A imprensa brasileira e a vacina

Imagem: Valéria Possos
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Por SANDRA BITENCOURT*

Como é possível imunizar o jornalismo das suas funções de esclarecimento

No início do século XX, o fortalecimento do capitalismo com a indústria cafeeira modernizou estruturas, aumentou a capacidade de transporte e de comunicação. Nesse período, jornais já tradicionais também se modernizaram e surgem novos veículos como O Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo. É uma imprensa ainda dependente, dividida entre o servilismo e o oposicionismo, mas se fortalecendo e se profissionalizando. Após o breve período conhecido como a República das espadas (seis anos com os marechais), tem início a República Velha ( 1894 até 1930). De acordo com o livro Jornalismo Político, Teoria, História e Técnicas, de Roberto Seabra e Vivaldo de Sousa, dois jornais que ilustram esse período são O País, ligado à elite agroexportadora e O Correio da Manhã, das camadas médias da sociedade, oposicionista à política do café com leite.

Essa configuração vai determinar o posicionamento dos jornais da época na cobertura de uma Revolta Popular no Rio de Janeiro, maior motim da então capital da jovem República. A Revolta da Vacina será abordada e enquadrada na cobertura da imprensa mais pelas articulações políticas, interesses financeiros, posições sobre criação de uma identidade nacional, e menos pelas necessidades sanitárias e o cômputo de vidas perdidas. De acordo com a agência Fio Cruz, o saldo total da Revolta da Vacina foi de 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos em menos de duas semanas de conflitos. O então presidente, Rodrigues Alves, se viu obrigado a desistir da vacinação obrigatória. “Todos saíram perdendo. Os revoltosos foram castigados pelo governo e pela varíola. A vacinação vinha crescendo e despencou, depois da tentativa de torná-la obrigatória. A ação do governo foi desastrada e desastrosa, porque interrompeu um movimento ascendente de adesão à vacina”, diz o informe histórico. Mais tarde, informa o documento da Fiocruz, em 1908, quando o Rio foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história, o povo correu para ser vacinado.

Embora a vacina contra a varíola tivesse sido descoberta 200 anos antes, pelo médico inglês Edward Jenner, e apesar de ter eficácia comprovada há pelo menos cem anos, grande parte da população desconhecia e temia os efeitos que ela poderia causar. O governo foi absolutamente inepto para informar e a imprensa tampouco fez um papel de esclarecimento mais minucioso, mesmo que a falta de saneamento básico e as péssimas condições de higiene fizessem da cidade um foco de epidemias, principalmente de febre amarela, varíola e peste. Além disso, havia ainda um conjunto enorme de boatos e uma indignação moral. A vacinação seria entendida como um atentado ao pudor das mulheres, que teriam de desnudar os braços (ou, conforme boatos mais radicais, as pernas e as nádegas). Se disseminava ainda que ao tomar a vacina, o ser humano ficaria com as feições da vaca, animal do qual foi produzida inicialmente a substância. Oswaldo Cruz, jovem médico idealista, foi o responsável pela estruturação da saúde pública no Brasil, saneou o Rio, apesar da oposição de boa parte da mídia e da manifestação popular contra o modo autoritário como a campanha foi organizada. Muitos jornais estamparam charges e críticas ao sanitarista. Mas por que a imprensa não colaboraria no esclarecimento de medida sanitária tão importante, considerando o interesse público e a proteção da vida, pressupostos que norteiam, ou deveriam nortear o jornalismo?

Porque outros interesses estavam em jogo. A população da cidade se insurgiu contra o plano de saneamento em moldes militares, mas já estava revoltada  com a remodelação urbana feita pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906), que tomou medidas drásticas, com remoção de cortiços e casebres dos bairros centrais, dando lugar a grandes avenidas e ao alargamento das ruas, desalojando as populações e expandindo barracos nos morros cariocas ou em bairros distantes na periferia. Tudo conduzido de modo arbitrário e vertical, mas coerente com o capitalismo que se impôs como sistema transformador da cultura, da política, da economia. A imprensa se fortalece nesse contexto, adquirindo características de empresa e sendo apoio da elite industrial, ditando regras e impondo um novo modo de vida. A imprensa adquire um papel de destaque, influência e poder.

O Rio de Janeiro, nesse momento com 700 mil habitantes, padece de graves problemas urbanos, com falta de saneamento, excesso de população nos cortiços, lixo nas ruas e ambiente propício à proliferação de várias doenças. Mas também é retrato das transformações conturbadas no campo político e econômico, com uma massa de mão-de-obra miserável de um lado e de outro, com empresários e fazendeiros pressionando o governo por modernização dos portos e desenvolvimento da cidade, na busca de atrair capital externo e aumentar as exportações. A missão de livrar a cidade das doenças infecto-contagiosas, especialmente a epidemia de varíola,  surge em meio a essas tensões sociais e políticas. E o estopim da revolta é aceso com um vazamento da imprensa. O jornal A Notícia publica, com exclusividade e sem autorização formal, o projeto de regulamentação da Lei da Vacina Obrigatória, elaborado e redigido por Oswaldo Cruz, e fervorosamente discutido no parlamento. A divulgação da notícia enfureceu o povo que já vinha contrariado com as ações de despejo e remoção do prefeito Pereira Passos. Parte da imprensa apoiava as medidas de transformação da sociedade brasileira, buscando superar as características do período colonial, embora tais ações tivessem elevado custo social. A principal exportação do Brasil era o café, principalmente o dos fazendeiros paulistas. Eles constituíam a base de sustentação do presidente Rodrigues Alves, que adotou a política antindustrialista do antecessor, o presidente Campos Sales (1898-1902), garantindo assim o funcionamento e até o reforço do modelo agrário-exportador. De modo que veículos como o Estado de São Paulo deram uma cobertura favorável às medidas, apesar dos meios violentos para impor a ação profilática. Contudo, nem governo e nem a imprensa levaram à população informações que pudessem esclarecer a importância da ação sanitária, o que permitiu o surgimento de todo tipo de especulação. A polêmica foi tratada de forma apaixonada pela imprensa da época, com debates inflamados e farta produção de charges, especialmente repudiando a campanha do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Ou seja, a mira das críticas se dirigiu à vacinação, embora a inconformidade fosse produto da violenta reurbanização. Houve pouca orientação e esclarecimento visando a erradicar o pânico e a indignação. Muitos jornais se agregaram em torno de intelectuais, como Rui Barbosa, engajado contra a obrigatoriedade da vacinação.

Corta para um século depois. Mantem-se e se reproduz a desinformação, a circulação de boatos e teorias conspiratórias, o viés moral, a contagem de mortes enquanto autoridades não planejam e não orientam. Mas sobretudo, se mantém o papel da imprensa como defensora e representante das elites financeiras, precisando se equilibrar diante de uma tragédia sanitária e ao mesmo tempo não provocar maiores rupturas com o poder de plantão, em nome de uma modernização desta vez contida nas ditas reformas imprescindíveis, que eliminam as funções públicas do Estado e chancelam os efeitos da necropolítica.

Que outra explicação para uma imprensa que funciona por soluços de cobrança frente ao inimaginável? A cada lance do incontestável projeto de morte, vemos a reprodução de notas de repúdio e manifestações que sugerem que os limites aceitáveis foram ultrapassados. Mas ao mesmo tempo, há uma cobertura que tenta salvar o governo e atribuir a demência a uma suposta ala ideológica, que atribui o descalabro, por exemplo, em torno da falta de planejamento da vacinação a uma politização do tema, como se houvesse inclusive equidade entre a inação do governo federal e o apetite do governador de São Paulo por providenciar a vacinação. Se tolera uma coletiva onde um Ministro da Saúde ignorante do tema que precisa comandar, mente referindo um acordo que não houve. Há “naturalização” que a Agência responsável pela coordenação da imunização anuncie uma operação tartaruga, enquanto os corredores dos hospitais e os cemitérios estão lotados. Há naturalidade em observar a movimentação das autoridades em máscara, reproduzindo um discurso simbólico infindável de negacionismo. Quando o jornalismo dirá, com dados, provas e todas as letras que o presidente é um maldito genocida? O mercado e seus humores permitiria tal atrevimento? As instituições que dizem funcionar estão anestesiadas? Não cabe ao jornalismo fiscalizar o poder, servir de cão de guarda da cidadania, denunciar, esclarecer, prover a verdade?

Neste um século que nos separa da Revolta no Rio, quanto avançamos em modernização, cidadania, identidade nacional, imprensa livre, em ações presididas pela ciência, em política orientada para o interesse público? Parece-me parece que o nosso avanço, incluindo o papel da imprensa e do jornalismo, é do tamanho dos conhecimentos e da valentia do Ministro da Saúde: ou seja, mínimo.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação, pesquisadora do NUCOP/PPGCOM-UFRGS.

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