Começar de novo

Escultura José Resende / Santos, São Paulo
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Por SLAVOJ ŽIŽEK*

Em vez de procurar em vão pelo reforço em alguma esperança, devemos aceitar que nossa situação é desesperadora, e então agir firmemente quanto a ela

Ainda em abril de 2020, reagindo à pandemia de Covid-19, Jürgen Habermas apontou que “a incerteza existencial está se espalhando globalmente e simultaneamente, nas mentes dos próprios indivíduos midiaticamente conectados”. Ele continua, “nunca houve tanto conhecimento de nosso desconhecimento e sobre as dificuldades de agir e viver na incerteza”.

Habermas tem razão ao afirmar que este desconhecimento não diz respeito apenas à pandemia – quanto a ela, ao menos temos os experts – mas, mais ainda, às suas consequências econômicas, sociais e psíquicas. Preste atenção à sua formulação precisa: não é que nós simplesmente não sabemos o que acontece, nós sabemos que não sabemos, e esse não saber é, em si mesmo, um fato social, inscrito na forma de agir de nossas instituições.

Nós sabemos, digamos, que nos tempos medievais ou nos princípios da modernidade eles sabiam muito menos – mas não sabiam disso, pois apoiavam-se em um certo fundamento ideológico estável que garantia que nosso universo era uma totalidade plena de sentido. O mesmo vale para algumas perspectivas comunistas, ou até mesmo para a ideia de Francis Fukuyama do fim da história – todos assumiam saber para onde a história estava indo. Além disso, Habermas tem razão em localizar a incerteza nas “mentes dos próprios indivíduos midiaticamente conectados”: nossa relação com o universo conectado expande nosso conhecimento de forma tremenda, mas, ao mesmo tempo, nos lança em uma incerteza radical (Estamos sendo hackeados? Quem controla nosso acesso? Isso que lemos é fake news?). Os vírus atacam em ambos os sentidos do termo: biológico e digital.

Quando tentamos imaginar como nossas sociedades serão quando a pandemia acabar, a armadilha que deve ser evitada é a futurologia – a futurologia, por definição, ignora nosso desconhecimento. Ela é definida como uma previsão sistemática do futuro a partir de tendências presentes na sociedade. E é aí que mora o problema – a futurologia, na melhor das hipóteses, extrapola o que virá a partir das tendências atuais. No entanto, o que a futurologia não considera são os ‘milagres’ históricos, rupturas radicais que podem apenas ser explicadas retroativamente, uma vez que aconteceram.

Devemos, talvez, mobilizar aqui a distinção que opera na língua francesa entre futur e avenir. ‘Futur’ é tudo aquilo que virá depois do presente, enquanto ‘avenir’ aponta para uma mudança radical. Quando um presidente ganha a reeleição, ele é o “atual e futuro presidente”, mas ele não é o presidente “por vir” [avenir] – o presidente por vir será um presidente diferente. Será, então, o universo pós-corona apenas outro futuro ou algo novo “por vir”?

Dependerá, não apenas da ciência, mas de nossas decisões políticas. Chegou a hora de dizer que não devemos ter nenhuma ilusão acerca do final “feliz” das eleições norte americanas, que trouxeram tanto alívio para liberais por todo o mundo. No filme They Live (1988), de John Carpenter, uma das obras-primas menosprezadas da esquerda hollywoodiana, conta-se a história de John Nada –em espanhol e português, “nada”– um trabalhador sem teto que acidentalmente encontra, dentro de uma igreja abandonada, uma pilha de caixas com óculos de sol. Quando ele coloca um par destes óculos, enquanto caminha pela rua, ele percebe que um colorido outdoor publicitário, nos intimando a desfrutar barras de chocolate, agora mostra a palavra “Obedeça”, enquanto outro outdoor, com um casal glamouroso em um forte abraço, visto pelas lentes dos óculos, ordena que o observador “Case e se reproduza”.

Ele também vê que as notas de dinheiro portam as palavras “Este é seu Deus”. Ademais, ele logo descobre que muitas pessoas que pareciam charmosas são, na verdade, alienígenas monstruosos com cabeças metálicas… Circula, hoje, na internet, uma imagem que replica a cena de They Live, agora com Joe Biden e Kamala Harris: vista diretamente, a imagem mostra os dois sorrindo com a mensagem “time to heal” [Hora de se curar]; vistos através dos óculos, eles são dois monstros alienígenas, e a mensagem é “time to heel” [Hora de se curvar].

Trata-se, é claro, de parte da propaganda de Trump para descreditar Biden e Harris como sendo máscaras do maquinário corporativo anônimo que controla nossas vidas. No entanto, há (algo mais do que) uma ponta de verdade nisso. A vitória de Biden significa “futuro” enquanto continuação da “normalidade” pré-Trump – é por isso que houve tamanho suspiro de alívio depois de sua vitória. Mas essa “normalidade” representa o domínio anônimo do capital global, que é o verdadeiro alienígena entre nós.

Eu lembro, de minha infância, do desejo por um “socialismo com rosto humano” contra o socialismo “burocrático” de tipo soviético. Biden, agora, promete um capitalismo global com um rosto humano, enquanto por detrás do rosto a mesma realidade continuará. Em se tratando da educação, esse “rosto humano” assumiu a forma de nossa obsessão com o “bem-estar”: alunos e estudantes devem viver em bolhas que lhes protegerão dos horrores da realidade exterior, protegidos pelas regras politicamente corretas.

A educação não tem mais o propósito de produzir um efeito de sobriedade ao nos permitir o confrontamento com a realidade social – e quando nos dizem que essa segurança prevenirá colapsos mentais, devemos combatê-los com a declaração oposta: é essa falsa segurança que abre o caminho para crises mentais quanto somos forçados a nos confrontar com a realidade social. O que a “atividade de bem-estar” faz é meramente oferecer um falso “rosto humano” para nossa realidade, em vez de nos permitir transformar essa realidade. Biden é o presidente supremo do “bem-estar”.

Mas, por que Biden ainda é melhor do que Trump? Os críticos ressaltam que Biden também mente e representa o grande capital, apenas de uma forma mais civilizada – mas, infelizmente, essa forma importa. Com sua vulgarização do discurso público, Trump estava corroendo a substância ética de nossas vidas, o que Hegel chamava de Sitten (em oposição à moralidade individual).

Essa vulgarização é um processo mundial. Tome o caso europeu de Szilárd Demeter, um comissário ministerial e líder do Museu Literário Petofi, em Budapest. Demeter escreveu, em um artigo de opinião em Novembro de 2020, que “a Europa é a câmara de gás de George Soros. Gás venenoso escorre da cápsula de uma sociedade aberta e multicultural, o que é mortal para a forma de vida Europeia”. Ele prossegue, caracterizando Soros como “o Fuhrer liberal”, insistindo que seu “exército liber-ariano o endeusa mais do que o de Hitler”.

Se fosse questionado, Demeter provavelmente reduziria essas afirmações, considerando-as meros exageros retóricos; isso, no entanto, não diminui suas assustadoras implicações. A comparação entre Soros e Hitler é profundamente antissemita: ela coloca Soros no mesmo nível que Hitler, afirmando que a sociedade multiculturalista e aberta, promovida por Soros, não apenas é tão perigosa quanto o Holocausto e o racismo Ariano que o sustentava (“liber-ariano”) mas, pior ainda, mais perigosa para “a forma de vida Europeia”.

Existe, então, alguma alternativa a essa visão terrível, que não seja o “rosto humano” de Biden? A ativista Greta Thunberg ofereceu recentemente três lições positivas sobre a pandemia: “É possível tratar uma crise como uma crise, é possível colocar a saúde das pessoas a frente dos interesses econômicos, e é possível ouvir a ciência.”

Sim, mas são possibilidades – também é possível tratar uma crise de tal forma que ela seja usada para ofuscar outras crises (como: por causa da pandemia, devemos esquecer o aquecimento global); também é possível usar uma crise para fazer os ricos ficarem mais ricos e os pobres, mais pobres (o que aconteceu efetivamente em 2020 com uma velocidade sem precedentes); também é possível ignorar ou compartimentar a ciência (basta lembrar daqueles que se recusam a tomar vacinas, o crescimento explosivo de teorias conspiratórias, etc.). Scott Galloway oferece uma imagem mais ou menos precisa das coisas em tempos de corona.

Estamos acelerando em direção a uma nação com três milhões de lordes sendo servidos por 350 milhões de servos. Não gostamos de dizer isso em voz alta, mas eu tenho a impressão de que essa pandemia foi em grande parte inventada para levar os 10% do topo em direção ao 1%, e derrubar ainda mais o resto dos 90%. Decidimos proteger empresas, não pessoas. O capitalismo estará literalmente colapsando sobre si mesmo, a não ser que reconstrua aquele pilar de empatia. Decidimos que capitalismo significa ser amável e empático com as empresas, e Darwinista e grosseiro com os indivíduos.

E qual é a saída de Galloway? Como devemos evitar este colapso social? Sua resposta é a de que o “capitalismo colapsará sobre si mesmo se não houver mais empatia e amor”: “Estamos entrando no Grande Reset, e ele está acontecendo rapidamente. Muitas empresas serão tragicamente perdidas em consequência da pandemia, e aquelas que sobreviverão vão existir de forma diferente. As organizações serão muito mais adaptáveis e resilientes. Times distribuídos, atualmente prosperando com menos supervisão, desejarão a mesma autonomia ao seguir adiante. Empregados esperarão que os executivos continuem liderando com transparência, autenticidade e humanidade.”

Mas, de novo, como isso será feito? Galloway propõe a destruição criativa que permite que empreendimentos em ruínas fracassem ao mesmo tempo que sejam protegidas as pessoas que perdem empregos: “Nós deixamos que as pessoas sejam demitidas para que a Apple possa emergir e levar a Sun Microsystems à falência, e, então, nós adotaremos aquela prosperidade incrível e seremos mais empáticos com as pessoas”.

O problema é: quem é o misterioso “nós” na frase supracitada, i.e., como, exatamente, a redistribuição é feita? Nós apenas taxamos mais os vencedores (a Apple, no caso), enquanto permitimos que eles mantenham sua posição monopolista? A ideia de Galloway tem um certo estilo dialético: a única forma de reduzir a desigualdade e a pobreza é permitir que a competição de mercado faça seu trabalho cruel (deixamos que as pessoas sejam demitidas), e então… o que? Esperamos que os mecanismos de mercado gerem novos empregos por conta própria? Ou será o Estado? Como o “amor” e a “empatia” serão operacionalizados? Ou devemos contar com a empatia dos vencedores e esperar que todos eles se comportarão como Gates e Buffet?

Eu acho que essa suplementação de mecanismos de mercado por moralidade, amor e empatia é profundamente problemática. Em vez de nos permitir o melhor dos dois mundos (egoísmo de mercado e empatia moral), é muito mais provável que teremos o pior dos dois mundos.

O rosto humano desta “liderança com transparência, autenticidade e humanidade” é o de Gates, Bezos, Zuckenberg, os rostos do capitalismo corporativo autoritário que posam de heróis humanitários, de nova aristocracia, celebrada pela mídia, e são considerados sábios humanitários. Gates doa bilhões para caridade, mas devemos lembrar como ele se opôs ao plano de Elizabeth Warren para um leve aumento nos impostos. Ele elogiou Piketty e, certa vez, quase se proclamou um socialista – é verdade, mas em um sentido muito específico e enviesado: sua riqueza vem da privatização daquilo que Marx chamava de nossos “comuns”, nosso espaço social compartilhado, onde nos movemos e comunicamos.

A riqueza de Bill Gates nada tem a ver com os custos de produção dos produtos que a Microsoft vende (pode-se até mesmo argumentar que a Microsoft paga um salário relativamente alto a seus trabalhadores intelectuais), i.e., sua riqueza não é o resultado de seu sucesso em produzir bons softwares por preços menores do que os de seus competidores, ou da maior “exploração” de seus trabalhadores intelectuais contratados. Gates tornou-se um dos homens mais ricos do mundo através da apropriação do aluguel pago por milhões dentre nós para que possamos nos comunicar através do meio que ele privatizou e que controla. E, da mesma maneira com que a Microsoft privatizou o software que a maioria de nós usa, os contatos pessoais são privatizados por nossos relacionamentos no Facebook, pela compra de livros na Amazon, pelas pesquisas no Google.

Há, portanto, uma ponta de verdade na “rebelião” de Trump contra os poderes corporativos digitais. Vale a pena assistir o podcast War Room de Steve Bannon, o grande ideólogo do populismo de Trump: é impossível não se fascinar com quantas pequenas verdades ele combina em uma grande mentira. Sim, sob o governo de Obama o fosso que separa os ricos dos pobres aumentou imensamente, grandes empresas ficaram ainda mais poderosas… mas sob Trump esse processo simplesmente continuou, e Trump ainda reduziu impostos, imprimiu dinheiro principalmente para salvar grandes empresas, etc. Estamos, assim, enfrentando uma horrível falsa alternativa: um grande reset corporativo ou o populismo nacionalista, que, no fim das contas, é a mesma coisa. O “grande reset” é a fórmula para se mudar algumas coisas (ou até mesmo muitas coisas) de modo que tudo continue, basicamente, igual.

Então, há uma terceira via, para além dos extremos entre restaurar a antiga normalidade e um grande reset? Sim, um verdadeiro grande reset. Não é nenhum segredo que ele precisa acontecer – Greta Thunberg deixou isso bem claro. Em primeiro lugar, devemos finalmente reconhecer a crise da pandemia como o que ela é, parte de uma crise global de toda a nossa forma de vida, desde a ecologia até as novas tensões sociais. Em segundo lugar, devemos estabelecer o controle social e a regulação da economia. Em terceiro lugar, devemos confiar na ciência – confiar mas não simplesmente aceitá-la como a agência que toma as decisões.

Por que não? Retornemos a Habermas, com quem começamos: nosso dilema é que somos compelidos a agir sabendo que não conhecemos todas as coordenadas da situação em que nos encontramos, e não agir teria a mesma função que agir. Mas não seria essa a situação básica de toda ação? Nossa grande vantagem é que nós sabemos o quanto não sabemos, e esse saber sobre nosso não-saber abre espaço para a liberdade. Agimos quando não conhecemos toda a situação, mas isso não é, simplesmente, nosso limite: o que nos faz livres é o fato de que a situação – ao menos em nossa esfera social – é, em si mesma, aberta, não está completamente (pré)determinada. E nossa situação na pandemia está, certamente, em aberto.

Aprendemos nossa primeira lição: um “desligamento leve” não é suficiente. Eles nos dizem que “nós” (nossa economia) não podemos arcar com um novo lockdown severo – então mudemos a economia. O lockdown é o gesto negativo mais radical dentro da ordem estabelecida. O caminho para ir além, para uma nova ordem positiva, passa pela política, não pela ciência. O que precisa ser feito é transformar nossa vida econômica para que ela possa sobreviver aos lockdowns e às emergências que, certamente, nos esperam, da mesma forma que uma guerra nos leva a ignorar os limites do mercado e a procurar um caminho para fazer o que é “impossível” em uma economia de livre mercado.

Em março de 2003, Donald Rumsfeld, o então Secretário de Defesa dos Estados Unidos, dedicou-se  a filosofar um pouco, de forma amadora, sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido. “Existem conhecidos conhecidos. São as coisas que sabemos que sabemos. Existem os desconhecidos conhecidos. Isto é, existem coisas que sabemos que não sabemos. Mas também existem os desconhecidos desconhecidos. Existem coisas que não sabemos que não sabemos.” O que ele se esqueceu de adicionar foi o crucial quarto termo: os “conhecidos desconhecidos”, coisas que não sabemos que sabemos – o que é, precisamente, o inconsciente Freudiano, o “conhecimento que se desconhece”, como Lacan costumava dizer.

Se Rumsfeld achou que os principais perigos do confronto com o Iraque eram os “desconhecidos desconhecidos”, as ameaças de Saddam Husseim que nem sequer suspeitávamos quais eram, nossa resposta deve ser que, ao contrário, os principais perigos são os “conhecidos desconhecidos”, as crenças e as suposições reprimidas que nem sequer notamos adotar.

Devemos ler a afirmação de Habermas de que nunca soubemos tanto sobre o que não sabemos através destas quatro categorias: a pandemia abalou o que nós (pensávamos que) sabíamos que sabíamos, ela nos tornou conscientes do que não sabíamos que não sabíamos, e, na maneira com que a confrontamos, nos apoiamos no que não sabíamos que sabíamos (todas as pressuposições e os preconceitos que determinam nossa ação ainda que não tenhamos consciência deles). Não estamos lidando com a simples passagem do desconhecimento para o conhecimento, mas a – muito mais sutil – passagem do desconhecimento para o conhecimento do que não sabemos – nosso conhecimento positivo continua o mesmo nessa passagem, mas conquistamos um espaço livre para a ação.

É no que diz respeito ao que não sabemos que sabemos, nossas pressuposições e nossos preconceitos, que a China (e Taiwan e o Vietnã) agiram muito melhor do que a Europa e os Estados Unidos. Estou ficando farto da acusação eternamente repetida de que “Sim, os chineses contiveram o vírus, mas a qual preço…” Eu concordo que precisamos de um Julian Assange que nos permita saber o que realmente aconteceu por lá, a história completa, mas o fato é que, quando a pandemia explodiu em Wuhan, eles imediatamente impuseram um lockdown e interromperam a maior parte da produção no país inteiro, claramente dando prioridade às vidas humanas sobre a economia – com algum atraso, é verdade, eles levaram a crise extremamente a sério.

Agora estão colhendo os seus frutos, mesmo economicamente. E – sejamos claros – isso só foi possível porque o Partido Comunista ainda é capaz de controlar e regular a economia: existe controle social sobre os mecanismos de mercado, ainda que seja um controle “totalitário”. No entanto, novamente, a questão não é como eles fizeram na China, mas como nós devemos fazer. A via chinesa não é a única via efetiva, ela não é “objetivamente necessária” no sentido de que, se você analisar todos os dados, você terá de seguir a via chinesa. A epidemia não é apenas um processo viral, é um processo que se dá dentro de certas coordenadas econômicas, sociais e ideológicas que estão abertas à mudança.

Agora, bem no final de 2020, vivemos em um tempo maluco no qual a esperança de que as vacinas funcionem está misturada com a depressão crescente, ou até mesmo desespero, devido ao número crescente de infecções e às descobertas quase diárias de novos desconhecidos sobre o vírus. A princípio, a resposta para “O que deve ser feito” é fácil: devemos ter os meios e recursos para reestruturar nosso sistema de saúde para que ele possa atender às necessidades das pessoas em um tempo de crise, etc. Porém, para citar a última linha do “Elogio ao comunismo” da peça A Mãe de Brecht, “É a coisa simples que é tão difícil de fazer”.

Existem muitos obstáculos que a tornam tão difícil, sobretudo a ordem capitalista global e sua hegemonia ideológica. Precisamos, então, do comunismo? Sim, mas o que tendo a chamar um comunismo moderadamente conservador: todos as etapas necessárias, da mobilização global contra a ameaça viral – dentre outras ameaças – ao estabelecimento de procedimentos que restringirão os mecanismos de mercado e socializarão a economia, mas realizadas de uma forma que seja conservadora (no sentido de um esforço para conservar as condições para a vida humana – e o paradoxo é que precisaremos transformar as coisas precisamente para manter tais condições) e moderada (no sentido de cuidadosamente considerar os efeitos colaterais imprevisíveis de nossas medidas).

Como apontou Emmanuel Renault, a categoria marxista chave que introduz a luta de classes no coração da crítica da economia política é aquela das “leis tendenciais”, as leis que descrevem uma tendência necessária no desenvolvimento do capitalismo, como a tendência da queda da taxa de lucro. (Como notou Renault, Adorno já havia insistido nessas dimensões do conceito de “Tendenz” de Marx, que o fazem irredutível à mera “tendência”). Descrevendo tal “tendência”, o próprio Marx usa o termo antagonismo: a queda da taxa de lucro é uma tendência que leva os capitalistas a reforçar a exploração dos trabalhadores, o os trabalhadores a resisti-la, de forma que o resultado não é predeterminado mas depende da luta – digamos, em certos estados de bem-estar, os trabalhadores organizados forçando os capitalistas a fazerem concessões consideráveis.

O Comunismo de que eu falo é, exatamente, uma tal tendência: suas razões são óbvias (precisamos de uma ação global para enfrentar as ameaças sanitárias e ecológicas, a economia terá de ser socializada de uma forma ou de outra…), e devemos interpretar a forma com que o capitalismo global está reagindo à pandemia precisamente como um conjunto de reações à tendência Comunista: o falso Grande Reset, o populismo nacionalista, solidariedade reduzida a empatia.

Então como – se – o comunismo prevalecerá? Uma resposta triste: através de mais e repetidas crises. Coloquemos de forma clara: o vírus é ateu no sentido mais forte do termo. Sim, deve-se analisar como a pandemia é socialmente condicionada, mas ela é basicamente o produto de uma contingência sem sentido, não há uma “mensagem profunda” nela (assim como a Peste foi interpretada como uma punição divina nos tempos medievais). Antes de escolher a famosa frase de Virgílio em “acheronta movebo” como o mote de sua Interpretação dos Sonhos, Freud considerou outra candidata, as palavras de Satã no Paraíso Perdido de Milton: “Quais reforços ganhamos da Esperança, / Ou qual resolução do desespero.”

Se não podemos ganhar quaisquer reforços da esperança, se devemos assumir que não há mais esperança em nossa situação, devemos ganhar a resolução do desespero. É assim que nós, Satãs contemporâneos que estão destruindo sua terra, devemos reagir às ameaças viral e ecológica: em vez de procurar em vão pelo reforço em alguma esperança, devemos aceitar que nossa situação é desesperadora, e então agir firmemente quanto a ela. Para citar Greta Thunberg outra vez: “Fazer o nosso melhor não é mais bom o suficiente. Agora precisamos fazer o aparentemente impossível.”

A futurologia lida com o que é possível, precisamos fazer o que é (do ponto de vista da ordem global vigente) impossível.

*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

Tradução: Daniel Pavan

Publicado originalmente na revista Jacobin

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