O jornalismo contaminado

John Wells, "Perfis", 1949.
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Por DENNIS DE OLIVEIRA*

É o racismo à brasileira que permeia a Folha de S. Paulo

Na semana passada, as redes sociais foram tomadas por uma polêmica envolvendo o antropólogo Antonio Risério que publicou no dia 16 de janeiro um artigo no caderno Ilustríssima do jornal a Folha de S. Paulo intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”. Na sequência, manifesto de mais de 180 jornalistas criticaram o texto acusando-o de ser racista. Um outro grupo de pessoas lançou uma carta de apoio à Risério.

O jornal Folha de S. Paulo se defendeu, por meio do seu editor Sérgio Dávila, com o costumeiro argumento de defesa do pluralismo e acrescentando ainda um certo tom ameaçador contra os jornalistas que assinaram o manifesto. Primeiro, afirma que “o texto erra, é parcial e faz acusações sem fundamento, três características indesejáveis em se tratando de profissionais do jornalismo”. Depois diz que “a Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista”. Isto é, que os jornalistas que assinaram tiveram posturas indesejáveis e que a Folha necessita de uma redação disposta a implantar o seu projeto (o que significa que não como estes jornalistas fizeram).

Neste artigo quero retomar justamente esta ideia de pluralismo e diversidade que parecer ser um mantra na argumentação do jornal. Em artigo publicado no jornal Unidade sobre o caso da saída da ativista Sueli Carneiro do Conselho Editorial e o texto do Leandro Narloch sobre as “sinhás pretas” já abordei inicialmente este aspecto. Importante entender o jornal Folha de S. Paulo dentro de um contexto político produto da combinação de uma democracia historicamente incipiente no Brasil, o neoliberalismo pressionando para restrição da democracia e a postura da mídia hegemônica pressionada pelo novo ecossistema midiático em que as informações que circulam pelas redes sociais ganharam espaço prejudicando os negócios das empresas tradicionais de mídia.

 

Histórico do projeto Folha

No final dos anos 1980, quando o movimento pela democratização do Brasil ganhava força e impulsionava pelo fim da ditadura militar, o jornal Folha de S. Paulo começa a por em prática o seu novo projeto editorial em consonância com os novos tempos. Depois de optar pela prática da autocensura no período mais duro da ditadura (anos 1970) segundo os seus próprios proprietários que justificavam o que chamavam de “postura anódina” como a única alternativa de sobrevivência da empresa; a emergência dos novos sujeitos coletivos no cenário da democratização vislumbrou uma possibilidade do veículo ocupar o espaço de fomentador da esfera pública que se reconstruía.

Naqueles idos dos anos 1980, o jornal Folha de S. Paulo cobriu as ações do movimento estudantil, criou uma página de debates onde personalidades eram convidadas para apresentar análises e perspectivas de assuntos do momento, houve um investimento em montar um time de articulistas e ainda abriu espaço para dar visibilidade a iniciativas sociais de combate à crise econômica. Ao mesmo tempo investiu em estabelecer um padrão industrial de produção jornalística, estabelecendo normas de captação e redação, controles rígidos de qualidade e quase que impondo certo “engajamento” ideológico dentro da redação. Este processo foi analisado de forma brilhante pelo professor Ciro Marcondes Filho na obra O capital da notícia (Ática, 1989).

Com a democratização institucional do país se estabelecendo depois dos anos 1980, a história se encarregou de criar cenários um tanto distintos do que certa parte da intelectualidade rebelde dos anos 1970. É fato que falar em “redemocratização” do país soa um tanto falso porque o Brasil nunca foi plenamente democrático: no período que se considera “democrático” entre 1945 e 1964, o Partido Comunista do Brasil era ilegal, os analfabetos não podiam votar (e isto significava quase 40% da população adulta), os sindicatos eram submetidos ao controle do Ministério do Trabalho. E já no final dos anos 1950, no Rio de Janeiro, surgiram os Esquadrões da Morte no Rio de Janeiro, precursores do que seria o poder paralelo das forças de segurança nos tempos atuais.

O que sempre se colocou nesta ideia de “redemocratização” foi o protagonismo de determinados segmentos da classe média intelectualizada cujas ações foram interditadas com a ditadura militar. A democratização do final dos anos 1980, ainda que mantivesse intacto o aparato repressivo da ditadura militar, inclusive a possibilidade de tutela militar com o famigerado artigo 142 da Constituição, abriu algumas janelas de oportunidades para uma mudança no cenário político. Ao mesmo tempo em que isto ocorria, o capitalismo no mundo todo entrava na sua fase neoliberal, o imperialismo dos Estados Unidos consolidava sua posição com a vitória na Guerra Fria e houve uma avalanche conservadora sem precedentes naquele período.

Este é o cenário contraditório em que o período da “redemocratização” embarcou. E qual a direção que tomou o tal “Projeto Folha” e seus entusiastas jornalistas e intelectuais engajados nas lutas contra a ditadura nos anos 1970? Como empresa, é fato que o jornal Folha de S. Paulo embarcou na onda neoliberal, defendendo as ideias de Estado mínimo, privatização de estatais, entre outros. Para manter as ideias de “diversidade e pluralidade” como princípios de valores democráticos; passou a tratar as demandas dos movimentos sociais com ceticismo. E tudo isto se expressava num pretenso estilo “blasé” que sintetizava a indiferença e falta de indignação ante aos gravíssimos problemas sociais que o capitalismo na fase atual gerava com um pretenso “progressismo”.

A indiferença é o único sentimento possível dentro de uma concepção de democracia que vê “diversidade e pluralismo” em uma nação em que o 1% mais rico concentra mais de 50% da riqueza total do país. E mais ainda quando este cenário político começa a ser ocupado por sujeitos e sujeitas negras, pobres, trabalhadores que pressionam para ocupar a esfera pública sem a necessidade de serem “representados” por uma elite intelectual ilustrada como muitos da geração dos anos 1960/70 desejavam que assim seria.

 

Estética das redes sociais

Mais recentemente, a mídia hegemônica passou a ser pressionada pela estética do novo ecossistema midiático em que a esfera pública passou a ser pautada por uma guerra de narrativas. A argumentação foi trocada pela assertividade e, em alguns momentos, pela agressividade e a veracidade substituída pela verossimilhança. Em vez de articulistas, digital influencers. E o jornalismo passou a ser contaminado por aquilo que Paul Virilio chama de “profissionalismo delirante” – depender mais da opinião dos outros que da qualidade da sua argumentação.

A indiferença e o suposto comportamento cético e “blasé” contamina determinados articulistas quando se apercebem que certos debates passam ao largo dos seus controles. Este é o caso do debate do racismo no Brasil. A medida que a discussão sobre o racismo estrutural avança por meio de intelectuais e militantes do movimento negro, mais nítido fica a impossibilidade de se equacionar o problema do racismo dentro dos parâmetros do capitalismo e do liberalismo.

Ao mesmo tempo, defender a manutenção do racismo para um veículo que construiu sua imagem como o porta voz da democracia e dos direitos humanos nos anos 1980 é um tiro no pé. A solução é formalmente ser contra o racismo mas não colocar inserir o combate ao racismo estrutural dentro da filosofia do projeto editorial o que implicaria, por exemplo, em estabelecer que o racismo não deve ser relativizado. E aí deixar o tema como objeto de um debate na estética das redes sociais, com assertividades de todo tipo, apostando que a repercussão possa dar ainda mais visibilidade ao veículo na mesma perspectiva que as grandes players das redes sociais: ao mesmo tempo omitir-se de um posicionamento (neutralidade?) centrar seu negócio na (pretensa?) “liberdade de opinião”. E para tanto, a FSP conta com um grupo de “provocadores” que vira e mexe toca nestas feridas, como o próprio Risério, Narloch, Magnolli entre outros.

Mas este pluralismo e a diversidade tão apregoados pela Folha de S. Paulo não são ilimitados como aparentam. Nações que não seguem o modelo institucional aceito pelas potências ocidentais não são considerados como democracia (daí a qualificação de Nicolas Maduro, presidente eleito da Venezuela, como “ditador” e Fujimori que praticou um golpe de Estado no Peru como “líder” ou até mesmo “presidente”); ações de movimentos sociais que questionam a propriedade privada sem função social são taxadas de “invasões” (e não “ocupação” como os movimentos sociais classificam estas ações) e por aí vai – não há diversidade e pluralidade quanto a isto.

No ano de 2014, a empresa que edita o jornal Folha de S. Paulo foi processada por permitir que seus funcionários fizessem brincadeiras racistas contra um trabalhador negro prestador de serviço na empresa. A empresa recorreu a surrada alegação de quem é pego praticando racismo: foi apenas uma brincadeira. O juiz não aceitou a alegação e condenou a empresa a indenizar o trabalhador vítima do racismo. O jornal recorreu e perdeu também em segunda instância embora tenha obtido uma redução significativa do valor da indenização. (clique aqui). Isto mostra que o combate formal ao racismo no jornal não está diretamente vinculado a abrir mão dos privilégios brancos. É o racismo à brasileira que permeia o veículo.

*Dennis de Oliveira é professor no curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP e nos programas de pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH e no de Integração da América Latina (Prolam).

 

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