Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
A universidade pública, neste novo regime, abandona sua função originária de mediação entre saber e sociedade. Passa a ser mediadora entre o capital e a imagem
1.
A função originária da universidade pública foi desfigurada com precisão técnica. Não houve invasão, não houve quebra de ordem. Houve cálculo. A destruição do comum acadêmico não se deu por repressão direta, mas pela imposição silenciosa de métricas, plataformas e promessas de prestígio.
O que aqui se apresenta não é mais a universidade como espaço de formação crítica, mas sua simulação calculada. A universidade capturada manteve sua arquitetura, seus concursos, suas assembleias. Mas perdeu sua substância. O que se rompeu não foi apenas o financiamento, mas o próprio pacto fundante da vida universitária: o compromisso com a formação de sujeitos capazes de pensar e intervir no mundo.
A análise se ancora numa tradição teórica que recusa neutralidades institucionais. A universidade pública deve ser lida como mediação ativa da dependência. A primeira geração da Teoria marxista da dependência, com Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos e Florestan Fernandes, formulou com rigor essa compreensão estrutural.
Ruy Mauro Marini demonstrou que o subdesenvolvimento não é etapa superável, mas componente funcional da reprodução capitalista (MARINI, 1973). Vânia Bambirra evidenciou como a dependência reestrutura o Estado e suas instituições internas, incluindo a educação (BAMBIRRA, 1978).
Theotônio dos Santos advertiu que o desenvolvimento das metrópoles exige a manutenção ativa da periferia (SANTOS, 1978). E Florestan Fernandes, com precisão sociológica, desvelou a função da universidade como transmissora da ideologia dominante sob a aparência de modernização (FERNANDES, 1975).
2.
No contexto do capital fictício, a universidade não é apenas precarizada — ela é convertida em ativo simbólico. Como explica Leda Paulani, “o capital fictício é aquele que se valoriza sem ter passado pela produção real, mas que mesmo assim se impõe como comando sobre o conjunto da economia e da vida social” (PAULANI, 2017, p. 31).
A universidade pública, nesse regime, deixa de ser espaço de produção de saber para se tornar instrumento de valorização reputacional. O valor do conhecimento não está mais em sua contribuição à sociedade, mas na expectativa de retorno simbólico que ele proporciona.
Como observa Leda Paulani, “a valorização reputacional torna-se a forma dominante da financeirização da educação, impondo critérios de excelência baseados não na qualidade do saber, mas na sua conversão em ativo intangível” (PAULANI, 2017, p. 36). Tudo deve ser mensurado: desde o currículo do aluno até a pontuação do professor. A gestão substitui a política; o plano estratégico substitui o projeto pedagógico. Como alerta Eleutério Prado, “o capital fictício é forma de dominação abstrata, que dissocia a valoração do trabalho da produção real e estabelece o valor como antecipação de prestígio” (PRADO, 2021, p. 27).
Essa mutação atinge também a linguagem. O discurso universitário é capturado por palavras como eficiência, empreendedorismo, gestão por resultados, produtividade intelectual. E, com elas, desaparecem outras: formação, compromisso social, tempo do saber, coletividade.
As universidades que não produzem impacto global desaparecem do mapa dos investimentos, como se não existissem. A universidade pública, neste novo regime, abandona sua função originária de mediação entre saber e sociedade. Passa a ser mediadora entre o capital e a imagem. Sua função se desloca do campo da formação para o campo da performance reputacional. Como explica Eleutério Prado, “a financeirização não apenas submete as instituições, ela as redefine. A universidade financeirizada não é mais um lugar de produção de conhecimento, mas uma empresa simbólica voltada à valorização de ativos intangíveis” (PRADO, 2021, p. 46).
Este primeiro bloco é, portanto, a enunciação da captura. É preciso nomeá-la para enfrentá-la. A universidade pública, sob domínio do capital fictício, já não forma: formata. Já não acolhe: seleciona. Já não investiga: entrega. E, ainda assim, resistimos. O que está em jogo não é apenas o futuro da educação superior, mas a possibilidade de mantermos viva uma instituição cujo sentido não se submete ao mercado.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados). [https://amzn.to/4fLXTKP]
Referências
BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1973.
PAULANI, Leda M. O valor do conhecimento: sua apropriação pelo capital. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 2017.
PRADO, Eleutério F. S. Capital fictício e poder estrutural do capital. São Paulo: Outras Expressões, 2021.
SANTOS, Theotônio dos. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















