Responsabilização penal do fascismo

Imagem: Ezra Comeau
image_pdf

Por LARA FERREIRA LORENZONI & MARCELO SIANO LIMA*

Ao considerarmos o sistema penal enquanto ferramenta pragmática em especiais ocasiões, não o fazemos descuidadamente

Há duas tentações aparentemente opostas que atormentam críticos antipunitivistas: (i) desejar a completa libertação de todes da irracionalidade do sistema penal; (ii) pleitear a legitimidade da demanda pela utilização desse aparelho em casos diretamente atentatórios à democracia e aos direitos humanos. As irrupções fascistas dos últimos tempos, sobretudo no episódio do 8 de janeiro, com a ascensão da palavra de ordem “Sem Anistia”, têm deixado esse angustiante paradoxo ainda mais evidente.

A “democracia” tem uma série de acepções que variam a depender do espectro político de que se parte. Entretanto, pensamos haver um ponto histórico-social e meritório comum: a tentativa (bem-sucedida ou não) de limitar o exercício do poder.

Já o fascismo, movimento autoritário de extrema direita, em suas diversas composições ao longo da história, tem por característica basilar a busca obsessiva pela pureza de determinado grupo. Acredita-se na superioridade de alguns, os “eleitos”, que devem se empenhar numa luta darwiniana contra “eles”, os inferiores, a serem submetidos pela força e, em última instância, aniquilados. Esse fenômeno político, por essência, não admite opiniões que o questionem. Nele, não se tergiversa com o inimigo: elimina-se-lhe.

A questão que se coloca é: como lidar com isso no interior de uma democracia agonizante em que o sistema penal – com toda a sua crueza e seletividade – já está colocado? Enquanto críticos e refratários ao poder de punir do Estado, devemos abrir mão desse dispositivo nesse caso específico? Estaríamos mais uma vez a reproduzir a famigerada “esquerda punitiva”?

Adoraríamos que a resposta (e a realidade) fossem simples. Existem vários argumentos relevantes de ambos os lados, todos merecedores de atenção nesse debate. Sem nenhuma pretensão de esgotá-lo, acreditamos que quem se coloca a favor da responsabilização penal daqueles que desempenham ofensas graves de conteúdo golpista e fascista ao regime democrático desde uma perspectiva antipunitivista não está ingenuamente cedendo ao canto sacrificial das sereias. Sabemos o que é o sistema de justiça criminal, o que ele significa na estrutura capitalista das opressões e como é usado sistematicamente contra nós.

A questão é mais profunda. Vivemos num país em que o Estado de Mal-Estar nunca se afastou. Não há um consenso histórico solidificado sobre as chagas recalcadas que atormentam nossa trajetória autoritária coletiva (principalmente, colonialismo, escravização e ditadura empresarial-militar). Não tivemos o processo político de redenção dos nossos mortos. Não perpetramos o Tribunal da Memória de uma ditadura que, não por acaso, voltou a morder nossos calcanhares.

Estamos cientes de que o monstro punitivo é insaciável. Nossa interseção não alterará seu mórbido apetite de engolir corpos de raça e classe social determinadas. Sem dúvida, ele é inconsertável. Por isso, mantenhamos ou não uma posição integralmente “coerente” com nosso horizonte libertário, fato é: ele nos devorará de qualquer forma. Não é a maneira como nos comportamos que define o tipo de tratamento repressivo estatal a recair sobre nós: é o conteúdo de nosso enfrentamento (antifascista, antirracista, anti-LGBTfóbico, antigenocida, pela melhoria das condições de trabalho, saúde, educação etc.).

Ao considerarmos o sistema penal enquanto ferramenta pragmática em especiais ocasiões, não o fazemos descuidadamente, cegos pela excitação do poder e da vingança. Para nós, é, antes de tudo, uma questão de sobrevivência. O direito penal é a melhor arma contra o fascismo? Definitivamente não. É a única? Não, absolutamente. Apesar disso, quem deseja nos exterminar usará, sem pudores, de todos os meios para fazê-lo.

Para além do senso comum policialesco-punitivista e de uma postura revolucionária sem consequências práticas, a realidade material do estado de exceção permanente está dada e precisamos lidar com ela. Enquanto assim estiver, nosso compromisso imediato é com a vida e com a democracia – com todos os problemas (e potencialidades) que esse significante e suas diversas significações apresentam.

Não se trata de lançar integralmente nossos anseios emancipatórios aos moinhos de vento da institucionalidade. Não estamos falando aqui de método de longo prazo. Com um olho no horizonte utópico abolicionista e outro bem atento à materialidade do presente, que impõe respostas urgentes, ainda que não sejam as mais bonitas e idealmente melhores, seguimos nesse caminho tortuoso, sobrevivendo e lutando por dias menos impiedosos, aliando a utopia ao imediatamente possível.

Nesses tempos bestiais de totalitarismo financeiro, nós, impuros, profanos, contraditórios e sedentos por memória, admitimos: os golpes vêm de todos os lados e as trincheiras são múltiplas. Enquanto for necessário, criticamente e desprovidos de quaisquer ilusões com as promessas da modernidade, não abriremos mão de nenhuma.

*Lara Ferreira Lorenzoni, advogada, é doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

*Marcelo Siano Lima é doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES