1964: ontem, hoje e sempre

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Por Celso Frederico*

Conseguirão os partidos de esquerda sair da zona de conforto, de sua “bolha”, e formar um amplo leque de alianças? Ou, ao contrário, seguirão a política do ressentimento e do autoisolamento, repetindo a ineficaz receita do “sanduíche de pão com pão”, pregando apenas para os convertidos?

Cinquenta e seis anos depois, o golpe de 1964 continua sendo um objeto de estudo que desafia os historiadores e inflama o discurso político. Nada mais natural, considerando-se a importância do acontecimento e seus terríveis desdobramentos. À medida que o tempo passa, a perspectiva do presente se impõe entre o historiador e o seu objeto de estudo, problematizando a objetividade da interpretação.

Eric Hobsbawn, ao voltar-se para a história do presente observou: “já se disse que toda história é história contemporânea disfarçada”; pois “o passado não pode ser entendido exclusiva ou primordialmente em seus próprios termos: não só porque ele é parte de um processo histórico, mas também porque somente esse processo histórico nos capacitou a analisar e a compreender coisas relativas a esse processo e ao passado”.

No caso do golpe de 1964, coube inicialmente aos vencedores impor sua versão dos fatos. O escritor Érico Veríssimo, cunhando a expressão “operação borracha”, resumiu magnificamente o intento de apagar a memória da rica experiência vivida pelo país no pré-64. A “bagunça”, “anarquia”, “subversão” e “corrupção” haviam sido enfim superadas com a nova ordem e a autoridade recém- instauradas.

A repressão associada à campanha ideológica calou os vencidos. Mas, os seus ecos se fizeram sentir, tempos depois, em alguns estudiosos das ciências sociais, especialmente os da Universidade de São Paulo. Críticos da ditadura, por eles chamada eufemisticamente de “autoritarismo”, reservaram para o período anterior o conceito vago de “populismo”, embaralhando, assim, o governo de João Goulart com Perón, Nasser e todos os demais políticos que não se encaixam no figurino da ideologia liberal. A ausência de rigor teórico gerou uma proliferação de teorias sobre “política populista”, “governo populista”, “sindicalismo populista” etc. Verdadeiro passaporte universal, tal teoria tudo incluía para tudo diluir numa generalização abusiva que tanto prejuízo trouxe às ciências sociais.

A boa tradição historiográfica, ao contrário, mantém distância da generalização que dilui os acontecimentos num todo indistinto. Mas, por outro lado, opõe-se também ao empirismo que isola o fenômeno estudado de seu contexto global. E, aqui, cabe como exemplo o importante trabalho jornalístico de Elio Gaspari que nos mostra com minúcias a ação dos golpistas, mas não revela as conexões que eles mantinham com os grupos econômicos nacionais e internacionais. A ênfase unilateral na singularidade parece ser uma característica do jornalismo enquanto forma de conhecimento da realidade, como observou Adelmo Genro Filho.

Outro exemplo da fixação no singular desconectado do universal são também aquelas reconstruções da história feitas a partir da memória de alguns participantes, personagens centrais ou coadjuvantes dos grandes acontecimentos. Quase sempre a história torna-se aí memorialística ou, para ser preciso, um discurso coexistindo ao lado de outros discursos, todos eles com a mesma importância na reconstituição dos fatos. O resultado final é o relativismo que nos afasta da verità effetuale delle cose, característico da pós-modernidade.

Uma das referências mais citadas nessa vertente é o ensaio de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. Último texto do autor, apresenta uma surpreendente visão “não-linear” do processo histórico. Os aforismos de Benjamin, de extraordinária beleza, formam uma peça literária enigmática, aberta às mais diferentes apropriações.

Benjamin havia proposto uma nova forma para se estudar a história: uma concepção baseada na memória como força capaz dereestabelecer o passado. O historiador não deve “reconstituir” o passado tal como ele foi, pois isso, segundo ele, é um procedimento positivista que reifica o passado e a experiência vivida dos homens. Trata-se, isto sim, de “relembrar” o passado, transformá-lo num passado presente. Os textos anteriores do autor, todavia, já se haviam encarregado de fazer o diagnóstico da dissolução da experiência no mundo moderno. O pensamento de Benjamin nos conduz assim a um impasse, o que só instiga ainda mais a luta pelo real significado de seu pensamento.

A intenção revolucionária de Benjamin, acompanhada de uma argumentação teológica e messiânica, foi, posteriormente, abandonada por diversos autores que, dele, só retiveram o antievolucionismo, numa apropriação irracionalista que passou a orientar a chamada “nova história” e toda a pós-modernidade.

A história do “Eu”

Uma problematização inteligente dessa tendência foi desenvolvida pela ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Com a democratização, a Argentina conheceu uma quantidade impressionante de relatos. Inicialmente, eram os testemunhos feitos em tribunal para condenar os torturadores. Iniciou-se, a partir daí um mergulho no passado, um esforço para recuperar a memória dos acontecimentos: todos eram instados a relembrar os episódios. E esse movimento não ficou restrito aos tribunais – lá, eles tiveram uma validade indiscutível. Uma quantidade impressionante de relatos, testemunhos, depoimentos, filmes, livros, etc. apontavam para outra possibilidade: a reconstituição do passado feita por meio de testemunhos em primeira pessoa.

O que interessa à autora é acompanhar essa tentativa de colocar o testemunho pessoal como quase um substituto da historiografia: uma “história do eu” que se opõe à “história do nós”; o relato subjetivo, baseado na experiência dos indivíduos, ocupa o lugar do estudo distanciado e rigoroso do historiador às voltas com a história social (que não se confunde com a pluralidade dos “eus”).

A testemunha ocular tem um valor inconteste nos tribunais. Mas, transportar esse método, e só ele, como o método de reconstituição dos fatos históricos é permanecer na incerteza de uma certeza presunçosa. O relato pessoal, enquanto um tipo especial de discurso, pertence à “retórica da persuasão”: seu objetivo é convencer o interlocutor. O historiador, ao contrário, como bem observou Beatriz Sarlo, busca o esclarecimento dos fatos e não o convencimento do leitor. A narrativa, portanto, não pode substituir a explicação.

O relato subjetivo prescinde da análise e da reflexão, pois estas exigem um distanciamento entre fato e interpretação. E a palavra “distanciamento”, desde Brecht, expressa a desconfiança da razão que questiona a relação imediata entre a experiência e a sua representação.

Finalmente, os casos individuais, enquanto individuais, têm pouco interesse para a reconstituição da história. Assim, a ação de um indivíduo só interessa para a história enquanto ela for um elemento significativo, movido pela lógica geral do processo, que a ação ajuda a iluminar e é por ele iluminado.

Como se pode perceber, as relações entre o presente e o passado são, portanto, relações tensas: toda concepção de história se posiciona, cada uma a seu modo, na interpretação do passado e sua relação com o tempo presente. A historiografia desconfia da memória e esta põe em dúvida as tentativas de reconstituição objetiva que excluem o papel da subjetividade.

A reconstrução da história através do testemunho pessoal é sempre problemática. Apesar da insistência de se oferecer a própria vivência como critério, há uma incontornável ambiguidade. O passado evocado não é necessariamente o passado tal como foi efetivamente vivido, pois o presente tende, digamos assim, a “corrigir” o passado, imprimir-lhe, a posteriori, um sentido. Sem contar que, com o passar do tempo, as pessoas podem passar por profundas mudanças ideológicas e, assim, reinterpretar os acontecimentos vividos à luz de suas novas concepções.

Um exemplo brasileiro é a produção memorialística de Fernando Gabeira, empenhada em contar aquilo que foi reprimido e censurado: a história da esquerda armada, uma história a contrapelo que se opõe à história oficial. Em suas palavras, trata-se da “fatia que me tocou viver e contar”.

Um de seus livros, O que é isso companheiro (Sextante), foi sucesso de público com direito a várias edições. Trata-se de um testemunho da história vivida pelo autor. Mas, a inquietante pergunta que dá título à obra já nos coloca uma indagação – feita muito tempo depois da experiência vivida – sobre o próprio sentido daquela experiência. Uma coisa, portanto, era o passado como foi efetivamente vivido e pensado pelos militantes de esquerda; outra, a rememoração que resgata o passado com os olhos e os valores do presente. E Gabeira, como se sabe, mudou muito.

Há um estudo sobre a obra de Gabeira feito por Davi Arrigucci Jr. Comentando as dificuldades desses depoimentos, ele se pergunta: “numa época em que tudo é mediado, como chegar à experiência íntima do vivido?”. A derrota total do movimento e seus efeitos sobre a estrutura psicológica do autor vão aparecendo no texto, pouco a pouco. Os problemas de identidade vividos pelo autor após os fatos narrados transparecem no livro, em diversas passagens em que fatos são narrados e, ao mesmo tempo, se aponta para a ingenuidade dos propósitos e a total impossibilidade da ação se realizar como prevista.

Arrigucci, então, faz o seguinte comentário: “este é o ponto mais delicado do depoimento enquanto tal, pois o Eu que narra não é o Eu que viveu os fatos (…). O que mais importa, a meu ver, é observar a mudança de estatuto do texto, que se verifica com a passagem do ser que simplesmente depõe ou conta história da fração fundamental de sua vida ao ser que se interroga sobre o sentido do que viveu”.

Na sequência, Arrigucci analisa os livros posteriores de Gabeira, Entradas e bandeiras (Codecri) e O crepúsculo do macho (Codecri), para mostrar como a interrogação sobre o sentido – feita a posteriori – se sobrepõe ao efetivamente vivido que, na época, revestia-se de um significado muito diferente do momento em que foi narrado.

A historiografia dialética

Contra a generalização abusiva e o empirismo, a historiografia dialética erige como tarefa a descoberta da particularidade, “a análise concreta de uma situação concreta”; e, contra as pretensões da memória de impor um sentido ao passado, a dialética prefere falar no “presente como história”: os fatos do passado são sempre mais bem compreendidos no presente, quando o ciclo histórico já se realizou.

Se é o capitalismo que ajuda a entender o pré-capitalismo, se o presente nos revela com melhor clareza o passado, uma questão prévia aflora na consciência do pesquisador: De que presente se trata? Qual é o presente que explica o passado? É exatamente aqui que a dialética se distingue dos demais procedimentos. Há que distinguir sempre entre o presente-empírico, os diversos momentos circunstanciais que se sucederam ao fato estudado, e o presente-resultado, aquele presente que realizou as tendências e as promessas contidas no passado. A dialética, evidentemente, trabalha com a segunda possibilidade e os discípulos não-marxistas de Benjamin, com a primeira.

Tantos anos depois, o golpe de 1964 pode ser visto como um capítulo de um ciclo histórico que ainda não se fechou. Apesar das drásticas transformações vividas pela sociedade brasileira, as questões de fundo que estiveram presente e que ocasionaram o movimento golpista continuam sendo de uma desagradável atualidade: as reformas de base (em especial, a agrária), o papel do Estado na condução da economia, a questão nacional e a luta anti-imperialista, são temas atualíssimos repostos numa nova configuração histórica, uma vez que ainda não foram equacionados. É impossível, portanto, manter a passividade de um arqueólogo: falar sobre o golpe de 1964 implica necessariamente tomar partido nas querelas do presente, o que será feito em diversos momentos.

As lições de 1964

O conjunto das forças sociais que apoiava Goulart foi derrotado sem esboçar nenhuma reação significativa. Perante essa derrota acachapante, a esquerda embrenhou-se numa disputa teórica sobre os erros políticos cometidos no pré-64. A discussão sobre o significado do golpe gerou duas interpretações opostas que passaram, doravante, a orientar a oposição ao regime militar. A interpretação da história passou assim a ter consequências práticas imediatas. Uma vez mais, a urgência do presente obrigou os homens a revisitar o passado e atribuir-lhe um sentido ditado pelas premências do presente e o desejo de nele encontrar pistas para um futuro a ser construído.

De um lado, alinharam-se aqueles que lamentavam o fracasso da política de alianças praticada no pré-64, atribuindo tal fracasso a uma radicalização política que não avaliou corretamente a correlação de forças. O acirramento dos conflitos sociais (greves gerais, invasões de terra, revolta dos sargentos etc.) fez com que setores da classe média retirassem o seu apoio ao governo, promovendo as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Isolado e enfraquecido, o governo caiu sem oferecer resistência. A conclusão tirada acenava para uma nova política de alianças para isolar e derrotar a ditadura. Inicialmente, tentou-se articular uma “frente ampla” com todos os políticos marginalizados pelo golpe; depois, incentivou-se a participação no MDB.

De outro lado, agrupou-se uma corrente composta por diversos segmentos que, pelas razões estratégicas mais diferentes, confluíram na crítica à política de alianças considerada por eles como um equívoco, uma mistificação que serviu para desvirtuar a consciência de classe do proletariado ao colocá-lo a reboque de uma burguesia nacional já integrada ao capitalismo internacional e, portanto, desinteressada não só no projeto nacional-desenvolvimentista como, também, contrária às reformas de base. Para essa corrente, não se tratava de refazer a política de alianças (o “populismo”) para “derrotar” o regime militar e sim desenvolver uma estratégia revolucionária para derrubar a ditadura. Por isso, os militantes de diversas agremiações de esquerda pregavam o voto nulo nas eleições, entendidas estas como “farsa” montada para legitimar o regime de força.

Essa última corrente acabou obtendo a hegemonia. A política de “tensão máxima” (passeatas e guerrilha urbana) teve o seu desfecho no Ato Institucional número 5 e na subsequente repressão.

A oposição ao regime, contudo, iria recompor-se lentamente a partir de 1973. A crise do “milagre brasileiro” e o ressurgimento do movimento operário assinalam uma nova conjuntura. De novo, as disputas sobre o significado do golpe fizeram-se presentes para dividir as forças oposicionistas.

Os partidários da política de alianças procuravam enfatizar a “questão democrática” para isolar politicamente a ditadura. Consequentemente, apoiavam a oposição legal ao regime (MDB/PMDB) e a luta, a partir de 1976, pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. No que diz respeito ao movimento operário, defendiam a reativação dos sindicatos e a inclusão do proletariado como parte integrante da frente antiditadorial. Esse foi o espírito que animou a Unidade Sindical, o movimento que procurou agregar o conjunto das organizações classistas, independentes de suas opções ideológicas.

Os críticos da política de alianças, contrariamente, passaram a defender a autonomia do movimento operário. Pretendiam, desse modo, manter o movimento operário distante do discurso democrático que estaria sendo hegemonizado pelos setores liberais. Coerentemente, em nome da autonomia operária, recusaram-se a participar da oposição legal e chamavam a Constituinte de “Prostituinte”, considerando-a uma reivindicação burguesa alheia aos interesses classistas. A representação de tais interesses, por sua vez, deveria ser construída pela base, através da criação de “comissões de fábrica” autônomas e não pela participação nos “sindicatos de Estado” – a “herança fascista” da era Vargas.

Essa divisão nas forças oposicionistas ficou adormecida após a queda da ditadura e a proclamação da Constituinte Cidadã. A ditadura parecia então como uma realidade que ficou definitivamente para trás. Mas, como alertava Millôr Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente”…

Com o golpe contra Dilma Roussef e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, o passado voltou a nos assombrar. A ascensão da extrema direita ao poder e a “reabilitação” do regime militar prenunciavam a ameaça de um retorno a um passado edulcorado pela propaganda governamental. Vivemos hoje a batalha entre “narrativas” – a nova expressão que passou a substituir “discurso” e “linguagem”, todas elas atualizando no contexto pós-moderno das fake news a máxima de Nietzsche: “não existem fatos, mas apenas interpretações”.

Perante o dramático quadro político, a questão das alianças surge novamente exigindo uma tomada de posição das forças progressistas. Perante o avanço do fascismo torna-se necessário uma ampla frente democrática, unindo todos (todos!) os descontentes com o atual governo. Conseguirão os partidos de esquerda sair da zona de conforto, de sua “bolha”, e formar um amplo leque de alianças? Ou, ao contrário, seguirão a política do ressentimento e do autoisolamento, repetindo a ineficaz receita do “sanduíche de pão com pão”, pregando apenas para os convertidos? Convém também lembrar que hegemonia não é algo dado a priori e imposto aos eventuais alinhados, mas uma conquista obtida no decorrer de um processo.

Como se pode concluir, continuamos, ainda, num “presente empírico”, e, o que é pior, ameaçados pelo eterno retorno do mesmo e da permanência em um presente-mais-que-imperfeito que parece não ter fim.

*Celso Frederico é professor titular aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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