Ataques rasteiros

Imagem: Dilruba Sarıçimen
image_pdf

Nísia Trindade é mulher e competente líder da reconstrução do SUS, que por suas qualidades vem sofrendo constantes ataques à frente do Ministério da Saúde

A tentativa de fritura de Nísia Trindade não surpreende. Embora a maioria da força de trabalho na saúde seja feminina, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de Ministra da Saúde no País. Tem um currículo sólido de pesquisa na área da Saúde Pública e a experiência de uma gestão técnica bem-sucedida na Fiocruz. Tanta qualificação profissional numa mulher provoca chiliques em muita gente.

Essa gente a que me refiro habituou-se a aceitar mulheres apenas como subordinadas para executarem os cuidados de saúde, seja na enfermagem e nas outras profissões, seja como cuidadoras domésticas de acamados e idosos. É uma turma que fica desde um pouco desconfortável até descontrolada quando mulheres assumem posições de comando. Diz que “mulher trocar fraldas e dar banho, tudo bem. Chefiar já é ousadia demais”.

Essa mesma gente insiste nas indicações políticas para cargos de chefia e direção, e não somente na saúde. Recusa-se terminantemente a mudar o paradigma para nomeações e promoções de carreira com base em critérios técnicos. Nem que sobrem exemplos dramáticos e recentes de adoecimento, sequelas permanentes ou mortes por COVID-19, dengue, meningite, febre maculosa e desnutrição. Fato: política de QI, o velho e malfeito Quem Indica, também mata ou incapacita.

Mas não só. Nísia Trindade foi nomeada por um Presidente da República odiado por grande parte das nossas classes média e alta – brancas e urbanas. Um Presidente atacado por qualquer motivo ou sem motivo nenhum, diuturnamente e sem pudor, por veículos de imprensa poderosos, membros de grupos religiosos, empresários, influenciadores digitais, negacionistas da ciência e militantes do whatsapp. Esse ódio tem uma capilaridade incrível e respinga em tudo e todos que se relacionem ao Presidente.

Apesar do subfinanciamento da Saúde, assunto escamoteado pelos críticos do Presidente junto com a CPMF e o teto de gastos do governo, o orçamento da Pasta comandada por Nísia Trindade ainda é um dos maiores. Em ano de eleições municipais, costuma aumentar o apetite por um bocadinho dessa verba nos 5568 cantinhos eleitorais do país. Essa pode ser uma das razões da intensificação súbita da campanha para desgaste da Ministra. A baixaria pode estar apenas começando.

Por que os moralistas de plantão em todo o território nacional não se empenham com a mesma energia para corrigir as distorções e eliminar as brechas para corrupção em todas as esferas administrativas do SUS? Afinal, não se exige dos profissionais do SUS dedicação exclusiva ao serviço público, nem quarentena após a exoneração para assumir cargos de direção em clínicas, hospitais e empresas – próprias, de parentes ou de laranjas – muitas dos quais têm contratos com… o SUS.

Assim, o setor público e o privado se entrelaçam. Às vezes, os nós cegos da saúde envolvem até o crime organizado, e viram caso de polícia e Ministério Público. Basta refrescar a memória coletiva sobre as suspeitas de enriquecimento ilícito envolvendo gestores de alguns hospitais filantrópicos brasileiros e de Organizações Sociais de Saúde (OSS) na última década.

A falta de transparência na prestação de contas e as denúncias de irregularidades foram tão sérias que, pela Lei Estadual no. 8.986 de 25 de agosto de 2020, as OSS não poderão mais assumir a gestão de unidades de saúde no Estado do Rio de Janeiro sem processo de qualificação público, objetivo e impessoal. Também serão obrigadas à publicação anual da síntese do relatório de gestão e do balanço no Diário Oficial do Estado.

Há indícios fortes de que a Ministra Nísia Trindade é alvo de ataques rasteiros porque incomoda os preconceituosos, os negacionistas e os que estão envolvidos em conflitos de interesses com raízes profundas no setor da saúde.

Mas a Ministra não está sozinha. Ela é a comandante-em-chefe de milhões de médicas, enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas, gerontólogas, nutricionistas, biólogas, biomédicas, educadoras físicas, físicas especializadas em física médica, tecnólogas de sistemas biomédicos, farmacêuticas, psicólogas, odontologistas, médicas veterinárias, técnicas de radiologia e de imobilização ortopédica, agentes comunitárias de saúde, assistentes sociais e motoristas de ambulância que cuidam das vidas sob responsabilidade do SUS. Também estão nessa retaguarda: funcionárias administrativas, de tecnologia da informação, hotelaria hospitalar (recepção, limpeza, lavanderia, cozinha) e manutenção predial para o SUS.

Várias dessas profissionais receberam aplausos pela atuação ininterrupta e corajosa durante a pandemia de COVID-19. Depois, voltaram a ser tratadas com a indiferença ou o desprezo de sempre por muitos gestores do SUS. Outras permaneceram invisíveis para os políticos e gestores mesmo durante a pandemia. Agora, tem-se a oportunidade histórica de reparação dessas e de outras injustiças com a ministra Nísia Trindade como líder competente da reconstrução do SUS.

Falta saber se o País está à altura dessa liderança.

*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista exclusivamente na área assistencial do SUS no interior paulista.

Referências


Agência Brasil EBC. TCE proíbe estado do Rio de contratar OSs para hospitais de campanha. Publicado em 09/06/2020.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-06/tce-proibe-estado-do-rio-de-contratar-oss-para-hospitais-de-campanha

CREMERJ. CREMERJ entra com representação no MPT-RJ contra OS ISG por atraso de salário dos médicos. Publicado em 02/06/2023.

https://www.cremerj.org.br/informes/exibe/5732

Lei Estadual no. 8.986 de 25 de agosto de 2020. Dispõe sobre a qualificação de entidades sem fins lucrativos como organizações sociais, no âmbito da saúde, medicante contrato de gestão, e dá outras providências.

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5700259/mod_resource/content/1/ALERJ%20-%20Lei%208986%202020.pdf

http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/c8d2df9a2566fd0e83257911005f4c7a?OpenDocument


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES