Por SCOTT GILBERT*
Mais especialistas estão, agora, debatendo se Trump é um fascista, se o que estamos assistindo agora é fascismo, se é, de fato, o momento de usar a palavra com inicial F
Eu só fui saber que minha mãe e Anne Frank eram colegas de infância quando eu trouxe para casa o Diário de Anne Frank, na sétima série. Naquele dia, minha mãe me mostrou uma foto de sua infância com ela, sua prima Ellen, e Anne e Margot Frank.
Foi um raro vislumbre do passado de minha mãe. Ela nunca conversou sobre crescer na Alemanha e na Holanda ocupada, sobre a guerra, sobre viver escondida, sobre o Holocausto. Ela recusou-se a falar alemão até conosco, seus dois filhos.
Mais tarde eu descobri que, em 1960, minha mãe tornou-se a primeira pessoa de sua geração a processar o governo Alemão demandando reparações. Seu advogado foi Robert Kempner, que sobreviveu a um campo Nazista e tornou-se conselheiro-chefe assistente dos Estado Unidos durante o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. O julgamento arrastou-se por catorze anos antes do caso ser rejeitado por falta de fundos legais. Apenas depois de sua morte eu pude ler as transcrições descrevendo suas cicatrizes físicas e psicológicas e pude começar a entender por que ela nunca saía de casa, mesmo quando eu ganhava prêmios no colégio.
Alguns argumentaram que o povo Alemão não sabia ou entendia o que acontecia ao seu redor. Pode ser que isso seja verdade, apesar de que os sinais estavam lá desde o princípio. Havia, essencialmente, uma recusa a ver o que acontecia em sua frente, e um fracasso de liderança moral em momentos-chave quando o regime poderia ter sido interrompido. Diferentes facções políticas — comunistas, socialistas, a União Judaica, o movimento trabalhista — falharam em trabalhar de forma conjunta para por fim ao programa nazista de “Tornar a Alemanha Toda Novamente” por mais que todos eles, em certa medida, reconhecessem o perigo. Eles não perceberam que chegaria um momento em que a porta seria violentamente fechada contra qualquer chance de impedi-lo.
Hoje assistimos à mesma espiral de eventos sob o programa “Torne a América Grande Novamente” de Donald Trump — programa de ódio e intolerância, rasgando as normas do estado de direito enquanto crianças como Darlyn Cristabel Cordova-Valle morrem em campos de concentração na fronteira ou enquanto manifestantes são assassinados nas ruas de Kenosha, WI, pela auto-proclamada milícia nacionalista branca. Tudo isso avançou de maneira significativa nos últimos meses: Trump negando a ciência da pandemia enquanto 181.000 pessoas morriam; grupos federais paramilitares sem insígnias perseguindo manifestantes em vans não identificadas, e forças similares se disseminando para outras cidades; manobras para sabotar ou cancelar o núcleo da democracia: as eleições.
Mais especialistas estão, agora, debatendo se Trump é um fascista, se o que estamos assistindo agora é fascismo, se é, de fato, o momento de usar a palavra com inicial F. Especialistas políticos dizem que Trump está performando fascismo, usando táticas fascistas, agindo como um ditador, ou acenando à sua base, mas ainda se recusam a dizer abertamente que Trump é um fascista ou a chamar o regime que ele montou de fascista. Alguns dizem que isso não é fascismo porque ainda temos um Estado bi-partidário; porque a Gestapo não está batendo na porta de todos; porque ainda há algum semblante de liberdade; porque Trump não começou uma nova guerra, apesar de suas ameaças belicosas.
Se esse é o critério para rotular um regime de fascista, então os nazistas também não eram fascistas quando eles chegaram ao poder. Mas eles eram. Você não pode julgar se um regime é fascista por seus retrocessos ou pelo que ele ainda não fez. Você olha para o que Trump fez. Você olha para o que ele disse e promete fazer. Você olha para os objetivos de seu regime e para a direção que ele nos está levando.
Logo antes de sua morte, minha mãe foi entrevistada pela fundação Shoah de Steven Spielberg. Ela descreveu o avanço — uma mudança da lei e um decreto aqui e ali; de repente ela não podia mais ir à sua padaria preferida. Depois, ela assistiu ao diretor de sua escola levar um tiro por recusar-se a hastear a bandeira nazista. Então, chegou o dia em que ela não podia mais ver sua amiga Anne Frank.
Eu penso em minha mãe e em Anne Frank à mesa de jantar, com nossa família, celebrando o sucesso de seus netos se o povo alemão tivesse expulsado os nazistas antes que fosse tarde demais.
Por que é tão importante dizer que é fascismo? Porque se nós, enquanto povo, reconhecermos abertamente a terrível verdade, nós então poderemos começar a agir para impedir que esse regime fascista assuma seu poder antes que seja tarde demais. Se o povo alemão tivesse sabido o que sabemos, e tivesse tido a chance de remover Hitler e o partido nazista com protestos firmes e não-violentos, eles não deveriam tê-la aproveitado? Eles não deveriam ter se recusado a aceitar o que já estava acontecendo?
Essa é a questão à qual nos confrontamos agora. Se não somos capazes de assumir a verdade, esse não é um debate mas um chamado ao delírio em massa. Quantas Anne Frank ou Darlyn Cristabel Cordova-Valles ou Joseph Rosenbaums estaremos permitindo, quantas vidas estaremos sacrificando, se não rompermos com a ilusão imediatamente?
*Scott Gilbert é médico e ativista da organização RefuseFascism.org.
Tradução: Daniel Pavan
Publicado originalmente no portal CounterPunch.