova articulação estética: o descompasso comum de Itália e Brasil em relação ao capitalismo avançado, e a relação entre vanguarda e cultura popular do modernismo brasileiro. Claro, ambos os aspectos são conjunturais, e podem ser reconstruídos ao sabor das circunstâncias. Interessa-nos, rapidamente, esse segundo.
O elo com uma tradição cultural fora estabelecido, numa linha que passa por Mário de Andrade e Lúcio Costa. Em arquitetura, assistimos, do início dos anos 1930 até os anos 1950 (com o projeto de Brasília), uma progressiva simplificação da “tradição”: da sobriedade da arquitetura civil de feição lusa, da desenvoltura do barroco religioso, culminando na exuberância da paisagem e dos corpos.
É evidente que esse não era o “popular” reivindicado por Lina para um novo realinhamento moderno. Mas ela vale-se da tradição colonial evocada (quando Lúcio Costa aproxima a racionalidade despojada da casa colonial à célula corbusiana) para iniciar uma nova abordagem que não encontrava respaldo entre nós: a cultura popular não do passado, mas do presente, na tradição rural ou das populações pobres das cidades, principalmente do Nordeste.
Nenhuma idealização ou arqueologia, mas pesquisa antropológica e contato com uma cultura que resistia bravamente à degradação industrial e à indústria cultural. Sem ter logrado transformar-se em artesanato, como a cultura popular europeia mediterrânea, a cultura brasileira mantinha ativa sua genética antimercadoria e, paradoxalmente, uma vocação de rusticidade necessária a uma nova e moderna concepção de tecnologia “humanizada”.
Essa posição que evoluiu de um “neorrealismo” inicial para uma síntese entre modernidade e primitivismo seguiu criticamente o processo de modernização econômica brasileira, do pós-guerra à “década perdida” (anos 1980). Uma retomada da síntese da vanguarda do início do século, reelaborada a partir da experiência do nazifascismo e da crise da “Razão”. Ou seja, avessa a qualquer idealização “metafísica”. Essa perspectiva chega ao auge na experiência na Bahia, onde ajudou a formar uma geração que iria transformar a cultura brasileira nos anos 1960.
Mas é constantemente renovada, com grande coerência política, a partir dos desdobramentos do golpe de 1964, do fechamento do regime nos anos 1970 e na redemocratização. Sem poder indicar, nos textos do livro, com a necessária acuidade, o movimento de sua posição constantemente aggiornata em relação à luta de classes em versão local (e sempre inserida na ordem mundial), podemos recorrer ao momento mais crucial (até então) desse processo: o projeto para o SESC Fábrica Pompéia, inaugurado em 1982.
A agressividade da devastação cultural e social promovida pela reorganização capitalista em padrões neoliberais, a crise nacional de caráter político e econômico, a aparente desorganização do “popular”, culminaram com uma nova estratégia de arquitetura e projeto, decorrente das apostas anteriores: a apreensão de um sentido (cultural) urbano e operário, técnico (projeto e construção a partir de um saber operário) e momento “pós-industrial”.
Seu mais importante projeto, só possível a partir desses pressupostos “radicais”, indicava um caminho que a arquitetura brasileira não pudera percorrer, nem alcançaria mais, a partir do “desmanche”. Com um passado, futuro e “popular” idealizados, a cultura arquitetônica moderna no Brasil não pôde captar a própria realidade sócio-urbana, tendo historicamente elaborado suas formas em polo inverso.
No final dos anos 1970, Lina apostava em certa autonomia das massas, que estavam se reorganizando nesse momento, principalmente na cidade de São Paulo. Sua aposta era correta, ainda que conheçamos hoje parcialmente seus desdobramentos.
*Luiz Recamán é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Autor, entre outros livros, de Vilanova Artigas: Habitação e cidade na modernização Brasileira (Unicamp).
Referência
Lina Bo Bardi. Lina por escrito. Organização: Silvana Rubino e Marina Grinover. São Paulo, Cosac Naify, 208 págs.