O aquífero Guarani

Foto da Lua Cheia em Ubatuba (SP) no dia da passagem de Pepe Mujica (13/05/2025), ex-presidente do Uruguai. Autor: Heraldo Campos.
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Por HERALDO CAMPOS*

“Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.” (Pepe Mujica)

Estive algumas vezes no Uruguai. A primeira foi a passeio nos anos 90 do século passado, viajando de automóvel e com a família, por estar morando na cidade de São Leopoldo (RS) e atuando como professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

As viagens seguintes, nessa mesma década, foram por causa dos estudos que vinham sendo desenvolvidos sobre o grande reservatório de águas subterrâneas conhecido como Aquífero Guarani, que se estende por quatro países do Cone Sul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).

“Os reservatórios de águas subterrâneas, também chamados de aquíferos, são caracterizados em função de seus limites em superfície e subsuperfície, condições de armazenamento e circulação de águas como unidades práticas de investigação e exploração, em escala regional.

A finalidade de um mapa hidrogeológico é estabelecer distinções entre os diversos terrenos e regiões segundo suas características hidrológicas, em associação com a geologia. A elaboração deste tipo de mapa consiste em se colocar, sobre uma determinada área, valores, símbolos e figuras que representem a forma de ocorrência, o movimento e a composição química das águas subterrâneas.

O objetivo principal do Mapa Hidrogeológico do Aquífero Guarani, elaborado por este autor sob os auspícios do CNPq e publicado pela Editora Unisinos, na escala de 1:2.500.000, é oferecer uma visão geral e sintética da distribuição dos recursos hídricos subterrâneos, como suporte para a elaboração conceitual do modelo hidráulico do sistema.

Serve, também, para facilitar aos organismos administradores das águas uma planificada tomada de decisões. Assim, de acordo com seus princípios norteadores, buscou-se apresentar um esforço na integração da informação hidrogeológica, disponível na área estudada ao final dos anos 1990.[1]

Nos anos 2000, outras viagens de trabalho se sucederam para o Uruguai, principalmente para a capital Montevidéu, na função de Facilitador Local do Projeto Piloto Ribeirão Preto pela Organização dos Estados Americanos (OEA), para as pesquisas do Projeto Sistema Aquífero Guarani que se desenvolviam em toda essa grande região.

“Em Ribeirão Preto, o aquífero é a principal fonte de abastecimento de água da cidade e o Projeto Piloto Ribeirão Preto, que abrange mais 12 municípios, representa uma experiência concreta de gestão deste importante recurso. Suas atividades são parte integrante e articulada com as ações do Comitê da Bacia do Pardo, no que diz respeito aos recursos hídricos subterrâneos.

Esta região é destacadamente a maior área entre as demais áreas dos pilotos, tanto no que se refere às suas dimensões físicas (2.500 km²) como no tocante à participação em número e diversificação dos atores locais. A elevada quantidade de universidades, instituições de pesquisas, órgãos e departamentos estruturados há tempos, nas suas diversas funções de atendimento ao público, sempre tiveram acervo técnico e potencial humano para o desempenho das atividades planejadas para o atual Plano de Gestão Local do Aqüífero Guarani”.[2]

“Nos dias de hoje, muito tem se falado de que as águas superficiais seriam a saída para suprir o déficit do abastecimento populacional por causa do comprometimento das águas subterrâneas, seja pela elevada retirada provocando rebaixamento dos níveis d’água ou pela sua qualidade colocada em xeque, como conseqüência das possíveis fontes de contaminação. É aí que começa a aparecer, como uma tábua de salvação para alguns grupos, o decantado Rio Pardo.

As águas do Rio Pardo, de qualidade duvidosa, não são a solução como alguns lobbies preconizam, principalmente em época de crise ou de falta de água para o abastecimento público. Muito embora despoluir e preservar nossos rios deva ser também nossa preocupação constante, Ribeirão Preto já se abastece das águas subterrâneas do Aquífero Guarani há várias décadas. Este sistema sim, que faz parte do metabolismo urbano de Ribeirão Preto, é que deve ser mais bem compreendido e, consequentemente, gerenciado.

Como de certa forma esse gerenciamento já vem sendo feito, para que suas ações sejam levadas a um bom termo necessariamente devem passar pelo incentivo de alguns pontos cruciais: uma política de manejo, incluindo a recuperação de poços abandonados e adaptação de poços para observação do nível d’água; a otimização do tempo de bombeamento dos poços profundos; um plano de reservação para águas captadas do Aquífero Guarani; a diminuição das perdas na rede de distribuição e uma estratégia de implantação de hidrômetros, com bônus para os usuários do sistema que não ultrapassem um limite máximo necessário.

Por outro lado, e nessa mesma linha de raciocínio, comenta-se sobre a possível transposição das águas subterrâneas do Aquífero Guarani para suprir as necessidades de água potável da população da Grande São Paulo. Esse mega-reservatório, uma das maiores reservas de água doce subterrânea do mundo e alvo constante das atenções de organismos nacionais e internacionais, começa rapidamente a aparecer como um dos salvadores da pátria para essa região de alta densidade demográfica.

Como esse reservatório é um recurso natural estratégico, qualquer intervenção deveria ser amplamente discutida, para não correr o risco de um empreendimento deste porte transformar-se em uma saída oportunista de abastecimento em detrimento do atualmente existente.

A difusão pública das informações e as discussões sobre este tema específico, passam a ser um dos objetivos mais importantes neste estágio de investigação e de pesquisa. As águas subterrâneas são um recurso que deve continuar a ser buscado no território ribeirão-pretano para suprir suas necessidades de abastecimento. Assim, conclui-se que uma população bem informada de seus problemas, como de todas as opiniões científicas e políticas para resolvê-los, tem maiores condições de participar na melhoria da qualidade de vida que só ocorre, efetivamente, quando é voltada para a maioria da coletividade.”[3]

Boas lembranças são guardadas da convivência com os colegas desse período em reuniões técnicas e da amizade fraterna que se estabeleceu com os irmãos argentinos, paraguaios e uruguaios, que perduram até os dias de hoje.

Porém, confesso que durante esses anos que se passaram, estudando esse mega-reservatório de águas subterrâneas, não tive, que me recordo, a oportunidade de ouvir algum relato pessoal sobre Pepe Mujica (José Alberto Mujica Cordano), ex-presidente e ex-senador do Uruguai, que nos deixou recentemente, e que lamento não tê-lo conhecido pessoalmente.

Mas, com o passar do tempo, conhecendo um pouco da sua despojada e lutadora história de vida, permaneço me emocionando e me sentindo mais fortalecido, ainda, no caminho que escolhi para a trajetória profissional e pessoal.

Que a Lua Cheia do dia 13/05/2025 vista em Ubatuba (SP), dia da passagem de Pepe Mujica, continue a iluminar esse ser humano incrível, que gostaria que fosse da minha famíla para chamá-lo, com todo carinho e respeito, de Tio Pepe.

“Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.” (Pepe Mujica).

*Heraldo Campos, geólogo, é pós-doutorado pelo Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos-USP.

Notas

[1] Artigo “Mapa hidrogeológico do aqüífero Guarani” de Heraldo Campos, publicado no jornal Gazeta Mercantil do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 14 e 15/11/2000.

[2] Artigo “Projeto Piloto Ribeirão Preto e o Comitê da Bacia do Pardo” de Heraldo Campos, publicado no jornal Tribuna Impressa. Ribeirão Preto, 08/07/2006.

[3] Artigo “Metabolismo urbano de Ribeirão” de Heraldo Campos, publicado no jornal Gazeta de Ribeirão. Ribeirão Preto, 15/10/2006.

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