O mundo segundo Joe Biden

Imagem: Anselmo Pessoa
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE G. DE B. FIGUEIREDO*

As ideias sobre política internacional do candidato democrata à presidência dos EUA

A pandemia de covid-19 nos Estados Unidos, somada ao negacionismo de Donald Trump, já havia atrapalhado o que despontava ser uma provável reeleição. Trump minimizou o risco da doença, colocou-se contra medidas de isolamento social e viu, com isso, seu país atingir a marca de 7 milhões de infectados e mais de 200 mil mortes. Agora, a contaminação do próprio presidente lança mais uma nuvem de incerteza sobre o resultado das eleições, a serem realizadas no próximo mês. Conforme as pesquisas mais recentes, Joe Biden é o favorito.

Não obstante, nos Estados Unidos, analistas fazem indagação semelhante à que fizemos aqui, em 2018, sobre o atentado contra Bolsonaro: Trump conseguirá tornar sua doença uma arma eleitoral eficaz? E, em outro sentido, Biden sobe nas pesquisas porque um Trump contaminado é a materialização do fracasso de um governo de extrema direita? São questões que se confirmarão nas urnas, em novembro.

Por agora, a vantagem de Biden é também a vantagem evidente de ter na Casa Branca alguém que não pratique o racismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, a mentira e o ódio como método e de forma tão escancarada. Contudo, em matéria de política externa, Joe Biden não promete nada muito diferente de Trump nos punctum dolens da geopolítica contemporânea.

O candidato do Partido Democrata é um dos mais experientes políticos dos Estados Unidos em matéria de política externa. Enquanto senador, ocupou um assento no poderoso Comitê de Relações Exteriores por anos. Na vice-presidência do governo Obama, também era destacado articulador na matéria. Aliás, a proximidade com as ideias de Hilary Clinton é tamanha que seus principais assessores para as relações internacionais são os mesmos que também a apoiaram.

Dentre eles, o principal é Jake Sullivan, conselheiro-chefe de Biden para as relações internacionais e que já havia sido também seu assessor sobre segurança nacional, quando Biden ocupava a vice-presidência. Na hipótese de vitória democrata tende a ser, senão o Secretário de Estado, ao menos Conselheiro Nacional de Segurança. De todo modo, trata-se de um ideólogo e uma voz a se ouvir para perscrutar os caminhos da política externa de um eventual governo Biden.

Sullivan tem defendido uma visão renovada do excepcionalismo norte-americano, a ideia formadora segundo a qual os Estados Unidos seriam um caso único e, portanto, com a missão de exercer o papel de farol de valores para um mundo que não teria as suas mesmas condições de maturação política e democrática. Ora, não é diferente do pensamento apresentado por Trump e, antes dele, Dick Cheney, o verdadeiro falcão do governo Bush Jr. Sullivan se apressa em dizer que, na verdade, esses republicanos (Trump, especialmente) é que se apropriaram de uma ideia que não lhes pertence para, na prática, exercer outra política[i].

O que isso quer dizer exatamente, ainda não foi explicado. Parece uma retórica um tanto vazia? A razão é que se trata exatamente disso. A campanha democrata indica que procura sensibilizar a classe média norte-americana com conceitos e visões populares, mas sem materialidade. Sullivan já acusou os republicanos de praticarem um “unilateralismo predatório”[ii]. Contudo, sua proposta de alternativa, repetida por Biden, pode também ser chamada de “multilateralismo predatório”: reforçar a OTAN, unir uma coligação de Estados para perseguir os inimigos apontados pelos EUA.

“Paz mundial” não é um conceito que está na plataforma apresentada.

O candidato segue a mesma linha do seu assessor. Em artigo no qual lançou sua visão das relações dos Estados Unidos com o mundo, Biden invocou, desde o título, o gasto clichê da “liderança norte-americana”. Para uma politica externa pós-Trump, ele intitula seu programa com um “porque a América deve liderar novamente”. De pronto, o texto defende que Trump teria esgarçado a liderança dos EUA, atacado amigos, encorajado inimigos, além de haver se afastado dos valores que dariam identidade ao país e legitimidade à sua presença ostensiva pelo mundo[iii].

Biden aponta para um cenário difícil, no qual “o sistema internacional construído pelos EUA está ruindo”: avanço de autoritarismos, nacionalismos e políticas antiliberais. Nesse ponto, o único do texto que aparenta um chamado à paz, ele dialoga com uma tradição liberal que vê nas barreiras ao comércio internacional e no nacionalismo os gérmens da guerra. Prega que os EUA se engajem na questão climática, defende uma revolução verde, investimentos em tecnologia e infra-estrutura e outras propostas muito caras à mesma classe média a quem Jake Sullivan prega, há anos, sua visão do velho e tradicional “excepcionalismo”.

Novamente, vale a pergunta: qual a real substância da proposta do Partido Democrata? Biden faz um apelo vago a alguns valores e noções antigas, sem objetividade. Obama fez o mesmo quando foi eleito e, inclusive, recebeu um Nobel da Paz para depois tornar-se o presidente do maior orçamento militar da história da belicosa república do norte.

Quando os pés buscam o chão, o cenário não é tão idílico.

As críticas de Biden a Trump por ter abandonado o acordo nuclear com o Irã e por ter ordenado o assassinato do general Qasem Soleimani, popular e eficaz comandante da iraniana Força Quds, soam mais à retomada do “smartpower” da gestão de Hilary Clinton na Secretaria de Estado, do que um chamado aos bons modos.

Além disso, no que tange às relações com a Rússia, o candidato democrata propõe o enfrentamento. Acusa o governo russo de crimes e diz que os EUA devem ampliar a atuação da OTAN e voltar a estreitar os laços afrouxados por Trump com os aliados europeus. Portanto, nada de diferente do que foi praticado pela Washington do triunfalismo do pós-Guerra Fria: Biden projeta uma OTAN ainda mais engajada no cerco à Rússia. A consequência dessa política foi, como se sabe, a instabilidade no leste europeu e a busca (sensata) de Moscou pela defesa de sua segurança e soberania. A rigor, as “ações” russas no tabuleiro geopolítico são, na verdade, reações à expansão da OTAN, contra a qual até mesmo Henry Kissinger lançou advertências.

Para a China, tampouco Biden e seu assessor trazem palavras mais brandas que as do atual governo. Em maio deste ano, Sullivan emulou Pompeo e escreveu na Foreign Policy que a China tem um “projeto de dominação global”. No mesmo texto, em passagem sincera, confessa que sua preocupação é mais com um “desafio à liderança dos Estados Unidos”. Seu artigo leva à conclusão de que um Estado que cresça economicamente, invista em pesquisa e procure tratados de comércio com outros países estará, automaticamente, “desafiando a liderança norte-americana”[iv].

Por sua vez, Biden vai na mesma linha. Para o mais provável futuro presidente dos Estados Unidos, a China pretende estender sua influência usando pra isso o investimento em alta tecnologia (que bom seria se o Brasil pudesse hoje ser acusado de tamanha ousadia). Por fim, prega um enfretamento ainda mais intenso que o promovido por Trump…

Uma vitória de Joe Biden seria, evidentemente, uma boa notícia em um mundo no qual governos de potências tem contado com a força dos piores preconceitos e de uma incivilidade latente, para não falar do “terraplanismo”. Contudo, para as principais questões geopolíticas da época, a receita apresentada até aqui é a mesma: defender os interesses dos Estados Unidos colocando na defensiva qualquer país do mundo que ouse se desenvolver.  Apesar de toda a carga também simbólica de uma derrota de Trump, a volta dos democratas não pode ser saudada como a de emissários da paz em busca de um caminho aberto e democrático para o mundo.

*Alexandre G. de B. Figueiredo é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP).

 

Notas


[i]https://www.newyorker.com/news/q-and-a/inventing-a-post-trump-foreign-policy-an-interview-with-the-former-obama-adviser-jake-sullivan

[ii]https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2019/01/yes-america-can-still-lead-the-world/576427/

[iii]https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2020-01-23/why-america-must-lead-again

[iv]https://foreignpolicy.com/2020/05/22/china-superpower-two-paths-global-domination-cold-war/

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Brazil Flávio Aguiar Gilberto Maringoni Bruno Fabricio Alcebino da Silva Maria Rita Kehl Daniel Afonso da Silva José Micaelson Lacerda Morais Mário Maestri Henri Acselrad Rubens Pinto Lyra Otaviano Helene Salem Nasser Claudio Katz Elias Jabbour João Paulo Ayub Fonseca Luis Felipe Miguel Luiz Werneck Vianna Benicio Viero Schmidt Armando Boito Ari Marcelo Solon Eleonora Albano Antonino Infranca Sandra Bitencourt Eduardo Borges Eugênio Bucci Liszt Vieira Marjorie C. Marona José Costa Júnior José Luís Fiori João Lanari Bo Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Eduardo Soares Ricardo Fabbrini Everaldo de Oliveira Andrade Marilena Chauí José Raimundo Trindade Samuel Kilsztajn Francisco Pereira de Farias Dênis de Moraes André Singer Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Fernandes Ladeira Vanderlei Tenório Ronald León Núñez Marcus Ianoni Chico Whitaker Yuri Martins-Fontes Anselm Jappe Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Antunes Ronaldo Tadeu de Souza Sergio Amadeu da Silveira Walnice Nogueira Galvão Bernardo Ricupero Antonio Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Fernando Nogueira da Costa Heraldo Campos André Márcio Neves Soares Luiz Marques Rodrigo de Faria Flávio R. Kothe Andrew Korybko Luiz Roberto Alves Afrânio Catani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Lincoln Secco Bento Prado Jr. Paulo Martins Leonardo Avritzer Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tales Ab'Sáber Marilia Pacheco Fiorillo Eliziário Andrade Marcos Silva Ricardo Musse João Sette Whitaker Ferreira Vladimir Safatle Carlos Tautz João Feres Júnior Julian Rodrigues Luiz Bernardo Pericás Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira Manuel Domingos Neto Rafael R. Ioris Atilio A. Boron Dennis Oliveira Fábio Konder Comparato Lorenzo Vitral Milton Pinheiro Michel Goulart da Silva Vinício Carrilho Martinez Jorge Branco José Machado Moita Neto Alysson Leandro Mascaro Michael Roberts Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin Leonardo Boff Bruno Machado Matheus Silveira de Souza Igor Felippe Santos Celso Favaretto Annateresa Fabris Gabriel Cohn João Carlos Salles Kátia Gerab Baggio Antônio Sales Rios Neto Paulo Nogueira Batista Jr Carla Teixeira Manchetômetro José Geraldo Couto Osvaldo Coggiola Érico Andrade Valerio Arcary Marcelo Módolo Gilberto Lopes Eleutério F. S. Prado Jorge Luiz Souto Maior Henry Burnett Andrés del Río Alexandre de Lima Castro Tranjan Denilson Cordeiro João Carlos Loebens Marcelo Guimarães Lima Priscila Figueiredo Gerson Almeida Slavoj Žižek Alexandre Aragão de Albuquerque Tadeu Valadares Jean Marc Von Der Weid Luís Fernando Vitagliano Remy José Fontana Luiz Renato Martins Chico Alencar Leonardo Sacramento Tarso Genro Eugênio Trivinho Caio Bugiato Fernão Pessoa Ramos Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Ronald Rocha Paulo Capel Narvai Berenice Bento Thomas Piketty Ricardo Abramovay Mariarosaria Fabris José Dirceu Renato Dagnino Ladislau Dowbor Boaventura de Sousa Santos Marcos Aurélio da Silva Daniel Costa Valerio Arcary Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez João Adolfo Hansen

NOVAS PUBLICAÇÕES