A imprensa brasileira e a vacina

Imagem: Valéria Possos
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SANDRA BITENCOURT*

Como é possível imunizar o jornalismo das suas funções de esclarecimento

No início do século XX, o fortalecimento do capitalismo com a indústria cafeeira modernizou estruturas, aumentou a capacidade de transporte e de comunicação. Nesse período, jornais já tradicionais também se modernizaram e surgem novos veículos como O Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo. É uma imprensa ainda dependente, dividida entre o servilismo e o oposicionismo, mas se fortalecendo e se profissionalizando. Após o breve período conhecido como a República das espadas (seis anos com os marechais), tem início a República Velha ( 1894 até 1930). De acordo com o livro Jornalismo Político, Teoria, História e Técnicas, de Roberto Seabra e Vivaldo de Sousa, dois jornais que ilustram esse período são O País, ligado à elite agroexportadora e O Correio da Manhã, das camadas médias da sociedade, oposicionista à política do café com leite.

Essa configuração vai determinar o posicionamento dos jornais da época na cobertura de uma Revolta Popular no Rio de Janeiro, maior motim da então capital da jovem República. A Revolta da Vacina será abordada e enquadrada na cobertura da imprensa mais pelas articulações políticas, interesses financeiros, posições sobre criação de uma identidade nacional, e menos pelas necessidades sanitárias e o cômputo de vidas perdidas. De acordo com a agência Fio Cruz, o saldo total da Revolta da Vacina foi de 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos em menos de duas semanas de conflitos. O então presidente, Rodrigues Alves, se viu obrigado a desistir da vacinação obrigatória. “Todos saíram perdendo. Os revoltosos foram castigados pelo governo e pela varíola. A vacinação vinha crescendo e despencou, depois da tentativa de torná-la obrigatória. A ação do governo foi desastrada e desastrosa, porque interrompeu um movimento ascendente de adesão à vacina”, diz o informe histórico. Mais tarde, informa o documento da Fiocruz, em 1908, quando o Rio foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história, o povo correu para ser vacinado.

Embora a vacina contra a varíola tivesse sido descoberta 200 anos antes, pelo médico inglês Edward Jenner, e apesar de ter eficácia comprovada há pelo menos cem anos, grande parte da população desconhecia e temia os efeitos que ela poderia causar. O governo foi absolutamente inepto para informar e a imprensa tampouco fez um papel de esclarecimento mais minucioso, mesmo que a falta de saneamento básico e as péssimas condições de higiene fizessem da cidade um foco de epidemias, principalmente de febre amarela, varíola e peste. Além disso, havia ainda um conjunto enorme de boatos e uma indignação moral. A vacinação seria entendida como um atentado ao pudor das mulheres, que teriam de desnudar os braços (ou, conforme boatos mais radicais, as pernas e as nádegas). Se disseminava ainda que ao tomar a vacina, o ser humano ficaria com as feições da vaca, animal do qual foi produzida inicialmente a substância. Oswaldo Cruz, jovem médico idealista, foi o responsável pela estruturação da saúde pública no Brasil, saneou o Rio, apesar da oposição de boa parte da mídia e da manifestação popular contra o modo autoritário como a campanha foi organizada. Muitos jornais estamparam charges e críticas ao sanitarista. Mas por que a imprensa não colaboraria no esclarecimento de medida sanitária tão importante, considerando o interesse público e a proteção da vida, pressupostos que norteiam, ou deveriam nortear o jornalismo?

Porque outros interesses estavam em jogo. A população da cidade se insurgiu contra o plano de saneamento em moldes militares, mas já estava revoltada  com a remodelação urbana feita pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906), que tomou medidas drásticas, com remoção de cortiços e casebres dos bairros centrais, dando lugar a grandes avenidas e ao alargamento das ruas, desalojando as populações e expandindo barracos nos morros cariocas ou em bairros distantes na periferia. Tudo conduzido de modo arbitrário e vertical, mas coerente com o capitalismo que se impôs como sistema transformador da cultura, da política, da economia. A imprensa se fortalece nesse contexto, adquirindo características de empresa e sendo apoio da elite industrial, ditando regras e impondo um novo modo de vida. A imprensa adquire um papel de destaque, influência e poder.

O Rio de Janeiro, nesse momento com 700 mil habitantes, padece de graves problemas urbanos, com falta de saneamento, excesso de população nos cortiços, lixo nas ruas e ambiente propício à proliferação de várias doenças. Mas também é retrato das transformações conturbadas no campo político e econômico, com uma massa de mão-de-obra miserável de um lado e de outro, com empresários e fazendeiros pressionando o governo por modernização dos portos e desenvolvimento da cidade, na busca de atrair capital externo e aumentar as exportações. A missão de livrar a cidade das doenças infecto-contagiosas, especialmente a epidemia de varíola,  surge em meio a essas tensões sociais e políticas. E o estopim da revolta é aceso com um vazamento da imprensa. O jornal A Notícia publica, com exclusividade e sem autorização formal, o projeto de regulamentação da Lei da Vacina Obrigatória, elaborado e redigido por Oswaldo Cruz, e fervorosamente discutido no parlamento. A divulgação da notícia enfureceu o povo que já vinha contrariado com as ações de despejo e remoção do prefeito Pereira Passos. Parte da imprensa apoiava as medidas de transformação da sociedade brasileira, buscando superar as características do período colonial, embora tais ações tivessem elevado custo social. A principal exportação do Brasil era o café, principalmente o dos fazendeiros paulistas. Eles constituíam a base de sustentação do presidente Rodrigues Alves, que adotou a política antindustrialista do antecessor, o presidente Campos Sales (1898-1902), garantindo assim o funcionamento e até o reforço do modelo agrário-exportador. De modo que veículos como o Estado de São Paulo deram uma cobertura favorável às medidas, apesar dos meios violentos para impor a ação profilática. Contudo, nem governo e nem a imprensa levaram à população informações que pudessem esclarecer a importância da ação sanitária, o que permitiu o surgimento de todo tipo de especulação. A polêmica foi tratada de forma apaixonada pela imprensa da época, com debates inflamados e farta produção de charges, especialmente repudiando a campanha do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Ou seja, a mira das críticas se dirigiu à vacinação, embora a inconformidade fosse produto da violenta reurbanização. Houve pouca orientação e esclarecimento visando a erradicar o pânico e a indignação. Muitos jornais se agregaram em torno de intelectuais, como Rui Barbosa, engajado contra a obrigatoriedade da vacinação.

Corta para um século depois. Mantem-se e se reproduz a desinformação, a circulação de boatos e teorias conspiratórias, o viés moral, a contagem de mortes enquanto autoridades não planejam e não orientam. Mas sobretudo, se mantém o papel da imprensa como defensora e representante das elites financeiras, precisando se equilibrar diante de uma tragédia sanitária e ao mesmo tempo não provocar maiores rupturas com o poder de plantão, em nome de uma modernização desta vez contida nas ditas reformas imprescindíveis, que eliminam as funções públicas do Estado e chancelam os efeitos da necropolítica.

Que outra explicação para uma imprensa que funciona por soluços de cobrança frente ao inimaginável? A cada lance do incontestável projeto de morte, vemos a reprodução de notas de repúdio e manifestações que sugerem que os limites aceitáveis foram ultrapassados. Mas ao mesmo tempo, há uma cobertura que tenta salvar o governo e atribuir a demência a uma suposta ala ideológica, que atribui o descalabro, por exemplo, em torno da falta de planejamento da vacinação a uma politização do tema, como se houvesse inclusive equidade entre a inação do governo federal e o apetite do governador de São Paulo por providenciar a vacinação. Se tolera uma coletiva onde um Ministro da Saúde ignorante do tema que precisa comandar, mente referindo um acordo que não houve. Há “naturalização” que a Agência responsável pela coordenação da imunização anuncie uma operação tartaruga, enquanto os corredores dos hospitais e os cemitérios estão lotados. Há naturalidade em observar a movimentação das autoridades em máscara, reproduzindo um discurso simbólico infindável de negacionismo. Quando o jornalismo dirá, com dados, provas e todas as letras que o presidente é um maldito genocida? O mercado e seus humores permitiria tal atrevimento? As instituições que dizem funcionar estão anestesiadas? Não cabe ao jornalismo fiscalizar o poder, servir de cão de guarda da cidadania, denunciar, esclarecer, prover a verdade?

Neste um século que nos separa da Revolta no Rio, quanto avançamos em modernização, cidadania, identidade nacional, imprensa livre, em ações presididas pela ciência, em política orientada para o interesse público? Parece-me parece que o nosso avanço, incluindo o papel da imprensa e do jornalismo, é do tamanho dos conhecimentos e da valentia do Ministro da Saúde: ou seja, mínimo.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação, pesquisadora do NUCOP/PPGCOM-UFRGS.

 Referências


Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
Mudança de regime no Ocidente?
Por PERRY ANDERSON: Qual é a posição do neoliberalismo no meio do atual turbilhão? Em condições de emergência, foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina
O novo mundo do trabalho e a organização dos trabalhadores
Por FRANCISCO ALANO: Os trabalhadores estão chegando no seu limite de tolerância. Por isso não surpreende a grande repercussão e engajamento, principalmente dos trabalhadores jovens, ao projeto e campanha pelo fim da escala de trabalho de 6 x 1
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
O capitalismo é mais industrial do que nunca
Por HENRIQUE AMORIM & GUILHERME HENRIQUE GUILHERME: A indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Gilmar Mendes e a “pejotização”
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: O STF vai, efetivamente, determinar o fim do Direito do Trabalho e, por consequência, da Justiça do Trabalho?
Lígia Maria Salgado Nóbrega
Por OLÍMPIO SALGADO NÓBREGA: Discurso proferido por ocasião da Diplomação Honorífica da estudante da Faculdade de Educação da USP, cuja vida foi tragicamente interrompida pela Ditadura Militar brasileira
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES