Negociação coletiva do trabalho, segundo Michel Aglietta

Imagem: Sami Aksu
image_pdf

Por FRANCISCO PEREIRA DE FARIAS*

Entre 2003 e 2016, os governos do PT aprofundaram a mediação estatal a serviço do capital, disfarçando de ‘conquista social’ uma negociação coletiva que, na prática, disciplinou os sindicatos e garantiu a rentabilidade empresarial

1.

Considerando os processos de coalizão social e política no Brasil entre 2003 e 2016, distinguimos duas variantes principais do paradigmaemergente (Draibe; Riesco, 2011) de direitos sociais: o “novo desenvolvimentismo” (Bresser-Pereira, 2012); o “social-desenvolvimentismo” (Bastos, 2012). Essas variantes estão ligadas aos valores e aos interesses das forças sociais e partidárias que participam da nova coalizão de governo.

De fato, entre as forças sociais que se alinhavam à coligação político-partidária de centro-esquerda, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, destacavam-se os grupos industriais ligados à acumulação interna e as categorias de trabalhadores assalariados representadas por sindicatos favoráveis à negociação com o patronato. De alguma maneira, os modelos de política social mais influentes na nova composição de poder correspondiam a essa diferenciação de interesses sociais.

A visão social-desenvolvimentista privilegia a produção voltada ao mercado interno, ao consumo do maior número de pessoas e aos gastos estatais em políticas sociais. Trata-se de uma estratégia de desenvolvimento econômico que não coincide totalmente com o horizonte da empresa privada, que ao diversificar a lucratividade em função da inserção no mercado mundial não tem compromisso de longo prazo com a prioridade do mercado interno, do consumo assalariado e da expansão do bem-estar da maioria social.

O modelo reabilita o planejamento econômico e o investimento direto do Estado a fim de melhorar a eficiência da economia nacional e de sua base de arrecadação fiscal (Bastos, 2012). Essa visão da política estatal converge com os programas de reformas sociais do socialismo democrático, sustentado, em linhas gerais, pela Central Única do Trabalhadores e pela Fundação Perseu Abramo, fundação mantida pelo Partido dos Trabalhadores – que portam um histórico de críticas ao “peleguismo” nos sindicatos (colaboração de classe).

As reivindicações dos mandatários dos trabalhadores tendem a não coincidir com as metas da equipe governamental. A CUT argumenta, por exemplo, que a possibilidade de reajustar o salário-mínimo em patamar superior aos cálculos apresentados pelo governo coloca a política salarial na posição de prioridade no orçamento do Estado nacional, e dela decorre a necessidade de intervir nas metas de superavit fiscal, na taxa de juros, na oferta de créditos, na desoneração de impostos sobre o setor produtivo, cujos efeitos seriam o estímulo ao consumo e a melhoria na situação dos empregos.[i]

2.

Para o economista francês Michel Aglietta (recém-falecido) – um representante do social-desenvolvimento – a negociação coletiva caracteriza o regime político-institucional da fase “neofordista” do modo de acumulação capitalista, que, por sua vez, é marcado pelo processo de intensificação do maquinário, a partir das tecnologias de automação e informática. Do ponto de vista dos trabalhadores, avalia Michel Aglietta, (1997, p. 224), “a negociação coletiva pode, portanto, ter um conteúdo muito rico e alimentar uma vida sindical ativa quando se aplica à organização do processo de trabalho. É então uma arma para os trabalhadores em sua luta por segurança e melhores condições de trabalho”.

Da perspectiva do patronato, “o objetivo [transformação das condições de produção] era desencadear um ataque generalizado para reduzir os custos salariais diretos da produção; este é o único significado possível de aumento de produtividade no âmbito das relações de produção capitalista” (Idem, ib., p. 224).

É com relação a este contexto histórico que Michel Aglietta observa duas formas de transformação político-institucional, buscadas pelos dirigentes das grandes empresas: (i) formular políticas salariais abrangentes, de longo prazo e compatíveis com o grau de centralização de capital para lidar com os sindicatos no nível mais alto possível; (ii) desenvolver procedimentos de controle gerencial, determinar níveis de responsabilidade e treinar a gerência para implementar, estritamente, a política salarial geral em todas as unidades do complexo industrial.

O papel de “arbitragem” do Estado ganha uma importância decisiva na passagem da negociação na grande empresa para a concertação na política nacional. A intervenção estatal busca instaurar uma política nacional de salários, fixando as normas gerais de reajustes da média salarial. Evidentemente, como sabe Michel Aglietta, não se trata de uma arbitragem, porque, ao diminuir o poder contestatório dos sindicatos, a concertação tripartite não apenas enfraquece uma contratendência às pressões políticas do patronato, como também, pela seletividade estrutural do Estado, essa concertação prioriza o aumento da rentabilidade das empresas frente aos ganhos salariais.

A seletividade estrutural do Estado se dá não apenas pelos efeitos das normas básicas jurídicas (liberdade individual e igualdade formal) e administrativas (universalismo formal e despotismo burocrático), que tendem a produzir nos dirigentes estatais a predisposição a equacionar os valores nacionais com o funcionamento da economia capitalista (compra e a venda de força de trabalho, acúmulo de riqueza etc.); mas também pelo fato de as regras derivadas (direito tributário, legislação trabalhista etc.) desta normatividade básica e as suas efetivações em medidas de política econômica e social impactarem privilegiadamente os interesses de uma fração ou um condomínio de frações da classe do capital.

Essa fração de classe ou a união delas adota a variante de política de desenvolvimento capitalista (liberalismo, desenvolvimentismo) que subsome os interesses dos trabalhadores à lucratividade das grandes empresas.

*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Lutas anticapital).

Referências


AGLIETTA, Michel. (1997). Régulation et crises du capitalisme. 2ª ed. Paris: Odile Jacob. [Paris: Calmann Lévy, 1976.]

BASTOS, Pedro Paulo Z. (2012). A economia política do novo-desenvolvimentismo e do social desenvolvimentismo.Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, número especial, p. 779-810.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (2012). C. A taxa de câmbio no centro da teoria do desenvolvimento. Estudos avançados, São Paulo, v. 26, n. 75, p. 7-28.

DRAIBE, Sonia M. & RIESCO, Manuel (2011). Estados de bem-estar social e estratégias de desenvolvimento na América Latina. Um novo desenvolvimentismo em gestação? Sociologias, v. 13, n. 27. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/22463

Notas


[i] Nota oficial da CUT sobre o salário mínimo. CUT, 30 abr. 2004. Disponível em:

<https://ce.cut.org.br/noticias/nota-oficial-da-cut-sobre-o-salario-minimo-a826>

Luiz Marinho. Salário mínimo: hipocrisia agora no congresso. CUT, 14 mai. 2004.

Disponível em: <https://ce.cut.org.br/noticias/salario-minimo-hipocrisia-agora-no-congresso-4c02>


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES