Por ALESSANDRO OCTAVIANI*
A face liberal da disciplina da concorrência está se liquefazendo em público, mundo adentro, ficando evidente sua posição instrumental na disputa econômica entre os países integrantes do sistema mundial moderno
“Confessando bem / Todo mundo faz pecado / Logo assim que a missa termina / Todo mundo tem um primeiro namorado / Só a bailarina que não tem / Sujo atrás da orelha / Bigode de groselha / Calcinha um pouco velha / Ela não tem” (Ciranda da bailarina, Chico Buarque e Edu Lobo).
As políticas e retóricas de austeridade, privatização e liberalização de mercados apresentaram desde a década de 1990 intensa afinidade eletiva com o antitruste, que, inclusive, serviu como justificativa ideológica apaziguadora: poder-se-ia jogar tudo para o mercado, desde que houvesse controle eficiente sobre eventuais abusos, com a garantia da concorrência.
A face liberal da disciplina da concorrência, entretanto, está se liquefazendo em público, mundo adentro, ficando evidente sua posição instrumental na disputa econômica entre os países integrantes do sistema mundial moderno. Vai para o fundo do palco o antitruste de retórica neoclássica, com pretensões ideológicas “de neutralidade”, preferencialmente operando sob o critério do “poder econômico dentro de específicos mercados relevantes”; entra em cena a disciplina da concorrência que opera sob o critério da “nacionalidade, protegendo os próprios ‘mercados relevantes’ para os nacionais”. Há um deslocamento significativo, que, assim, repagina por inteiro a disciplina concorrencial. O núcleo orgânico do Ocidente não brinca em serviço: enquanto esteve na condição inconteste de produtor e vendedor, produziu formas ideológicas e institucionais livre-cambistas, com as quais colonizou mentes e ordenamentos jurídicos do mundo; quando se vê ameaçado, empurrado para o papel de não-produtor ou de ver seus ativos de alta agregação tecnológica adquiridos por outros capitais, como o chinês, rapidamente remodela seu antitruste para as novas fases da guerra, dando-lhe as cores do nacionalismo econômico contemporâneo.
A Alemanha, por exemplo, vê-se espremida pelo gigantismo das big-techs norte-americanas (Google, Facebook, Amazon…) e pelo Made in China 2025. Com a sequência de aquisições norte-americanas e chinesas drenando, com muita rapidez, capacitações tecnológicas europeias (no ano de 2016, a China comprou cerca de 40 empresas alemãs, aumentando em oito vezes o investimento do ano anterior), em 2017 vetou a aquisição da Aixtron pela Fujian Grand Chip Investment e o parlamento aprovou a 9ª emenda à lei antitruste, para introduzir critério de notificação baseado no valor da transação (400 milhões de euros), com a função de monitorar negócios não notificáveis anteriormente. Em 2018, impediu o ingresso dos chineses no setor de energia, obstando a compra da Leifeld Metal Spinning pelo Yantai Taihai Group. Em 2019, o governo encaminhou a 10ª emenda à lei antitruste, propondo regulação sobre agentes com “importância fundamental através de diferentes mercados” (paramount significance across markets – aqueles com atuação em plataformas ou redes, com acesso a dados ou infraestruturas relevantes para que terceiros acessem mercados de fornecimento e venda de produtos), ou seja, estratégica e prioritariamente, as big-techs norte-americanas. Em 2020, foi proposta a adoção de instrumentos de direito concorrencial “para reduzir as distorções de concorrência no mercado interno” criadas por subsídios de países como a China. A Alemanha se arma até os dentes, com uma disciplina concorrencial de cunho nacionalista; na terra de List, o antitruste de corte liberal transforma-se em um irmãozinho menor: é parte da família, mas tem que obedecer a quem realmente manda.
Os EUA se vendem para o mundo como o paraíso da concorrência, Éden protegido pelo Poder Judiciário e por dois poderosos órgãos do governo federal, a FTC e o DoJ. Os amantes da ideologia do antitruste norte-americano mundo afora quase nunca se lembram do CFIUS, instituição que regula a concorrência no mercado interno norte-americano sob os critérios de defesa da soberania econômica dos EUA e pratica, assim, há décadas, regulação concorrencial nacionalista. Nos choques do petróleo da década de 1970, os países árabes exportadores de petróleo acumularam liquidez e os Estados Unidos passaram a se preocupar com as implicações para a “segurança nacional” de suas aquisições. Na esteira do Foreign Investment Study Act de 1974, foi criado o Comittee on Foreign Investments in the United States – CFIUS, com a função de avaliar tais investimentos e, em 1988, após a ameaça de tomada de empresas de tecnologia por asiáticos, a Emenda Exon-Florio garantiu ao Poder Executivo federal a plena competência de veto a operações que visavam ao controle de empresas dos EUA por estrangeiros, com fundamento na, sempre ela, “segurança nacional”. Em agosto de 2018, o poder do órgão se amplificou, com a sanção do Foreign Investment Risk Review Modernization Act – FIRRMA, que alarga o escopo de aquisições sob seu crivo, com categorias jurídicas para a disciplina da concorrência como “segurança nacional”, “tecnologia ou infraestrutura crítica que afetaria a liderança dos EUA em áreas de segurança nacional”, “vulnerabilidades de cibersegurança aos EUA” ou “ameaça potencial à segurança nacional”. O antitruste norte-americano, repleto desde sempre de isenções e protecionismos, só está mais explícito ainda, rangendo os dentes para a China. Alexander Hamilton está mais vivo do que nunca, e não é só na Broadway.
Na Inglaterra, em junho de 2020 foram aprovadas novas diretrizes integrativas do Enterprise Act 2002, prevendo, entre outros pontos, o alargamento de competência sobre concentrações nos setores de inteligência artificial, autenticação criptográfica ou materiais avançados, a partir de quatro critérios jurídicos, altamente plásticos: “segurança nacional”, “estabilidade financeira”, “combate à emergência de saúde pública” e “pluralidade de mídia”. O projeto de lei The UK’s National Security and Investment Bill aprofunda essa agenda, adensando o critério do “interesse público” para operações de investimento estrangeiro direto, que devem ser também escrutinados sob o critério da “segurança nacional”, com foco óbvio na disputa do 5G. O antitruste britânico contemporâneo revisita seu ancestral, a disciplina da concorrência das Leis de Navegação, dos Tudor, sonhando com um Estado que impulsione rumo à complexidade econômica perdida.
A China é uma máquina econômica mercantilista e protecionista; suas políticas, instituições e retórica “antitruste” não passam, estruturalmente, de “conversa para OMC ver” ou, explicitamente, de instrumento para o alcance dos fins de engrandecimento da economia nacional. A Anti-Monopoly Law de 2008, com apenas um ano de existência, fundamentou o veto à aquisição da Huiyuan, fabricante chinesa de sucos, pela Coca-Cola, que havia ofertado US$ 2,4 bilhões pela companhia chinesa; em 2011, a vinculação das disciplinas jurídicas de diferentes setores da economia ao núcleo semântico da “segurança econômica nacional” adensou-se, com a promulgação da National Security Review para fusões e aquisições propugnadas por não-nacionais. Em 2018, foi criada a State Administration for Market Regulation, que reuniu, num só braço governamental, as três autoridades concorrenciais pré-existentes; em 2019 foi aprovada a nova lei de investimentos estrangeiros dispondo, no art. 35, que investimentos em setores e indústrias sensíveis estarão sujeitos aos procedimentos de National Security Review, fechando o ciclo: o antitruste chinês serve à expansão tecnológica, comercial e militar da China, não tendo qualquer semelhança real com o “antitruste de livro-texto” que a OCDE adora vender como solução única e que funcionaria como “o guardião do competitivo sistema de mercado”. O antitruste chinês serve para criar mercados para a China. Os líderes espirituais da Nação, de Chou En-Lai a Xiaoping, aprovariam com um simpático sorriso esse caminho.
Como se vê, no mundo, a disciplina da concorrência subordina-se aos anseios nacionais de política econômica (industrial e militar); o antitruste deixa, explícita e desavergonhadamente, de poder afirmar-se “neutro”, “liberal” ou “bastião de última instância”, e passa para o primeiro plano da segurança econômica nacional, mostrando-se funcional aos projetos de cunho nacional-mercantilista, “sujo atrás da orelha, com bigode de groselha, pecando assim que a missa termina”.
E nós, aqui no Brasil? Por que só a bailarina que não tem?
*Alessandro Octaviani, ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Recursos genéticos e desenvolvimento (Saraiva).
Publicado originalmente no site A Terceira Margem.