Por PAULO FERNANDES SILVEIRA*
A biografia de Florestan revela que a educação formal é apenas uma parte da formação. Foi a soma do autodidatismo, da solidariedade de uma rede de apoio e da experiência crua da vida nas ruas que forjou o intelecto do futuro sociólogo e crítico ferrenho das desigualdades
1.
No ensaio “Em busca de uma sociologia crítica e militante”, do livro A sociologia no Brasil, Florestan Fernandes traça um amplo panorama sobre a sua formação. Ele também concedeu diversas entrevistas sobre o seu percurso de vida.
Florestan Fernandes nasceu prematuro, de sete meses, em 1920, na capital paulista. Sua mãe, Maria Fernandes, era uma emigrante portuguesa. Segundo a socióloga Heloisa Fernandes, filha de Florestan, em 1911, para escapar da fome em Portugal, a família de Maria Fernandes veio trabalhar numa fazenda de café em Bragança Paulista, no interior de São Paulo.
No lugar onde ficaram acomodados, havia um saco de arroz, um de feijão e um de batatas. Maravilhada com a fartura de comida, Maria Fernandes, que tinha treze anos, disse para seu pai que nunca mais voltaria para Portugal.
A mãe de Florestan não recebeu educação escolar. Ela trabalhou como empregada doméstica e como lavadeira, uma atividade comum em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, quando ainda existiam muitas várzeas na cidade.
No livro Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890-1915, Casé Angatu Tupinambá (Carlos dos Santos) faz uma bela análise sobre as alternativas de trabalho para a população pobre nesse período.
Filho de mãe solteira, Florestan não conheceu o pai. Em sua certidão de nascimento consta, apenas, o sobrenome de sua mãe.
Florestan nasceu na casa de sua madrinha, Hermínia Bresser de Lima, onde Maria Fernandes morava e trabalhava como empregada doméstica. Com ótima situação financeira, Hermínia Bresser colocou Florestan Fernandes numa escola infantil particular.
A família Bresser tinha dinheiro e reputação, hoje em dia, a estação de metrô no bairro onde eles moravam chama-se Bresser-Mooca.
Hermínia Bresser não queria que o menino se chamasse Florestan, pois esse não era um nome para o filho de uma empregada doméstica, ela preferia Vicente. Na casa de sua madrinha, Florestan ficou sendo Vicente (FERNANDES, 1986).
Após um desentendimento com Hermínia Bresser, que queria assumir a criação do menino, Maria Fernandes e Florestan foram morar em quartos de cortiços na região central da cidade.
Nessa nova conjuntura, aos seis anos, Florestan Fernandes precisou trabalhar. Ele exerceu diferentes atividades na infância: limpou roupas de clientes em barbearias, foi carregador em açougues, ajudante em alfaiatarias e engraxate ambulante.
Florestan teve uma irmã mais nova que nasceu cega, chamava-se Tereza. Nos primeiros anos de vida, ela contraiu meningite, uma doença que pode estar associada à pobreza. A meningite provocou sua morte, com apenas três anos de idade (FERNANDES, 2014).
Certa vez, Maria Fernandes deixou Florestan morando numa alfaiataria no centro da cidade, para que seu filho aprendesse o ofício. O alfaiate colocou o menino para dormir num porão repleto de ratos e baratas. Ao saber das condições desumanas de moradia e de alimentação, Maria Fernandes tirou Florestan Fernandes dessa alfaiataria.
Como nos romances de Charles Dickens sobre crianças pobres, algumas pessoas ofereciam comida para Florestan Fernandes em condições semelhantes a quem oferece ração para um cachorro. Para evitar esse tipo de humilhação, Florestan Fernandes levava para o trabalho um sanduiche que ele mesmo preparava em casa. Por vezes, ele recorria ao “mata-fome”, um pudim de pão vendido nos bares que não alimentava bem, mas o deixava saciado.
Sempre que sua mãe ficava sem trabalho, Florestan Fernandes assumia a função de arrimo da família. Quando menino, ele passava o dia todo nas ruas lutando pela sobrevivência.
O trabalho reduzia suas possibilidades de socialização com outras crianças. Numa entrevista, Florestan Fernandes trata da carência afetiva em sua infância: “Se alguma criança se mostrava aberta à minha amizade, eu me atirava muito profundamente a ela” (1986, p. 64).
Depois que se especializou como engraxate, Florestan Fernandes se aproximou de outros meninos que também precisavam trabalhar. Seu melhor amigo nessa época, um menino negro chamado Angelim, morreu de tuberculose e de fome. O avô de Florestan também morreu de tuberculose. Esse tipo de morte era comum em seu meio. Nas palavras de Florestan Fernandes: “as pessoas caíam no caminho” (1986, p. 68).
Florestan Fernandes precisava brigar com os outros jovens engraxates para conseguir se estabelecer num bom local de trabalho. Essas experiências lhe impuseram uma adultização precoce, o que afetou sua adaptação no sistema escolar.
O menino trabalhador não via um sentido prático e imediato no ensino oferecido pela escola. Florestan Fernandes se tornou um aluno rebelde que faltava às aulas e se envolvia em brigas.
2.
Para conseguir sustentar a ele e à sua mãe, Florestan Fernandes deixou a escola e passou a trabalhar em turno completo. Ele interrompeu os estudos no terceiro ano do ginásio.
Mesmo fora da escola, Florestan Fernandes cultivou sua curiosidade intelectual. Amigos e conhecidos, quando percebiam seu interesse por vários temas e assuntos, davam livros para ele, livros de diferentes áreas: literatura, história e filosofia.
Como analisa Casé Angatu Tupinambá, nas primeiras décadas do século XX, São Paulo passou por um processo de urbanização que visava expulsar as famílias pobres dos bairros centrais da cidade.
Parques e grandes avenidas foram construídos onde ficavam as várzeas. Nessas regiões, encontravam-se lavadeiras, pequenos comerciantes e moradias precárias que dariam origem às primeiras favelas da cidade. A maioria das pessoas que residiam próximas às várzeas eram indígenas, negras e caboclas.
A ausência de uma política de regulamentação dos aluguéis pelo poder público contribuiu para esse projeto urbanístico de, entre aspas, “higienização”.
Segundo os relatos de Florestan Fernandes, quando moravam em cortiços da Bela Vista, do Bom Retiro e do Brás, assim que o aluguel subia, ele e sua mãe eram obrigados a procurar uma moradia ainda mais barata.
Essa situação os levou a morar em bairros distantes do centro da cidade. Mais do que hoje, nos anos 1940 e 1950, as periferias da cidade de São Paulo não ofereciam muitas perspectivas de escolarização e de trabalho.
Havia muito preconceito contra os pobres, que eram tomados como ladrões e imprestáveis. Mesmo com o apoio Clara Bresser, irmã de sua madrinha, que conhecia pessoas influentes, Florestan Fernandes não conseguiu arrumar um emprego que oferecesse uma boa remuneração.
Ainda na adolescência, Florestan interessou-se pelo socialismo. Em 7 de outubro de 1934, com apenas quatorze anos, ele se uniu aos grupos socialistas que enfrentaram os integralistas na Batalha da Praça da Sé (SOARES; COSTA, 2021).
Com dezesseis anos, Florestan Fernandes foi trabalhar como garçom no bar Bidu, no centro da cidade. Entre os fregueses desse bar estavam diretores e professores do Riachuelo, ginásio particular que tinha um curso preparatório para os exames de madureza.
Segundo o Artigo 100 do Decreto nº 21.241, de 4 de abril de 1932, da reforma educacional de Francisco Campos, a aprovação nesses exames conferia aos estudantes o certificado do curso ginasial e os credenciavam para realizar o vestibular para o ensino superior.
Os professores Jair de Azevedo e Benedito de Oliveira concordaram que Florestan estudasse no Riachuelo com um custo reduzido. Outro freguês do bar Bidu, Manoel Lopes de Oliveira, conseguiu para Florestan Fernandes um emprego de entregador de amostras do laboratório Novoterápica, atividade que lhe daria tempo para estudar.
3.
Em 1937, Florestan Fernandes começou o curso de madureza no ginásio Riachuelo.
O casal Ivana Pirman e José de Castro ofereceram-lhe casa, comida e uma ajuda financeira. Ivana Pirman era filha adotiva de Hermínia Bresser e José de Castro foi motorista da família. Nessas circunstâncias, Florestan Fernandes conseguiu sustentar sua mãe e retomar os estudos, em suas palavras: “o círculo de ferro fora rompido” (1977, p. 148).
Maria Fernandes não queria que Florestan fizesse o curso de madureza, ela temia que o filho, depois de estudar, tivesse vergonha dela. A relação de mãe e filho ficou estremecida por um tempo. Maria Fernandes foi morar com uma amiga. Mesmo assim, Florestan continuou sustentando sua mãe.
Os colegas de infância e de juventude de Florestan Fernandes o caçoaram dizendo que ele ficaria de miolo mole de tanto ler. Havia muita pressão para que nenhum deles deixasse a condição social em que todos se encontravam.
Por causa da má alimentação, Florestan Fernandes ficou muito magro. No laboratório Novoterápica, onde foi trabalhar, Manoel Lopes de Oliveira comentou com Antônio Scala, seu secretário, que Florestan poderia desmaiar a qualquer momento.
Sua alimentação melhorou quando ele passou a morar e a jantar na casa de Ivana Pirman e José de Castro. Alguns dos seus colegas do ginásio Riachuelo também o convidavam para jantar nas casas de suas famílias.
Florestan Fernandes frequentava bastante a casa de Antônio Scala, lá ele fez muitas refeições e pôde conviver com toda sua família. Os irmãos Antônio e Mário Scala eram socialistas fervorosos e contribuíram para a formação política de Florestan.
A idade mínima para fazer os exames de madureza era dezoito anos. Destinado a qualificar adultos para o mercado de trabalho, o madureza permitia uma economia de tempo. O curso ginasial durava cinco anos. O curso complementar (que antecedeu o colegial e o Ensino Médio), durava dois anos. Já o curso de madureza durava três anos.
O estudante que fosse aprovado nos exames de madureza teria feito cinco anos em três, entretanto, se ele também fosse aprovado no vestibular, teria feito sete anos em três.
Os exames de madureza foram implantados no Brasil no início da República, com a reforma de Benjamin Constant. Seguindo as indicações de Rui Barbosa, a reforma se inspirou no exame de maturidade alemão (Maturitätsprufung). O objetivo principal desse exame era avaliar os conhecimentos dos estudantes que fizeram o curso ginasial nas escolas e daqueles que fizeram sua formação fora das escolas (CASTRO, 1973).
Estabeleceu-se um forte vínculo entre os estudantes da turma de Florestan e os professores que lecionavam no Riachuelo. Passar nos exames tornou-se um objetivo individual e coletivo. O professor de latim, Ennio Chiesa, também fez os exames. Ele foi uma grande motivação para Florestan e para toda turma.
Florestan Fernandes e seus companheiros de turma realizaram os exames num ginásio estadual da cidade de São João da Boa Vista. Entre 1939 e 1941, eles fizeram os exames de todas as disciplinas do 3º, 4º e 5º anos do ginásio. Apenas três estudantes da turma não foram aprovados em todos os exames.
4.
No mesmo ano em que foi aprovado nos exames de madureza, Florestan Fernandes passou no vestibular para ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Dos 27 candidatos que prestaram esse vestibular, apenas seis foram aprovados. Florestan Fernandes foi aprovado em quinto lugar. O professor Ennio Chiesa, que também prestou esse vestibular, passou em segundo lugar. Os vestibulares da USP eram dificílimos. Naquele ano, o curso de filosofia teve quatro candidatos, e todos foram reprovados (PELAS ESCOLAS, 1941).
Nos anos 1940, a USP não oferecia cursos noturnos. Para conciliar trabalho e estudo, Florestan precisou fazer um curso de meio período. A princípio, ele queria prestar o vestibular para engenharia química. No entanto, esse era um curso de tempo integral que não permitia que o estudante trabalhasse.
A maior parte dos cursos de meio período da USP era realizada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Florestan Fernandes decidiu prestar o vestibular para ciências sociais por causa de Benedito de Oliveira, professor de história e de geografia no Riachuelo. Para Benedito de Oliveira, ciências sociais era o curso certo para Florestan, uma vez que suas intervenções nas aulas indicavam que ele tinha vocação para ser um reformador social (FERNANDES, 1986).
Como no exame de maturidade alemão, o madureza brasileiro deveria certificar a idoneidade moral dos estudantes. Por isso, Benedito de Oliveira, que também era diretor do Riachuelo, elaborou um atestado para Florestan Fernandes apresentar na USP.
O curso de madureza cobria os conteúdos do curso ginasial, mas não cobria os conteúdos do curso complementar, que era um curso preparatório para o ensino superior. Para ser aprovado no vestibular para ciências sociais, Florestan estudou por conta própria os conteúdos das disciplinas que só eram oferecidos no curso complementar, como filosofia e sociologia.
Em vários momentos da sua formação, Florestan Fernandes recorreu ao autodidatismo: quando ele deixou a escola, mas não deixou de ler e de estudar, quando prestou o vestibular da USP e durante todo ensino superior.
Segundo Florestan Fernandes, seu êxito no vestibular poderia sugerir que a população mais pobre enfim teria acesso à universidade, mas não era isso, naquele momento, apenas ele, alguém que deixou a escola na infância para trabalhar e que era filho de Maria Fernandes, ex-empregada doméstica e ex-lavadeira, havia superado essa barreira social.
*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Publicado originalmente na Especiaria: Cadernos de Ciências Humanas, v. 22, 2025.





Referências
Atestado de idoneidade moral (1942). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes. N° do Item documental (tombo): 09.AD.02.080. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (BCo/UFSCar), São Carlos.
CASTRO, Josélia (1973). O exame de madureza no sistema de ensino brasileiro. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível aqui: https://cremeja.org/a7/wp-content/uploads/2019/08/o-exame-de-madureza-joselia-saraiva-castro.pdf
Correspondência, Florestan Fernandes a Antenor e Maria Fernandes (1939). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes. N° do Item documental (tombo): 4939. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (BCo/UFSCar), São Carlos.
Correspondência, Antônio Scala a Florestan Fernandes (1941). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes. N° do Item documental (tombo): 5990. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (BCo/UFSCar), São Carlos.
FERNANDES, Florestan (1986). Florestan Fernandes: a pessoa e o político. Educação em Revista, v. 2, n. 3, p. 61-68. Disponível aqui: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46981986000100011
FERNANDES, Florestan (1977). Em busca de uma sociologia crítica e militante. In. FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, p. 140-212.
FERNANDES, Heloisa (2014). Florestan Fernandes, um sociólogo socialista. Revista Florestan, n. 1, p. 33-48. Disponível aqui: https://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/11
Festa de formatura do ginásio (1944). Brasilidade, n. 80, ano IX, p. 66-67, Disponível aqui: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=893579&&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=2059
Maria Fernandes com a filha, Terezinha, no colo (s/d). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes. N° do Item documental (tombo): 3799. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (BCo/UFSCar), São Carlos.
Os companheiros da turma de Florestan Fernandes no ginásio Riachuelo [Local: São João da Boa Vista] (1939). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes. N° do Item documental (tombo): 4113. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (BCo/UFSCar), São Carlos.
PELAS ESCOLAS (1941). Correio Paulistano, 15 de março de 1941, p. 11. Disponível aqui: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_09&&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=5506
SANTOS, Carlos (Casé Angatu Tupinambá) (2003). Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, 1890-1915. São Paulo: Annablume; FAPESP.
SOARES, Eliane Veras; COSTA, Diogo Valença (orgs.) (2021). Florestan Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil. Chapecó: Marxismo 21. Disponível aqui: https://drive.google.com/file/d/1QvjPT9jz7CPEkHRj8RzYtxcYZUk_S5uf/view
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