Por LUIZ RENATO MARTINS*
Comentário sobre a trajetória artística do pintor norte-americano
O catálogo Edward Hopper and the American Imagination apresenta uma visão, como o título já anuncia, iconológica e nacionalista da obra de Hopper (1882-1967). O catálogo (com 59 reproduções) também quer instituir uma linhagem posterior de obras deste tipo. Para isso, o ensaio de Gail Levin tece sem maior exame uma fieira de parentescos iconográficos de obras recentes com as de Hopper. E, pondo o pop art como sucessor direto de Hopper, remete o expressionismo abstrato a um interregno sem legitimação nacional
Treze textos literários recentes e de cor local, unidos pelas ideias de coloquialidade imediata e de situações “hopperescas”, compõem o restante do volume. O viés iconológico, com alguma fantasia, também dá o tom aqui. Numa brochura grátis, a curadora-associada Beth Venn radica, no mesmo sentido, o estilo de Hopper no cinema e em outros meios de massa, asseverando que ele “proveu a lente (‘intemporal’) com a qual vemos a América”.
Quer-se, pois, nacionalizar a obra de Hopper – e tal esforço fica evidente se contraposto ao catálogo dos EUA na Bienal de São Paulo de 1967; duas mostras, uma de Hopper e outra de expoentes do pop compuseram o notável acervo dos EUA na ocasião. Os ensaios de Lloyd Goodrich e William Seitz destacavam então as três longas estadias de Hopper na França entre 1906 e 1910, bem como a herança impressionista e o universalismo da sua obra. Goodrich, amigo e estudioso da obra, nada dizia sobre laços com o pop; Seitz comparava, entre os pop presentes, só o trabalho de George Segal ao de Hopper e concluía: “as semelhanças são acidentais”. Para Seitz, Hopper devia “ser visto contra o amplo panorama da arte ocidental”.
Hopper, diversamente de Man Ray (1890-1976) e Calder (1898-1976), da geração seguinte e filiados à vanguarda europeia, voltou aos EUA – o que não o torna menos universalista e moderno, mas até mais autônomo politicamente, dado o desafio fundador de sua ação [1]. A modernidade do seu trabalho só romperia a custo o padrão acadêmico ou normativo da pintura idealizada da cena nativa. Nesse rumo, enfrentou com armas próprias as escolas dominantes nos anos 1930 (o regionalismo do grupo da “American Scene” e o realismo social), sem ceder e sem se valer dos marcos do debate europeu daqueles anos.
Mas como se elaborou, de fato, no plano estético, essa autonomia? Os trabalhos, mais do que a história do autor, mostram a ruptura crítica. Contra o pathos nativista e os cânones do naturalismo, Hopper adota a lição impressionista. O campo visual das cenas, recortadas de um horizonte presumivelmente maior e pertinente à consciência, indica, tal como em Monet (1840-1926) ou Degas (1834-1927) e Lautrec (1864-1901), a especificidade do olhar e seu desígnio de emancipação. No uso das cores, a recusa dos efeitos de volume do chiaroscuro sustenta a afirmação da pintura e a bidimensionalidade da tela como em Manet e nos impressionistas.
Noutros itens, o corte autônomo e moderno é ainda mais incisivo. Hopper logo vem a negar o aspecto naturalista do impressionismo, ligado ao cientificismo e ao positivismo. Opera a partir da atividade da imaginação e da memória, divergindo da preferência dos impressionistas pelos dados de observação. Sua arte sóbria assenta em atos sintéticos da consciência. Prefere “constructos” humanos aos motivos pitorescos e naturais, herdados do século XIX. Paredes, portas, janelas e vitrinas, denotando a orientação reflexiva, constituem temas centrais. As paisagens são riscadas por trilhos, postes, vias ou faróis marítimos; o céu é um resíduo… E a luz, no combate ao naturalismo, perde o valor que tinha no impressionismo. É estilizada com austeridade, de modo sumário e abstrato, no sistema de composição, de Hopper, à base de planos cromáticos.
Na crítica à perspectiva geométrica, Hopper soma-se a Cézanne, recusando a anotação impressionista e supondo a consciência como premissa. Verticais e horizontais, em paralelo com as margens da tela e contrapostas às diagonais essenciais à infinitude da perspectiva, dirigem a composição, exibindo os limites da tela e uma profundidade relativa. A insistência em vistas frontais e em cantos abruptos regula o ritmo da recepção, organizando uma visão delimitada.
A concentração da significação pictórica ou o efeito de finitude, que questiona a representação, vem todavia de perversões à gramática da perspectiva geométrica: o uso de cores quentes no fundo; escala e talhe sem contraste acentuado para figuras atrás e na frente; a divisão da tela em planos de cor, segundo uma estrutura de grade típica do ideário moderno, que nega a ideia de um continuum e a expectativa de profundidade. A compressão da cena é realçada ao fundo pelos vestígios dos meios usados: pincel e quantidades variáveis de tinta.
O diálogo emancipatório do olhar e do discurso pictórico não leva à absolutização da arte, mas põe uma dialética com humor. Em Night Windows (1928), o ideal da tela como janela para o infinito é ironizado: as diagonais não rumam para o centro como na representação habitual do infinito, mas para as laterais, e rebatem o centro (prosaicamente ocupado por uma toalha sobre um traseiro e um aquecedor) na direção do olhar. Também de modo antitético, Hopper recorre, outras vezes, a linhas e planos frontais; por exemplo, no caso das fachadas que incluem painéis publicitários ou logotipos. Se, no pop, o plano frontal, o mais das vezes, implica uma aceitação estratificada da bidimensionalidade da tela, já em Hopper tal recurso frontal vem interceptar as linhas diagonais de profundidade e dialetizar a recepção mediante paradoxos visuais.
Cabe à arte potenciar tensões ou solucioná-las? Atendendo à primeira alternativa, as figuras humanas, como as demais formas representadas na obra de Hopper, supõem oposições e têm função questionadora. Assim, os vultos humanos contrapõem-se – pelas curvas dos seus corpos seminus, pela opacidade estampada nos semblantes, por um olhar perdido e centrífugo, pela inação etc. – aos ambientes ascéticos e geometrizados. Como manchas ou índices destoantes – sinais de excentricidade e dissonância essencial entre homem e ambiente –, essas figuras têm o valor e até a forma curvada de um ponto de interrogação.
Acaso interpelam a formalização rígida da ordem social – expressa na obra de Hopper pelas formas maiúsculas e severas sobrepostas à natureza? Como operadores de uma pergunta ou mapas de fendas da ordem social, esses corpos e fisionomias anônimos, no prosaísmo dos ambientes, geram, um após o outro, uma dúvida sobre a ordem. Mesmo metafísica, tal questão não deixa de ser política.
Como extrapolar uma identidade nacional a partir de obras estruturadas por oposições? O pré-requisito, já se vê, é esquecer das tensões estéticas dos trabalhos, dos conflitos da produção e da sua história. No caso presente, o esquecimento, por certo, não envolve lapso, mas estratégia, visto que Levin é autora do catalogue raisonné e de uma “biografia íntima” de Hopper, no prelo [em 1995]. Além disso, sendo o Whitney Museum (Nova York) o guardião-mor da obra [2], caracteriza-se um ato em cadeia, em suma, o dado de uma política cultural. E que implica – na ideia geral de afirmação nacional ou de resgate simbólico dos particularismos (varridos pela globalização) –, além do sentido da obra de Hopper, uma revisão normativa ou pré-moderna da história do modernismo e do papel da arte. No fim das contas, uma volta ao velho faz de conta.
*Luiz Renato Martins é professor dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019).
Publicado originalmente, sob o título “Por trás da cena americana”, em Jornal de Resenhas/ Folha de São Paulo, no. 08, em 08.11.1995.
Referência
Vv. Aa., Edward Hopper and the American Imagination, catálogo da mostra do mesmo nome (22/6-15/10, 1995), Deborah Lyons et. al. (org.), New York, Whitney Museum of American Art/ W.W. Norton & Company, 256 págs.
Notas
[1] Em 1913, Hopper participou do Armory Show, primeiro evento nos EUA ligado à arte moderna. Recusado pelos salões oficiais até 1920, quase parou de pintar. Durante dez anos não vendeu um único quadro. Sua primeira mostra individual ocorreu só em 1924.
[2] Após a morte de Hopper em 1967, o museu recebeu da viúva, Jo Hopper, pouco depois falecida, um acervo de 2.500 trabalhos do artista.