As origens da sociologia do trabalho

Luke Elwes, Deriva, 2009
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Por DANIEL COSTA*

O livro de Ricardo Festi revela a gênese da sociologia do trabalho e expõe um jogo de espelhos: uma construção mútua entre centro e periferia, onde as ideias são reinterpretadas à luz das lutas e contradições locais

Com a publicação de As origens da sociologia do trabalho, de Ricardo Festi, atualmente professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), originalmente uma tese de doutorado orientada pelo professor Ricardo Antunes, o público especializado ou não, poderá tomar contato com o processo de constituição dessa disciplina no Brasil e suas relações com a produção intelectual francesa entre as décadas de 1950 e 1960.

Por meio de uma abordagem histórico-sociológica, Ricardo Festi demonstra como redes transnacionais de pesquisa, articuladas por organismos internacionais, permitiram a consolidação desse campo de estudos. No decorrer da obra destacam-se três eixos analíticos: a formação da sociologia do trabalho na França pós-guerra, centrada em Georges Friedmann; sua recepção e adaptação no Brasil, protagonizada pela chamada “escola uspiana”; e as relações entre produção acadêmica e projetos de modernização capitalista. Assim, a obra oferece ao leitor contribuições fundamentais para repensar a sociologia como campo em construção, marcado por disputas institucionais e condicionantes históricas.

A sociologia do trabalho consolidou-se como campo autônomo no pós-Segunda Guerra Mundial, em um contexto de industrialização acelerada e reconfiguração das relações de classe. No Brasil, sua institucionalização esteve profundamente ligada a diálogos intelectuais com a França, especialmente por meio de pesquisadores vinculados à Universidade de São Paulo (USP). A obra de Ricardo Festi reconstitui esse processo, evidenciando como as trocas acadêmicas entre os dois países foram fundamentais para a formação de uma tradição crítica no estudo do trabalho e da industrialização.

O autor combina análise histórica, sociologia do conhecimento e pesquisa de arquivo para revelar como redes transnacionais — mediadas por organismos como a Unesco e fundações como Ford e Rockefeller — facilitaram a circulação de ideias entre a França do pós-guerra e o Brasil no auge do seu processo nacional desenvolvimentista. Cabe destacar que o livro em questão não apenas mapeia trajetórias individuais (como as de Georges Friedmann, Alain Touraine e Florestan Fernandes), mas também expõe as disputas institucionais que definiram os rumos da disciplina em ambos os países.

O livro está estruturado em três partes principais, que traçam a gênese e o desenvolvimento da sociologia do trabalho no contexto franco-brasileiro. A primeira, As ciências sociais na ‘era de ouro’ do capitalismo, estabelece o pano de fundo histórico do pós-guerra, examinando tanto as ilusões de um pretenso projeto modernizador quanto a formação de uma comunidade internacional de ciências sociais por meio de organismos como a Unesco e fundações filantrópicas. Ricardo Festi ainda destaca nesse momento como essas redes intelectuais transnacionais possibilitaram a circulação de ideias e modelos acadêmicos entre centro e periferia.

As duas partes seguintes aprofundam-se na institucionalização da disciplina em cada contexto nacional. A segunda analisa a consolidação da sociologia do trabalho na França, explorando desde suas bases institucionais (como o Laboratoire de Sociologie Industrielle) até as contribuições teóricas de figuras como Friedmann e Touraine, este último com suas reflexões sobre ação social e pós-industrialismo. A terceira parte investiga a recepção e adaptação dessas ideias no Brasil, com foco no papel da USP e posteriormente do Cesit, destacando como os sociólogos brasileiros reinterpretaram conceitos europeus à luz das especificidades do capitalismo dependente, enfrentando os desafios políticos do período.

Georges Friedmann e Alain Touraine – a sociologia do trabalho na França

A França do pós-guerra emergiu como laboratório para a sociologia do trabalho, graças à atuação de Georges Friedmann. Líder na reorganização das ciências sociais após a ocupação nazista, Georges Friedmann defendia uma abordagem empírica e aplicada, distanciando-se do academicismo tradicional. Suas pesquisas sobre o taylorismo-fordismo e o impacto das transformações tecnológicas no trabalho industrial influenciaram gerações de sociólogos.

Georges Friedmann foi fundamental na criação de instituições-chave, como o Laboratoire de Sociologie Industrielle (LSI) e a revista Sociologie du Travail, espaços que consolidaram a disciplina. Sua crítica à alienação laboral, inspirada em Marx e na Escola de Frankfurt, enfatizava a fragmentação do trabalho industrial e sua desumanização. Além disso, promoveu intercâmbios internacionais, incluindo colaborações com o Brasil, que permitiram a circulação de ideias além da Europa.

Alain Touraine, discípulo de Georges Friedmann, trouxe novas perspectivas ao campo, especialmente com sua teoria da ação social. Sua passagem pelo Brasil, financiada pela Unesco (1956-1958), foi decisiva para a sociologia uspiana, influenciando pesquisas sobre industrialização e movimentos sociais. Touraine desenvolveu conceitos como “consciência operária” e “sociedade pós-industrial”, que dialogavam com as especificidades do capitalismo periférico brasileiro.

Florestan Fernandes e a sociologia uspiana

Florestan Fernandes foi figura central na institucionalização da sociologia do trabalho na USP. Sua abordagem combinava marxismo heterodoxo — com ênfase na formação de classes no capitalismo periférico — e pesquisa empírica sobre operários e sindicalismo. Em 1962, a criação do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit) marcou a consolidação da disciplina, com pesquisas sobre relações capital-trabalho, sindicalismo e industrialização dependente.

No entanto, a ditadura civil e militar (1964) interrompeu parte dessas pesquisas, levando muitos sociólogos ao exílio. Ricardo Festi revela, por meio de documentos inéditos, como o Cesit enfrentou dilemas como precariedade financeira e perseguição política, evidenciando a fragilidade das instituições acadêmicas em contextos autoritários.

Tanto na França quanto no Brasil, a sociologia do trabalho emergiu em um contexto de modernização capitalista. Na França, os “Trinta Gloriosos” (1945-1975) — expressão cunhada pelo economista francês Jean Fourastié para designar o período de crescimento econômico acelerado e estabilidade social que se seguiu à Segunda Guerra Mundial — simbolizaram a consolidação do Estado de bem-estar e a intervenção estatal na economia. No Brasil, o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) promoveu uma industrialização acelerada, porém dependente de capitais externos.

Ricardo Festi demonstra ainda como a sociologia uspiana adaptou teorias francesas para analisar contradições locais. Por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto desenvolveram a “teoria da dependência”, criticando a noção linear de progresso e destacando assimetrias do capitalismo periférico. Azis Simão investigou a formação da classe operária brasileira, enquanto Juarez Brandão Lopes analisou o sindicalismo em contextos autoritários.

Considerações finais

O livro destaca-se por sua abordagem ontológica inovadora, articulando a produção intelectual às condições materiais que a engendraram e revelando como as teorias sociológicas foram moldadas pelos contextos históricos e políticos do pós-guerra.

Além disso, o autor rompe com narrativas tradicionais ao valer-se de arquivos institucionais inéditos — como correspondências e relatórios de pesquisa —, desvendando os bastidores das redes acadêmicas franco-brasileiras. Essa perspectiva desmonta a visão estereotipada de um Brasil meramente receptor de teorias europeias, evidenciando a mutualidade dessas trocas, em que ideias foram reinterpretadas diante das contradições da modernização periférica.

Apesar do rigor, a análise de Ricardo Festi peca por relegar a segundo plano questões como gênero e raça, dimensões que, embora marginalizadas nos anos 1950-1960, tornaram-se centrais para a sociologia do trabalho nas décadas seguintes — fato reconhecido pelo próprio autor. Outra crítica reside no foco excessivo em figuras proeminentes (como Friedmann e Fernandes), obscurecendo o papel de atores menos visíveis — assistentes de pesquisa, técnicos e mulheres — que também participaram da construção da disciplina.

A obra de Ricardo Festi é leitura obrigatória para pesquisadores interessados na história das ciências sociais e nos estudos do trabalho. Seu maior mérito é demonstrar que a sociologia brasileira não surgiu de forma isolada, mas como parte de um diálogo global, marcado pelas contradições do capitalismo. As origens da sociologia do trabalho consolida-se como referência para repensar a disciplina não como conjunto de teorias abstratas, mas como campo em constante diálogo com a história.

*Daniel Costa é mestrando em história na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Referência


Ricardo Festi. As origens da sociologia do trabalho. Percursos cruzados entre Brasil e França. São Paulo, Boitempo, 2023, 352 págs. [https://amzn.to/4m2kzbZ]

Bibliografia


BROCHIER, Christophe. La naissance de la sociologie au Brésil. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2016.

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977.

FERNANDES, Florestan. A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1983.

TANGUY, Lucie. A sociologia do trabalho na França. Pesquisa sobre o trabalho dos sociólogos (1950-1990). São Paulo: Edusp, 2017.


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