A condenação de Cristina Kirchner

Imagem: José Cruz/ Agência Brasil
image_pdf

Por LUCAS ARRIMADA*

A condenação de Cristina representa mais um “gravíssimo erro político” de uma Corte que, em menos de 10 anos, acelerou a crise institucional e o aumento da pobreza

Uma decisão judicial precipitada e perigosa

O juiz Maqueda foi enfático ao afirmar, em diversos contextos, que a Corte não decidiria o caso Vialidad em um ano eleitoral. Parecia não haver pressa. Essa previsão respeitava o precedente de uma instituição suprema cujos silêncios favoreciam o governo atual em todas as suas medidas inconstitucionais.

Algo aconteceu para que isso mudasse. Ao que tudo indica, a pedido de fatores extrainstitucionais pouco claros – e completamente alheios ao jogo republicano – o processo se acelerou. Assim, de maneira frenética e repentina, a Corte confirmou a pena de seis anos e a inabilitação para o exercício de cargos públicos de Cristina Fernández Kirchner. A decisão da Corte convida à repetição de erros históricos – a uma tragédia política. A classe política deve agir, sim. Mas com responsabilidade e serenidade.

O perigo que essa decisão representa para todo o sistema político federal, para todos os representantes políticos, econômicos, sindicais e sociais, ainda não foi devidamente dimensionado. É um péssimo sinal para os agentes econômicos e financeiros, em um cenário de reestruturação e concentração da economia.

A destruição do Estado e sua privatização se tornam mais fáceis quando se pode contar com silêncios “supremos” para viabilizar esse processo e decisões sumárias para interferir em processos eleitorais – como já fez a Corte em 2023 e volta a repetir agora. Sem freios nem contrapesos.

Todos os erros acumulados do kirchnerismo no campo constitucional e judicial foram estudados e criticados publicamente por mais de 20 anos. A reforma judicial de 2006, a lei que desregula os decretos (lei 26.122), que hoje é usada por Javier Milei, a “democratização da justiça” de 2013, o Código Civil de Lorenzetti, a nova lei do Ministério Público que será utilizada pelo atual governo, o último projeto de reforma judicial de 2020 e o processo de impeachment inviável contra a Corte em 2023. Muitos desses erros continuam sendo defendidos mesmo quando seus perigos e efeitos negativos são evidentes.

Propor, nesse contexto, a “eleição popular de juízes” é mais um erro – reflexo de uma dissonância cognitiva monumental.

As guerras judiciais devem ser rejeitadas independentemente da cor partidária. Usar o Judiciário como arma de perseguição política, com parcialidade e seletividade evidentes, é típico do autoritarismo que cresce em um cenário internacional cada vez mais sombrio. A perseguição a líderes sociais que se manifestam pacificamente se multiplica e assume novas formas.

Todos os erros do kirchnerismo – alguns declarados inconstitucionais, outros usados e abusados tanto pelo macrismo quanto pelo mileísmo e pela própria Corte atual – demonstram que as instituições importam, e muito. As garantias constitucionais importam, e muito.

O custo dessa lição, já presente na história argentina do século XX, será duro – não apenas para as lideranças pessoais, mas sobretudo para toda a sociedade, que se encontra à mercê de um ciclo destrutivo sem defesa. As províncias e seus governadores deveriam estar preocupados com esse vácuo institucional, com essa lição institucional tão cara.

O erro político da Corte Suprema

Um erro de política judicial é, inevitavelmente, um erro político. Como o erro corrigido da nomeação de Rosenkrantz e Rosatti por decreto, o caso do “2×1” (Muiña), a decisão de emitir decretos em comissão e dar posse a García Mansilla, rejeitar Lijo e depois ter os dois nomes reprovados pelo Senado. Todos esses foram erros de política judicial que se converteram em erros políticos. Assim, a Corte cometeu mais um gravíssimo erro político.

Um erro que convida a outros erros por parte das forças políticas – especialmente do próprio kirchnerismo. Não estaríamos, em 2025, diante de perspectivas tão sombrias, se não tivéssemos um sistema político quebrado e autodestrutivo, marcado por guerras fratricidas. Os narcisismos de muitos atores políticos e empresariais alimentaram a antipolítica e a polarização que nos trouxeram a estes tempos cruéis, repletos de desafios existenciais.

Todos os partidos majoritários – o radicalismo antes e depois do golpe de 1930, o peronismo antes e depois do golpe de 1955 – cometeram erros. Em todo o processo político autofrustrante e violento entre 1955 e 1983, houve erros gravíssimos e crimes atrozes. E, nestes últimos quarenta anos, cometeram-se outros tantos. É fundamental reconhecê-los.

A decisão da Corte é péssima para todos – para o governo, para sua oposição e até para toda a estrutura institucional que sustenta os três juízes da Suprema Corte que assinaram a decisão, apesar de estarem em guerra aberta entre si, pois pertencem a tribos distintas.

Condenações por corrupção poderiam representar um sinal republicano em uma situação normal, com respeito às garantias constitucionais e imparcialidade. Mas as perseguições seletivas e a conexão entre setores judiciais e empresariais são evidentes – e representam uma ameaça a uma república imperfeita, mas real.

O dano que a Corte causou em menos de 10 anos é imenso. Acelerou a crise que nos levou a Milei, a este momento de decomposição institucional, anomia constitucional e aumento da pobreza.

A supremacia do Poder Judiciário sobre a política foi um erro da política democrática – mais um dos erros acumulados nestes 40 anos de democracia. Essa supremacia judicial vem se transformando, cada vez mais, em uma supremacia econômica de fatores extrapolíticos e antirrepublicanos. A paz, a não violência e a responsabilidade são vitais para que essa encruzilhada, já escura, não se torne ainda pior.

*Lucas Arrimada é professor de Direito Constitucional e de Estudos Críticos do Direito. Foi pesquisador e docente da UBA, CLACSO, FLACSO (sede Argentina) e no Institute of Public Knowledge (NYU).

Publicado originalmente no site do IREE.


Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES