Nossa defesa: o decrescimento!

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Por ANSELM JAPPE*

A indústria bélica lucra, os pobres se arruínam e o planeta queima: a ‘economia de guerra’ é o capitalismo em seu estado puro. Desindustrializar pode ser o único antídoto — mas quem terá coragem?

Os contornos da nova “economia de guerra” que se anuncia, na França e em outros países, são ainda muito vagos. Nossos governantes acreditam realmente na possibilidade de uma guerra na Europa? Ou trata-se essencialmente de um pretexto para atingir outros objetivos?

Pôr a economia para funcionar novamente, apoiando-se nos enormes lucros da indústria militar? Reduzir os benefícios sociais, obrigando as pessoas, sobretudo os pobres, a trabalhar cada vez mais e em piores condições? Aumentar a repressão, silenciar toda dissidência em nome da “união sagrada”? Acabar com todas as considerações ecológicas ou tecnocríticas, que apenas “atravancariam” a economia, que é a base dos esforços de defesa?

Com ou sem pretexto, é isso que vai acontecer. Quem se recusar a adaptar-se a esta nova dimensão corre o risco de ser acusado de “traidor”, “preguiçoso” ou “egoísta num momento em que a pátria está em perigo”. A “reindustrialização” de que tanto se tem falado nos últimos anos pressupõe uma ditadura da economia.

Neste contexto, o decrescimento será cada vez mais designado como o inimigo público número um. Há muitos anos, ele é a besta-fera preferida de todos os defensores da sociedade capitalista-industrial. Sua simples menção encerra qualquer debate, sem necessidade de outros argumentos: chamar um opositor de “defensor do decrescimento” é como acusar um adversário político de ser “comunista” nos Estados Unidos dos anos 1950.

Evidentemente, sem crescimento econômico, não pode haver rearmamento. Por isso, exigir o decrescimento seria uma sabotagem interna, um presente para o inimigo.

O preço da liberdade

E, no entanto, é o decrescimento que pode dar resposta à suposta alternativa entre o rearmamento e a capitulação perante aqueles que nos querem subjugar. Uma sociedade desindustrializada terá a possibilidade, ao menos em parte, de manter-se afastada de um mundo em guerra. Quanto mais industrializado é um país, mais dependente ele está do mercado mundial: precisa de recursos situados em outros lugares, de componentes para sua produção, de mão de obra barata ou altamente especializada e de mercados para seus produtos.

A existência de uma indústria muito desenvolvida é apresentada como uma garantia de independência e de “soberania”. Na verdade, o que acontece é o contrário. Quanto mais desenvolvida é a indústria de um país, mais vulnerável ele é, incapaz de sobreviver sem a ajuda do resto do mundo.

Só uma redução drástica do consumo e da produção pode garantir uma verdadeira independência. Um país fortemente dependente da produção estrangeira encontra-se inevitavelmente envolvido nos conflitos geopolíticos que advêm da economia global. E se não pode ou não quer usar a força, tem que implorar, ceder à chantagem ou aceitar o inaceitável.

Mesmo os países poderosos costumavam calar-se, após algumas admoestações verbais, diante das violações dos direitos humanos por parte de um “parceiro”, assim que este ameaçava cancelar encomendas, deixar de comprar armas ou vender seus recursos em outros lugares (esta frase está no passado, porque agora os governos “democráticos” já nem sequer fingem preocupar-se com estas violações, muito preocupados que suas economias sofram o mínimo prejuízo. A impunidade da Total na Rússia, na França, em Uganda e em outros países é um dos exemplos mais evidentes).

É claro que esta retirada do mercado mundial teria um preço. Sem smartphones, nem centrais nucleares, acabariam as baterias de lítio e as casas bem aquecidas. Este preço é muito alto? É o que responderão os que afirmam de bom grado… que a liberdade tem seu preço, que é preciso fazer sacrifícios por ela, que é preciso merecê-la e que a covardia acaba saindo cara.

Mas neste discurso, os “sacrifícios”, como sabemos, são sempre feitos pelos pobres, ao “apertarem o cinto”, e agora também é a natureza que tem que ser “sacrificada”. Por outro lado, a renúncia a comodidades que nem sequer existiam há trinta anos, como a quinquilharia eletrônica, é apresentada no discurso dominante como um sacrifício muito excessivo. Ao contrário, é exatamente por estas comodidades que vamos para a guerra.

No início da guerra na Ucrânia, haveria talvez uma forma de pará-la sem recorrer às armas: impor um bloqueio econômico total à Rússia, começando por parar todas as importações de petróleo e gás.[i] Mas isso não aconteceu: o gás russo continua passando pela Ucrânia, e a Total faz seus negócios. Como disse Marine Le Pen, o poder de compra dos franceses não pode ser afetado por esta guerra. Do mesmo modo, o apoio da opinião pública alemã à Ucrânia diminuiu rapidamente entre uma parte da população confrontada com o risco de aumento dos preços da energia.

Desescalada

Não se trata de negar, como faz um certo pacifismo ingênuo, que há países que podem ter intenções agressivas. Todos os grandes países têm. O agravamento da concorrência capitalista mundial é inegável e todos os Estados contribuem para ele: não há agressores descarados de um lado, e vítimas inocentes ou defensores heroicos dos bons princípios do outro. O pensamento crítico efetivamente tem dificuldades para reagir a esta nova situação, em que um multipolarismo de alianças variáveis substituiu a velha Guerra Fria, que era tão fácil de ler.

Contentarmo-nos com o que dispomos num país, numa região, como a Europa, seria um primeiro passo para não termos que participar de guerras. As guerras comerciais e as guerras tarifárias só afetam aqueles que importam e exportam muito. Aqui, como sempre, aplica-se o lema de La Boétie: “Decide não servir mais, e serás livre”. Hoje, não servir mais significa sobretudo consumir apenas o necessário.

No entanto, esta solução, mesmo no caso improvável de um país a adotar, certamente não resolve todos os problemas. O que fazer com os vizinhos que ainda não foram convencidos pelo decrescimento, mas pela vontade de poder? O que fazer caso regimes ainda mais autoritários, com populações que ainda acreditam num futuro melhor ecoando das mercadorias, que lucram com as turbulências inevitáveis nas zonas “liberadas” para nelas intervir militarmente?

Um regime armado até os dentes e que não hesite em utilizar suas armas estará sempre um passo à frente, sobretudo numa época de guerras à distância, com mísseis e drones, contra as quais não existe qualquer “defesa popular”.

A defesa continua sendo um tema de pouca reflexão na crítica radical. Só porque os governos e os grandes meios de comunicação procuram apresentá-la como a prioridade do momento, não significa que devamos permanecer cegos, por reação, a este problema desagradável.

*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Roma, na Itália. Autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra) [https://amzn.to/496jjzf]

Tradução: Fernando Lima das Neves.


[i] Ver Anselm Jappe, “Stop au gaz russe”, artigo publicado no site palim-psao.fr, 27 de março de 2022.


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