A independência inconclusa do Brasil

Imagem: Leonardo Dourado
image_pdf

Por LEONARDO BOFF*

Aqui a democracia delegatícia foi e continua sendo de baixa e até de baixíssima intensidade, com uma liberdade tão somente formal e jurídica

O dia 7 de setembro de cada ano celebramos o dia da Independência do Brasil. Mas se trata de uma independência inconclusa. Foi feita por Dom Pedro I montado em cima de um burro e não como épica e falsamente o pinta Meireles montado num belo cavalo.

Ao independizar-se do Brasil, foram mantidas as mesmas relações da época colonial, dos senhores da Casa Grande e dos escravizados da senzala. Não esqueçamos o fato de que a Independência se fez ainda no quadro do escravismo que foi brutal e cruel para milhões de pessoas trazidas de África e aqui escravizadas. Mesmo depois da Lei Áurea de 1888, os escravizados não tiveram nenhuma compensação seja em terras, trabalhos e oportunidades. Foram lançados ao deus-dará sem absolutamente nada. Hoje os afrodescendente constituem de 54% de nossa população para a qual nunca saldamos a nossa dívida por tudo o que sofreram e ajudaram a construir esta nação.

Como país, fomos sempre dependentes. Primeiro de Portugal, depois da Inglaterra, em seguida dos EUA e atualmente dos países opulentos com suas mega corporações que exploram nossas riquezas.

Nunca houve um projeto de nação. Sempre predominou, como foi amplamente mostrado pelos historiadores, uma política de conciliação das classes endinheiradas entre si e de costas para o povo, excluído e covardemente desprezado e odiado. Elas ocuparam o Estado e seus aparelhos para garantirem seus privilégios, usufruir das vantagens dos grandes projetos, das propinas e da corrupção simplesmente naturalizada. Por isso temos um país profundamente dividido entre um pequeno número de miliardários e bilhardários, uma porção de classe média e entre as grandes maiorias marginalizada e excluídas dos bens da civilização.

Houve, na época colonial, resistências e revoltas de gente do povo, de negros e indígenas, todas esmagadas violentamente com enforcamentos, fuzilamentos ou, no melhor dos casos, com o exílio e com golpes e ditaduras na época republicana.

Na verdade, aqui a democracia delegatícia foi e continua sendo de baixa e até de baixíssima intensidade, com uma liberdade tão somente formal e jurídica, mas sem o seu insubstituível complemento, a igualdade. Por isso grassa uma vergonhosa desigualdade, das maiores do mundo, que é uma injustiça social tão grave que clama aos céus pelas vítimas que produz.

Olhando para trás nossa história pátria é marcada por sombras escuras, do genocídio indígena, da colonização, do escravismo e da dominação das elites do atraso, como a qualifica o sociólogo Jessé Souza que agarram ao poder.

Quando alguém vindo do andar de baixo, sobrevivente da grande tribulação brasileira, chegou ao poder, Luis Inácio Lula da Silva e com sua sucessora Dilma Rousseff introduziram políticas sociais de inserção de milhões de pobres e famintos, logo se armou contra eles um golpe jurídico-parlamentar-midiático. Desta forma se salvou a velha ordem (da desordem social) e foi continuada por uma figura insana e psicopática que tirou do armário de partes importantes da população tudo o que havia de ódio e de perversão, recalcadas e fruto tardio do tempo da escravidão. Os escravizados eram simplesmente “peças” a serem vendidas e compradas no mercado e tratadas com os famosos três pês: pau, pão e pano: pau como chibatadas desumanas, pão para não morrem de forme e pano para esconderem as vergonhas. A prática era da violência que continua ainda hoje com a população negra e pobre.

Fine finaliter: aqui nossa independência foi manca e inacabada, o que nos tira qualquer sentido de celebração. Como nunca houve uma revolução, como nos grandes países qu deram seu salto de qualidade, que apeasse do poder-dominação a classe do privilégio e do enriquecimento fácil, nunca nos foi dada a oportunidade de fundar uma nação com um projeto para todos, altivo e ativo. Apenas prolongamos o regime de dependência de vários outros poderes forâneos até a presente data.

Qual seria a nossa chance e o nosso destino? Olhar para frente e par o futuro. Somos uma nação continental, com a maior riqueza ecológica do planeta em termos de água doce, florestas tropicais, solos férteis, imensa biodiversidade e um povo aberto, hábil e inteligente que conseguiu sobreviver a todo tipo de opressão.

Sabemos que a Terra alcançou o seu limite. No dia 28 de julho de 2022 ocorreu o Dia da Sobrecarga da Terra (The Eath Overshoot Day) ou seja, utilizamos todos os bens e serviços naturais indispensáveis para a vida. Entramos no cheque especial. Usamos nos sete meses passados, todo o estoque de água, minerais, vegetais e energia que o planeta pode produzir e regenerar no período de 365 dias. Para continuarmos a viver seria necessária a biocapacidade de 1,75 Terras que não temos.

Com o crescimento inesperado do aquecimento global e com o que já existe de CO2 e metano acumulados na atmosfera, os eventos extremos serão inevitáveis. Chegamos atrasados. Com ciência e técnica podemos apenas mitigar os efeitos extremos que virão com destruição de ecossistemas e milhares de vidas humanas. Segundo dados deste ano do IPCC isso poderá ocorrer nos próximos 3-4 anos. Haverá pontos de inflexão sociais como a erosão do modo de vida das populações, aumento de conflitos, violência, migração e crises humanitárias, afetando a infraestrutura, a segurança alimentar, hídrica e energética. Muitas nações não conseguem produzir o que sua população necessita, situação agravada pela intrusão do Covid-19.

Esta realidade sombria poderá se tornar uma catástrofe global. É nesse ponto que entra a independência possível e real do Brasil. Ele pode ser a mesa posta para as fomes e as sedes de toda a humanidade. Esta dependerá em grande parte do Brasil, da umidade de nossa Amazônia, da proteína de nosso gado e aves e da produção de alimentos de nossos solos. Grande parte dos países, hoje independentes, serão dependentes de nós. Finalmente teremos alcançado a nossa real independência, não para nosso orgulho e benefício, mas como serviço para a vida na Terra e a sobrevivência da humanidade.

Finalmente poderemos entoar a canção carnavalesca: “Liberdade, Liberdade! Abre as asas sobre nós. E que a voz da Igualdade seja sempre a nossa voz” e de toda a humanidade.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra, (Vozes).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES