Por JOSÉ LEON CROCHICK, FÁBIO DE MARIA, LUÍS CÉSAR DE SOUZA, EDUARDO BORBA GILIOLI*
Se o autoritarismo clássico odiava com uma razão perversa, sua versão contemporânea destrói sem objeto preciso, tornando a violência um impulso vazio e infinitamente mais perigoso
Nos dias que correm, é tema de discussão em diversos lugares o fortalecimento de um movimento social que vem sendo nomeado de ‘extrema direita’, que tem posto em risco a existência da democracia e, consequentemente, da liberdade política.
Por mais que as democracias existentes estejam limitadas pelo capitalismo, o que as torna em boa medida formais, ainda contêm a possibilidade de os conflitos entre classes ocorrer; e é essa possibilidade que pode ser suspensa, o que implica que não somente não estará havendo um progresso na esfera da política, mas um retrocesso; ainda que ocorra em tempo distante do nazifascismo do século XX, e, assim, não ser sua mera continuidade ou repetição, não deixa de ser um movimento reacionário.
Theodor Adorno (2015, 2019) afirma que o fascismo tem causas objetivas, mas isso não torna dispensável analisar o momento psicológico desse fenômeno, compreendendo-o também em sua determinação social. Seu estudo em conjunto com pesquisadores de Berkeley, na década de 1940 – A personalidade autoritária – dirige-se a essa análise; como o fascismo necessita de uma massa de pessoas que o apoie, é fundamental conhecer as motivações individuais que levam a esse apoio.
Nesse estudo, Theodor Adorno defende a importância de se estudar as personalidades potencialmente fascistas para avaliar o risco de haver um apoio substancial ao fascismo, para que esse se implante. Assim, é importante retomar esse trabalho para responder a duas questões:
(i) Nessa pesquisa, a preocupação era somente com personalidades potencialmente antidemocráticas ou também com personalidades manifestamente antidemocráticas? Em “A filosofia e os professores”, Theodor Adorno (1995) mostra-se mais preocupado com mecanismos formais do pensamento, como marcas do nazismo presentes na democracia, do que com aqueles que acreditam no ideário nazista; ao que parece, atualmente, temos de nos preocupar, sobretudo, com as pessoas que defendem a agressão a minorias, que são claramente contrárias à democracia.
(ii) As medidas para avaliar a personalidade autoritária ainda são válidas para os nossos dias? Se forem, indicam que as necessidades psíquicas existentes na época continuam a poder ser base de uma massa propícia ao fascismo e que a estrutura social não se alterou de forma substancial, uma vez que é essa que determina aquela.
Considerando essas questões, iniciaremos o texto indicando a relação existente entre progresso técnico e declínio da individuação, tal como exposta por Max Horkheimer e por Theodor Adorno; a seguir, será apresentada uma análise de textos relacionados ao estudo sobre a personalidade autoritária, escritos por Adorno e por ele em conjunto com outros autores, para responder a uma das questões formuladas acima, correspondente a um dos objetivos deste artigo, que é apresentar elementos que corroborem a hipótese que há ao menos duas configurações básicas de personalidade naquele estudo: a sadomasoquista (potencialmente antidemocrática), que seria a base da personalidade autoritária, e a que tem uma fragilidade maior do Eu (manifestamente antidemocrática), que ainda não tem um objeto específico para o qual destinar sua agressão.
A primeira é propícia à pseudoconservação dos valores convencionais, e a outra, à sua destruição de forma manifesta. O pseudoconservador deseja destruir a sociedade existente, mas se atém à sua defesa; o antidemocrata ataca os valores de uma forma direta ou os negando, dando sentidos distintos a eles. Como a sociedade atual é contraditória, deve-se encontrar os dois tipos quer em democracias formais, quer em ditaduras, além daqueles que defendem a democracia real.
Na sequência, serão apresentadas discussões contemporâneas sobre a atualidade ou não dos tipos descritos na obra sobre a personalidade autoritária e da Escala do Fascismo que avalia esses tipos, para responder a segunda questão apresentada, que é indicar que ainda são válidos.
Sociedade administrada e regressão individual
Max Horkheimer e Theodor Adorno (1985) e Theodor Adorno (2015) argumentam que, à medida que a sociedade se torna mais administrada, mais tecnologicamente desenvolvida, menos os indivíduos se desenvolvem, a ponto de conceitos fundamentais da psicanálise – isso, eu e supereu – se tornarem anacrônicos. a consciência moral quase não se desenvolve devido também à fragilidade do Eu: as celebridades a substituem, passa a haver um “supereu” extrojetado.
No capitalismo dos monopólios, na sociedade administrada, a diferenciação individual não é mais necessária, pois, ao contrário, essa diferenciação individual se torna obstáculo ao progresso dos objetivos capitalistas. As perturbações psíquicas descritas por Freud como a histeria, a neurose obsessiva, são substituídas pelo narcisismo, que Adorno (2015) associa ao abandono da consciência. Não é que haja uma neurose própria a cada época, mas que, segundo o autor, a sociedade, em cada momento, leva à regressão necessária à sua manutenção e reprodução.
Não se trata, no entanto, somente de diferentes tipos de perturbações psíquicas em cada momento social, e, sim, que do liberalismo para o capitalismo dos monopólios os indivíduos regrediram em sua constituição psíquica. A regressão psíquica é necessária socialmente, uma vez que, com o desenvolvimento do maquinário e a consequente automação dos setores produtivos, o que passa a ser fortalecido não é mais o indivíduo que pensa, mas o que reage impulsivamente para sobreviver.
O desenvolvimento psíquico, segundo Freud (1996, 2010, 2011), ocorre de uma indistinção inicial da mãe, passa ao autoerotismo e encaminha-se para a relação com outras pessoas, primeiramente os parentes mais próximos, depois pessoas fora da família. A cultura, a profissão, os diversos objetos passíveis de relação são fundamentais para que o indivíduo se desenvolva: maior o número de pessoas com as quais o indivíduo se identifica, mais forte a relação com a cultura, mais ele se diferencia. Neste mesmo sentido, para Adorno (2004), a diferenciação individual se dá com a introjeção da cultura, e, assim, quanto mais diversificada essa for, mais o indivíduo consegue expressar seus sentimentos, pensamentos, expectativas.
Em conjunto com Horkheimer, no texto sobre a indústria cultural, e em seu texto acerca da pseudocultura (2004), no entanto, Adorno argumenta que a cultura se converteu em duplicação da realidade atual, à qual devemos nos adaptar e a qual auxilia a produzir a alienação dos indivíduos face à sociedade, com objetos somente na aparência distintos, com pensamento voltado a questões técnicas, com a autoconservação ameaçada a todo momento. Assim, o indivíduo tem dificuldades de se desenvolver, pois se relaciona com a aparência dos objetos e da realidade.
Como o movimento do Esclarecimento, segundo Horkheimer e Adorno (1985), é contraditório, assim como a sociedade que o desenvolve, há de se supor que convivam indivíduos mais e menos diferenciados. Se há a perspectiva da democracia, ainda que limitada por uma sociedade de classes, se há elementos culturais que ao serem apropriados permitem a crítica, deve haver indivíduos que defendem a democracia, aqueles que sejam ambivalentes frente a ela e os que lhe são contrários. São esses tipos de indivíduos que a obra A personalidade autoritária parece indicar a existência.
Se a estrutura psíquica se altera, a forma de sua expressão também deve se modificar: é isso que se pode depreender do início do sétimo dos “Elementos do Antissemitismo” (Horkheimer e Adorno, 1985), no qual os autores indicam que, quando publicaram o livro, já não havia mais antissemitas – os últimos foram os do período liberal, existentes na virada do século XIX para o século XX. Em vez de um objeto imaginário de ódio – no caso, o judeu – o antissemitismo passa a ser um elemento objetivo da sociedade burguesa, convertendo-se no modelo geral do pensamento estereotipado que comanda os indivíduos tendencialmente paranoicos dessa sociedade (os quais podem defender pautas reacionárias ou mesmo “progressistas”).
O antissemitismo perde, assim, sua especificidade: o ódio ao judeu (a não ser como justificativa de perseguição em casos concretos). Como o mal-estar na civilização aumenta, conforme Freud (2011), no que é apoiado pelos frankfurtianos, a necessidade de agressão também, e como as relações com os objetos e com a cultura se tornam mais superficiais, é de se supor que a violência seja mais genérica, não tenha mais a necessidade de especificar o objeto de agressão e nem sequer justificá-la.
Como afirmam Adorno e Horkheimer no segundo dos “Elementos do Antissemitismo”, o alvo da agressão é intercambiável de acordo com a conjuntura, podendo esse lugar ser ocupado por todos aqueles identificados como não-integrados, tais como ciganos, artistas e mulheres, supostamente à margem do processo civilizacional (Adorno e Horkheimer, 1985: 160).
Na pesquisa sobre a personalidade autoritária, o sadomasoquismo é realçado como base desse tipo de personalidade, e, como mencionado, Adorno (2015) indica o narcisismo como seu substituto, no que o seguem Green (1988) e Lasch (1983). O sadomasoquista, como argumentam, tem um objeto delimitado, ainda que imaginário, e se põe em uma hierarquia: obedece aos de cima, subordina os de baixo. O narcisista também segue uma hierarquia, mas sem objetos especificamente definidos.
No trabalho sobre a personalidade autoritária, os autores dessa pesquisa utilizam duas expressões – personalidade autoritária e personalidade antidemocrática – sem as distinguir. Apresentam ao mesmo tempo argumentos teóricos e empíricos que permitem fazer a distinção, apesar de argumentarem que se trata de uma síndrome única, com variações nas dimensões presentes em um único tipo. Deste modo, contraditoriamente, afirmam uma única forma de manifestação de autoritarismo, mas dão elementos para se supor que não se trata de uma única configuração – é o que será desenvolvido na parte a seguir.
Personalidade autoritária como síndrome distinta da personalidade antidemocrática
Apresentamos nesta parte, a partir da obra A personalidade autoritária, e do texto “Observações sobre a personalidade autoritária”, que deveria compor essa obra, elementos que reforçam o argumento que o caráter autoritário, como conceito transversal do estudo e que se refere a uma única síndrome, configura pelo menos dois tipos de personalidades com características distintas: a de tipo autoritário, que se relaciona ao sadomasoquismo, à pseudoconservação, ao preconceito, e a personalidade antidemocrática, de correlação positiva com uma maior fragilidade do eu, com a destruição do objeto.[i]
Levinson, no capítulo que versa sobre a construção da escala do antissemitismo, traz uma nítida distinção entre uma ideia antidemocrática e uma ideia pseudodemocrática: “Uma ideia pode ser considerada abertamente antidemocrática quando se refere ao ódio ativo, ou à violência que tem como objetivo direto eliminar um grupo minoritário ou colocá-lo numa posição permanentemente subordinada. Uma ideia pseudodemocrática, por outro lado, é aquela em que a hostilidade para com um grupo é um tanto moderada e disfarçada por meio de um compromisso com os ideais democráticos” (Adorno et al., 1950: 60).[ii]
Assim, o indivíduo antidemocrático manifestaria diretamente seu ódio contra minorias e o pseudodemocrático teria uma tendência de amenizar tal manifestação por seu compromisso com ideais democráticos. No primeiro caso, não haveria nenhuma ambivalência de atitudes, como parece haver no último, em relação às autoridades vigentes.
Levinson considera que o pseudodemocrata não é necessariamente um disfarce para atitudes antidemocráticas: “É provavelmente um erro considerar o compromisso pseudodemocrático como um mero disfarce superficial usado deliberada e habilmente por pessoas preconceituosas para camuflar a sua antidemocracia real e consciente. A pessoa cuja abordagem dos problemas sociais é pseudodemocrática é, na verdade, diferente daquela cuja abordagem é agora abertamente antidemocrática. Por várias razões – talvez porque tenha internalizado valores democráticos, talvez em desacordo com os padrões sociais atuais – o pseudodemocrata não aceita agora ideias de violência aberta e repressão ativa. A preocupação com os valores democráticos e a resistência aos valores antidemocráticos devem ser consideradas como factos psicológica e socialmente importantes em qualquer tentativa de compreender o preconceito, a variedade americana (Adorno et al., 1950: 61)”.[iii]
O conflito do pseudoconservador é nítido e essa citação indica que os valores democráticos foram ao menos parcialmente incorporados, contrapondo-se aos seus desejos de destruição. A defesa de valores democráticos não seria necessariamente falsa, e, por isso, tais indivíduos não atuariam cinicamente; vivem um conflito real. De fato, Levinson propõe que, dentro de um contínuo entre posições antidemocráticas e democráticas, as pseudodemocratas estejam entre os dois extremos.
O pseudodemocrata pode, dessa forma, se tornar antidemocrata, ou, caso se fortaleçam seus valores democratas, um defensor da democracia – dependeria do “clima cultural geral” predominante em um dado momento na sociedade. Assim, o pseudodemocrata não seria necessariamente autoritário, mas alguém que expressa um conflito entre tendências opostas, o que possibilitaria uma ação educacional que fortalecesse sua tendência democrática.
Essa distinção não é apresentada dessa forma em outros capítulos da obra A personalidade autoritária, tais como os que se referem à elaboração da Escala F e à análise dos “tipos e síndromes”; nesses capítulos são apresentadas várias características que podem variar em presença e intensidade, mas que caracterizam a personalidade autoritária. Os autores reafirmam, ao contrário de Levinson, a existência de um só tipo de estrutura de personalidade potencialmente antidemocrática – a autoritária, pois potencial e não manifestamente antidemocrática:
“Essas variáveis foram pensadas, no caso de se apresentarem juntas, como formando uma mesma síndrome, uma estrutura mais ou menos duradoura, que torna a pessoa receptiva à propaganda antidemocrática. Pode-se dizer que a escala F tenta mensurar a personalidade potencialmente antidemocrática” (Adorno, 2019: 135).
A ambivalência frente à autoridade é nítida nos que podem ser potencialmente antidemocráticos (autoritários): “Considerou-se aqui, como no caso do convencionalismo, que a subserviência a agências externas era provavelmente devida a alguma falha no desenvolvimento de uma autoridade interna, ou seja, da consciência. Outra hipótese foi a de que a submissão autoritária é uma maneira comum de lidar com sentimentos ambivalentes em relação à figura de autoridade: impulsos hostis e rebeldes subjacentes, controlados por medo, levavam o sujeito a exagerar na direção do respeito, da obediência, da gratidão e coisas similares” (Adorno, 2019: 141).
A estrutura que caracteriza o autoritário é a sadomasoquista: “Assim, pode-se dizer que a presente variável (agressão autoritária) representa o componente sádico do autoritarismo, assim como a imediatamente anterior (submissão autoritária) representa a componente masoquista” (Adorno, 2019: 142-143).
Se o sadomasoquismo – expressado pela agressão autoritária, submissão autoritária e convencionalismo – indica a fragilidade do Eu, há, segundo os autores, outras formas de expressar essa fragilidade, o que implica a possibilidade de outras configurações de personalidade, uma vez que, segundo a hipótese básica do estudo analisado, há necessidades psíquicas subjacentes às manifestações individuais: “Embora o convencionalismo e o autoritarismo pudessem, desse modo, ser considerados sinais de fraqueza do eu, pareceu valer a pena buscar outros meios mais diretos para estimar essa tendência na personalidade e correlacioná-la com outras” (Adorno, 2019: 146-147).
Entre essas outras formas de expressar a fragilidade está a conversão dos outros em objetos a ser manipulados; não se trata apenas de uma questão moral, mas da satisfação de desejos de dominação: “Essa atitude geral leva facilmente a uma desvalorização do humano e a uma sobrevalorização do objeto físico; quando é extrema, os seres humanos são vistos como se fossem objetos físicos a serem friamente manipulados – mesmo quando objetos físicos, agora investidos de apelo emocional, são tratados com um cuidado amoroso” (Adorno, 2019: 148).
No âmbito da escala F, a mencionada atitude foi tipificada no item “destruição e cinismo”. Outros itens da escala também tipificam atitudes relacionadas a uma maior fragilidade do eu: tal parece ser o caso de “anti-intracepção”, “superstição e estereotipia” e “poder e dureza” (Adorno, 2019: 189-190). Essas atitudes servem de base a uma forma de agressão distinta da agressão autoritária, baseada no sadomasoquismo e de traço essencialmente moralizante.
As duas formas em que a agressão pode se manifestar – moral e amoral – são explicitadas por Theodor Adorno: “Como vimos, uma saída para essa agressividade é através do deslocamento em direção a outgroups, o que leva à indignação moral e à agressão autoritária. Indubitavelmente, este é um dispositivo muito útil para o indivíduo, no entanto, a forte agressividade subjacente, ao mesmo tempo, expressa-se de outra maneira não moralizada” (Adorno, 2019: 154-155).
Pode-se supor que a agressividade moral indique a existência de um supereu, ainda que não bem estabelecido, já a forma de agressividade não moral pode prescindir dessa suposição e implicar uma violência não mediada pela consciência moral.
Fortalece essa hipótese a afirmação dos autores de que na Escala do Fascismo há itens que não se circunscrevem a uma agressão baseada na moralidade, o que permite pensar que a personalidade antidemocrática difere da autoritária, pois a agressividade não moralizada não é especificada, e pode ser dirigida, difusamente, a qualquer objeto: “Outros itens lidaram com o desprezo pela humanidade, sendo a nossa teoria a de que aqui a hostilidade é tão generalizada, tão livre de direcionamento contra qualquer objeto particular que o indivíduo não necessita se sentir responsável por ela” (Adorno, 2019: 155).
Theodor Adorno, no capítulo “Tipos e Síndromes”, ressalta que as hipóteses tipológicas foram formuladas a partir da teoria psicanalítica e, ao se referir à elaboração das escalas que avaliam o preconceito, recorda que todos os itens que a compõe pertencem a “uma única síndrome”: “É uma das descobertas mais notáveis do estudo que a “pontuação alta” é essencialmente uma síndrome, distinguível de uma variedade de síndromes “baixas”. Existe algo como “o” caráter potencialmente fascista, que por si só é uma “unidade estrutural”. Em outras palavras, características como convencionalismo, submissão autoritária e agressividade, projetividade, manipulabilidade etc., regularmente caminham juntas. Portanto, as “sub-síndromes” que descrevemos aqui não pretendem isolar nenhum desses traços. Todos eles devem ser entendidos dentro do esquema geral de referência do alto pontuador. O que os diferencia é a ênfase em uma ou outra das características ou dinâmicas selecionadas para caracterização, não sua exclusividade” (Adorno, 2019: 529).
Como se poderá constatar a seguir, as descrições feitas de cada síndrome indicam configurações psíquicas distintas e passíveis de confirmar os dois tipos que este artigo defende: a personalidade autoritária, pseudoconservadora, e a personalidade antidemocrática; tal defesa se aproximaria da perspectiva apresentada por Levinson, como descrita anteriormente.[iv]
Em relação aos tipos descritos por Theodor Adorno, partimos da seguinte hipótese: a síndrome nomeada de autoritária seria o tipo pseudoconservador, enquanto as síndromes do psicopata e do manipulador estariam mais relacionadas a uma personalidade antidemocrática. Na tentativa de demonstrar essas possíveis correlações, sublinhamos os traços mais marcantes apresentados por Theodor Adorno para cada uma dessas síndromes.
Sobre “a síndrome autoritária”, por ser a que mais se aproxima da imagem do alto pontuador, Theodor Adorno recorre ao complexo de Édipo, para explicar a formação do caráter sadomasoquista, explicitando a associação entre o indivíduo autoritário e os traços sadomasoquistas.
A fim de alcançar a “internalização” do controle social, que nunca dá ao indivíduo tanto quanto dele tira, a atitude deste último em relação à autoridade e à sua agência psicológica, o supereu, assume um aspecto irracional. “O sujeito alcança o seu próprio ajuste social apenas sentindo prazer na obediência e na subordinação. Isso traz à tona a estrutura de impulsos sadomasoquistas, tanto como condição quanto como resultado do ajuste social. (…) A ambivalência é generalizada, sendo evidenciada principalmente pela simultaneidade da crença cega na autoridade e da prontidão para atacar aqueles que são considerados fracos e que são socialmente concebidos como “vítimas”. A estereotipia, nessa síndrome, não é apenas um meio de identificação social, mas tem uma função verdadeiramente “econômica” na própria psicologia do sujeito: ajuda a canalizar sua energia libidinal de acordo com as exigências de seu supereu extremamente rigoroso (Adorno, 2019: 544-545).
O caráter vinculado à autoridade, que em outro texto Adorno (2005) nomeia de “caráter edípico”, apresenta uma cisão de afetos: fidelidade consciente à autoridade e ódio latente projetado sobre minorias; há objetos específicos associados ao julgamento moral de um supereu mal constituído, sobre os quais pode lançar sua agressividade. Isso não ocorre necessariamente em outros tipos descritos.
As síndromes nomeadas de “psicopata” (apresentada em conjunto com o “delinquente”) e de “manipulador” são menos associadas a juízos morais, manifestando mais diretamente impulsos agressivos sem objetos fixos, o que se relaciona mais à personalidade antidemocrática. Para explicar a síndrome “o rebelde e o psicopata”, Theodor Adorno afirma que, a depender da forma de resolução do complexo de Édipo, uma insurreição pode ocorrer e, em vez de eliminar as tendências sadomasoquistas, reforça, pelo contrário, os traços autoritários, o que “pode levar a um ódio irracional e cego a toda autoridade, com conotações fortemente destrutivas, acompanhado por uma prontidão secreta para ‘capitular’ e dar as mãos ao forte ‘odiado’” (Adorno, 2019: 551).
Além dos traços acima, Theodor Adorno pontua que: “Esses indivíduos são os mais “infantis” de todos: eles falharam completamente em “se desenvolver”, não foram de jeito nenhum moldados pela civilização. São “associais”. Os anseios destrutivos vêm à tona de maneira explícita e não racionalizada. A força corporal e dureza – também no sentido de poder “apoderar-se” – são decisivas. A fronteira entre eles e o criminoso é fluida. Sua indulgência com a perseguição é cruamente sádica, dirigida contra qualquer vítima indefesa; é inespecífica e mal matizada pelo preconceito” (Adorno, 2019: 553).
O tipo psicopata não apresenta como o tipo autoritário uma consciência moral rígida e as minorias como objetos de agressão, dirige-se contra qualquer “vítima indefesa” e nisso se mostra mais regredido psiquicamente do que o autoritário, pois, como explicitado no trecho acima, “são os mais infantis de todos”.
Sobre a síndrome “caráter manipulador”, Theodor Adorno considera ser a potencialmente mais perigosa por apresentar uma estereotipia extrema, com rigidez, e tendência a dividir o mundo “em campos administrativos, vazios e esquemáticos”. Os traços que marcam esta síndrome são os que, em nossa análise, mais se relacionam ao arcabouço de uma personalidade antidemocrática, destrutiva.
Para Theodor Adorno, aqui: “Há uma quase completa falta de investimento objetal e de laços afetivos. (…) [expressa] uma espécie de super-realismo compulsivo que trata tudo e todos como um objeto a ser utilizado, manipulado, apreendido pelos próprios padrões teóricos e práticos do sujeito” (Adorno, 2019: 561).
Além da ausência de objetos e afetos, advindos do investimento libidinal, Theodor Adorno expõe que esses indivíduos apresentam uma ênfase exagerada em “fazer coisas”, indiferentemente do conteúdo que será realizado; e, para o frankfurtiano, este é um padrão bastante comum “encontrado em numerosos homens de negócios e também, em número cada vez maior, entre a ascendente classe gerencial e tecnológica que mantêm, no processo de produção, uma função entre o antigo tipo de proprietário e a aristocracia dos trabalhadores” (Adorno, 2019: 561-562). São, portanto, pessoas que desempenham funções altamente valorizadas nas relações capitalistas contemporâneas e que se encontram hierarquicamente em posições de trabalho que determinam e submetem outras pessoas ao modo como veem o mundo.
Assim como no tipo psicopata, não há sentimentos envolvidos, mas o prazer na dominação por meio da classificação fria de todos como objetos; não é a consciência moral que o caracteriza, mas a ausência de conflitos.
Para delimitar as duas formas de autoritarismo cotejadas, Adorno adjetiva o fenômeno mais recente que examinam de “antissemitismo totalitário”.
“Podemos chegar ao ponto de dizer que o antissemitismo totalitário está, por assim dizer, alienado do preconceito de seus próprios adeptos; na verdade, o preconceito entra em cena apenas como apêndice de algo incomparavelmente mais abrangente” (Adorno, 2021: 362).
Essa alienação do preconceito, de que fala o autor, parece indicar uma proximidade da destruição manifesta, associada a elementos psíquicos mais primitivos, ou seja, não se trata mais do preconceito evocado pela personalidade autoritária, mas de um tipo de agressão sem alvo definido, alicerçada na personalidade antidemocrática/totalitária, assim como exposto na citação a seguir: “Sob o aspecto positivo do ‘alto’ [pontuador], descortina-se o oposto: ‘Sua ênfase está na destruição’” (Adorno, 2021: 375).
Nesse sentido, há uma regressão da configuração psíquica, pois uma maior fragilidade do Eu obnubila o sadomasoquismo, como salientado neste excerto: “Também não é por acaso que as neuroses de transferências clássicas, a partir das quais Freud desenvolveu a sua teoria, parecem ter desaparecido e têm sido gradualmente substituídas por conflitos narcísicos (…)” (Adorno, 2021: 380).
O indivíduo, cada vez menos diferenciado, tem menos capacidade de reflexão sobre as causas de seu sofrimento, dessa forma, canaliza sua agressividade difusamente a qualquer objeto que apresenta fragilidade (Adorno, 1995).
Esse comportamento de ticket sinaliza regressão, pois a violência se torna cada vez mais “gratuita”, e sem justificativa, por mais irracional que essa justificativa seja: “O que estamos enfrentando aqui não é o velho ódio aos judeus como um poder emocional distinto. É a prontidão de certos tipos de homem a aceitar mecanicamente determinados padrões ideológicos, tickets, que também contêm slogans antissemitas, mas que não são mais inspirados por reações antissemitas per se. (…) Pode-se dizer que nossa época de antissemitismo totalitário e genocídio não conhece mais o antissemitismo “espontâneo”, e é possível que a própria ausência de uma base emocional autêntica e específica o torne tão impiedoso” (Adorno, 2021: 380).
Cabe enfatizar que essa configuração psíquica, própria do mundo administrado, é mais recente do que a do antissemita do final do século XIX, que, segundo Horkheimer e Adorno (1985), ainda expressavam um ódio pessoal.
Considerando o que foi apresentado nesta parte do texto, há razões para supor que no estudo sobre a personalidade autoritária, como indicado, há mais do que um tipo de estrutura de personalidade, o que contradiz o que os autores supõem; se há ao menos duas outras estruturas psíquicas, ainda se pode dizer que uma delas – a antidemocrática – é mais regredida do ponto de vista psíquico do que o autoritário, sua agressividade é mais generalizada, menos associada à constituição de objetos necessária à formação de um Eu e, dadas as condições objetivas, há de se supor que essa seja uma forma a mais de autoritarismo.
A seguir, serão apresentados estudos recentes que refletem sobre a atualidade dos resultados de A personalidade autoritária. Destaca-se que para esses estudos o conceito de narcisismo como substituto do sadomasoquismo na contemporaneidade é importante.
A discussão contemporânea
Em distinção à personalidade autoritária, a relevância do conceito de narcisismo para compreender a subjetividade contemporânea já fora notada por Brede (1995), que analisou a diferença entre o “autoritarismo clássico”, baseado no conflito com o supereu, de origem edípica, e o “novo autoritarismo”, baseado no narcisismo pré-edípico. Lantos e Forgas (2021) e Golec de Zavala, Dyduch-Hazar e Lantos (2019) analisaram casos contemporâneos de nacionalismo autoritário com recurso ao conceito de “narcisismo coletivo”, entendido como a propensão a uma crença não realista na suposta grandeza do próprio grupo, que por sua vez conduziria à agressão contra o grupo externo.
Segundo Herzog (2021) a proeminência assumida pelos traços narcisistas de personalidade na subjetividade contemporânea está vinculada a transformações ocorridas a partir das últimas décadas do século XX nas diversas esferas sociais, nas quais a obediência hierárquica progressivamente vem cedendo lugar a outros valores: nos âmbitos da família e da educação, a obediência sem questionamento a pais e professores tem sido substituída pelos ideais da “autodeterminação” e da “autorrealização” (na vida pessoal e profissional); no âmbito do trabalho, o mero cumprimento das determinações do chefe tem sido substituído pelos ideais da “proatividade” e do contínuo desenvolvimento das próprias “competências”; no âmbito da política a relação dos cidadãos com o Estado em geral não tem dispensado, ao longo das últimas décadas, alguma forma de “participação”, ainda que a multiplicação recente de líderes autoritários torne a situação nesse âmbito um pouco menos clara (Herzog, 2021).[v]
Essa nova configuração da subjetividade contemporânea resultou no debate sobre a necessidade (ou não) de uma “atualização” do conceito de “caráter autoritário”, tal qual formulado por Theodor Adorno e pelos autores da primeira geração da teoria crítica. Nas últimas décadas têm se multiplicado os estudos que indagam sobre a atualidade das análises empreendidas no trabalho sobre a personalidade autoritária: pelo menos desde a publicação em 1966 da obra de Böckelmann (2017), passando por Rensmann (1998), Norris (2005) e, mais recentemente, Henkelmann et al. (2020) e Weigel (2022) – para mencionar apenas alguns – vêm sendo regularmente feitas tentativas de atualização teórica da obra, a fim de analisar fenômenos contemporâneos que mantêm, reservadas suas especificidades, traços em comum com os fenômenos investigados por Theodor Adorno e seus colaboradores.
A essa mesma tentativa de atualização a revista Constelaciones, em seu volume 10 (2018), dedicou o dossiê “Violência socializadora e dinâmicas autoritárias no horizonte da crise”. No editorial, Maiso e Zamora (2018) constatam a quebra, nas últimas décadas, do vínculo entre adaptação aos imperativos do mercado e obtenção de bem-estar e segurança, o que teria suscitado – principalmente nas classes médias – sentimentos de medo e raiva, projetados em grupos minoritários identificados como fonte de ameaça. Caberia à teoria crítica contemporânea investigar a permanência da “personalidade autoritária”, objeto da investigação de Adorno e seus colegas: um dos desafios que aí se impõem seria explicar a persistência de dinâmicas autoritárias em meio a sociedades que sob diversos aspectos são aparentemente mais permissivas do que as sociedades de meados do século XX (Maiso e Zamora, 2018).
Como meio de compreender as dinâmicas psicossociais contemporâneas, Frankel (2022) e Gandesha (2018) defendem, no lugar do conceito freudiano de “introjeção da autoridade paterna” (presente na base do “caráter autoritário”, tal qual formulado pelos autores da primeira geração da teoria crítica), o recurso ao conceito de Ferenczi de “identificação com o agressor”: após sofrer uma violência, a criança, em vez de se relacionar de maneira hostil a seu agressor, desenvolveria com ele uma identificação, como meio de lidar com o trauma e a insegurança a ele vinculada.
Em relação ao que defendem Frankel (2022) e Gandesha (2018), há de se notar que a “identificação com o agressor” já havia sido indicada por Freud (2011), ao discorrer acerca da formação do supereu, uma vez que a base dessa instância era o medo da perda do amor dos pais, que corresponderia à possibilidade de ser agredido por eles.
Zaretsky (2018), por sua vez, defende a primazia do conceito de “narcisismo” para analisar fenômenos como o apoio a Donald Trump, e sustenta que a própria teoria crítica da primeira geração forneceria elementos para tanto. Segundo Zaretsky, Theodor Adorno e seus colegas do Instituto teriam diferenciado entre o tipo de subordinação aos líderes políticos do fascismo europeu (Hitler e Mussolini) e o vínculo estabelecido com o demagogo na sociedade de instituições formalmente democráticas, como os EUA: o primeiro consistiria na subordinação a uma figura paterna, percebida como mais forte e situada em um nível hierarquicamente superior, enquanto no segundo tipo de vínculo o narcisismo dos seguidores seria tão importante quanto o do líder, gerando um processo de identificação capaz de promover a compensação do narcisismo ferido (Zaretsky, 2018: 446).[vi]
Dessa forma, esse autor defende que os frankfurtianos já diferenciavam a existência de dois tipos de adesão à autoridade, tal como foi desenvolvido na parte anterior deste trabalho, com a distinção de um outro tipo que, entretanto, não se nomeou como ‘narcisista’.
Outro entendimento é expressado por Dahmer (2018) e Eisenberg (2018), que sustentam a atualidade do conceito de “caráter autoritário”: latente durante os períodos de estabilidade política, esse tipo de personalidade se manifestaria – tornando-se relevante politicamente – em tempos de crise. Assim, de maneira parecida ao que ocorrera no fascismo dos anos de 1930 e 1940, atualmente assistiríamos a uma explosão do ódio fascista (Dahmer, 2018: 51; Eisenberg, 2018: 322-323).
Em relação a esses estudos de Dahmer (2018) e de Eisenberg (2018), deve-se ressaltar que não há, contudo, razão para supor que, após a segunda grande guerra, tenha havido um período de latência, no qual tais manifestações do ódio fascista não estivessem presentes; basta lembrar os diversos conflitos militares nos quais os EUA, a URSS e as potências europeias estiveram envolvidas, assim como as ditaduras estabelecidas nos países latino-americanos e em outros.
Clemens (2016) e Schulz (2020) sustentam a coexistência, na atualidade, do “caráter narcisista”, próprio das últimas décadas, e o “caráter autoritário”, típico da primeira metade do século XX, o que, como mencionado antes, parece apropriado, considerando que nossa sociedade, por ser contraditória, pode abrigar diversos tipos de estruturas de personalidade.
O tipo autoritário sobreviveria de maneira residual e minoritária, mas capaz de se manifestar com força em momentos de crise (Clemens, 2016: 313-314), ou então, por sua vez, seria possível constatar uma distribuição diferenciada de tipos específicos de caráter ao longo dos diversos setores da classe trabalhadora, estando o “caráter autoritário” mais associado a suas camadas mais precarizadas, e o “caráter narcisista” mais presente em meio àqueles profissionais que detêm empregos flexíveis altamente remunerados (Schulz, 2020).
O papel do conceito de narcisismo para a compreensão de aspectos do autoritarismo contemporâneo (por exemplo, o orgulho nacionalista) também é ressaltado por Decker (2018), que considera infrutífera a disjuntiva entre “caráter autoritário” e “narcisismo”: o segundo poderia ser analisado como um dos traços do primeiro, caso esse seja compreendido de uma maneira mais ampla, e não necessariamente como resultado do conflito edípico.
A esse respeito, cabe ressaltar, no entanto, que o complexo de Édipo é conceito importante na delimitação que Adorno (2019) dá ao tipo autoritário, no capítulo assinado somente por ele em “Tipos e Síndromes”. De todo modo, Decker reafirma a posição dos autores da personalidade autoritária de que há um único tipo, com variações internas à mesma dinâmica psíquica, com posição distinta da que está sendo defendida neste artigo.
Brockhaus (2015), por sua vez, insiste na diferenciação entre autoritarismo e narcisismo, e chama a atenção para a importância do conceito de narcisismo na obra The Autoritharian Personality (Brockhaus, 2015: 20-22), ainda que esse conceito não tenha sido formulado de maneira sólida e explícita (essa presença, ainda que mal explicitada, do conceito de narcisismo naquele trabalho também havia sido notada por Clemenz, 1998, e por Crochick, 1990).
Para sustentar sua hipótese, a autora mostra como Theodor Adorno, no capítulo “Tipos e síndromes”, analisou alguns fenômenos que não se deixam subsumir ao conceito de “caráter autoritário”, e sim mantêm uma grande afinidade com a fase pré-edípica do desenvolvimento, revelando se tratar de tipos mais “regredidos” (Brockhaus, 2015: 21-22).
Em conformidade a essa argumentação, Brockhaus critica Decker por querer se ater ao conceito de “caráter autoritário”, baseado em tendências sádicas e masoquistas, ao mesmo tempo em que concede, na versão contemporânea que dele elabora, um lugar central às tendências narcisistas: sadomasoquismo e narcisismo seriam, contudo, fenômenos de ordens essencialmente diferentes (Brockhaus, 2015: 23, nota 38).[vii]
Segundo a autora, o conceito de narcisismo seria especialmente importante para a pesquisa sobre o fascismo na atualidade, dado que os itens centrais da escala F (como o “convencionalismo autoritário”) não seriam mais relevantes na sociedade contemporânea, altamente individualista e complexificada, tornando a escala F pouco útil atualmente (Brockhaus, 2015: 18-20).
A importância conferida ao conceito de narcisismo vai ao encontro da análise feita por Adorno e Horkheimer nos “Elementos do antissemitismo”, texto no qual realçam a maior infantilização dos indivíduos, que desistem de entrar no conflito com a autoridade paterna, próprio à fase edípica do desenvolvimento psíquico, e que, em vez de conseguirem formar sua consciência, têm como modelo as celebridades.
De um lado, a distinção que Brockhaus (2015) faz entre personalidade autoritária e narcisista está de acordo com a existência de mais de um tipo de autoritarismo individual, como foi desenvolvido na parte anterior deste texto; por outro lado, pesquisas feitas no Brasil têm evidenciado que a Escala do Fascismo tem mantido sua fidedignidade e validade psicométricas. Resultados de pesquisas realizadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Lima et al., 2020 e Lima, 2022), que aplicou em amostra representativa da população brasileira parte da Escala F associada com o sadomasoquismo, revelaram alto grau de autoritarismo em 2018 e uma pequena diminuição em 2022.
Galeão-Silva (2007) utilizou a Escala F e obteve correlações significantes com escalas sobre o preconceito sutil e manifesto. Crochick (2005, 2019) e Crochick et al. (2009) obtiveram Coeficiente de Cronbach acima de 0,75 e correlações significantes entre a escala F e escalas que avaliavam preconceito, bullying, narcisismo.
Em estudo recente, no qual a Escala F foi dividida em duas partes, seguindo formulações de seus autores, Crochick (2023) verificou que a parte da Escala correspondente ao sadomasoquismo teve maiores valores de correlações com o preconceito, e outra parte, que avaliava um tipo de violência não restrito a minorias étnicas, e uma escala que avaliava traços de narcisismo se associavam mais com o bullying do que com o preconceito. Esses dados reforçam que o trabalho sobre a personalidade autoritária indicava a existência de mais de um tipo de caráter autoritário e que o narcisismo existe em concomitância com esses tipos de personalidade.
Os diversos estudos citados nesta parte do trabalho indicam análises distintas sobre a continuidade ou não do que foi detectado no estudo de Adorno et al. (1950); pela análise feita, no entanto, os resultados desse estudo mostram-se atuais, com a existência de mais de um tipo de personalidade autoritária, com o predomínio de uma com maior fragilidade do Eu, que esses estudos nomeiam de narcisismo, o que está de acordo com a análise dos frankfurtianos, que associam o avanço técnico e administrativo com a regressão psíquica.
Considerações finais
Em relação ao primeiro objetivo deste estudo – evidenciar a existência de ao menos dois tipos de personalidade contrárias à democracia: a sadomasoquista e uma fragilidade maior do Eu – pode-se indicar, por meio de afirmações dos autores de “A personalidade autoritária”, que são configurações distintas, que expressam a violência ou mediada por uma consciência moral mal estabelecida ou de forma mais direta.
A primeira, dirigindo a agressão para grupos específicos que supostamente contrariam os valores convencionais estabelecidos, e a outra, que direciona a agressão para qualquer alvo, com a mera necessidade de destruição. A maior fragilidade do Eu, com a ausência da consciência moral, é propícia a uma sociedade que não precisa mais de indivíduos produtivos e nem que interiorizem as normas sociais, tendo em vista que os controles diretos se ampliaram.
Quanto ao segundo objetivo deste estudo – indicar a vigência dos resultados obtidos na pesquisa de Adorno et al. (1950) –, alguns autores a defendem, outros, não, mas sempre amparados em argumentos desenvolvidos pelos frankfurtianos.
Foi destacada a nossa contraposição a que a configuração social e a consequente determinação da constituição individual sejam substancialmente distintas das existentes na década de 1940 e que, ao contrário, a “lógica” do desenvolvimento social prosseguiu tornando a vida individual mais controlada do que outrora, possibilitando a formação de indivíduos mais infantilizados, como os autores de A personalidade autoritária já haviam denunciado.
Caberia ponderar que Horkheimer e Adorno (1947/1985), no prefácio da segunda edição dessa obra, indicam o receio da continuidade do fascismo próprio a uma sociedade administrada, o que parece ser válido para os dias de hoje, considerando o avanço dos controles sociais, principalmente por meio das novas tecnologias virtuais, que possibilitam que as informações sobre cada cidadão sejam facilmente acessíveis, além de suas posições políticas, expostas nas redes sociais. Assim, ao que tudo indica, não houve rompimento com o “mundo administrado”, mas o seu aperfeiçoamento: a administração é quase onipresente nos dias que correm.
Com esses resultados, há de se agir para a continuidade da crítica à sociedade administrada, e para a formação de indivíduos que possam ter uma relação com os outros e com a cultura que expresse o contrário do controle: a crítica aos limites sociais e à necessidade de agredir quem quer que seja.
*José Leon Crochik é professor titular aposentado sênior do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria crítica da sociedade e psicologia. Alguns ensaios (Junqueira e Marin). [https://amzn.to/47xsPud]
*Fábio De Maria é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo.
*Luís César de Souza é professor de filosofia da educação na Universidade Federal de Goiás – Campus Jataí.
*Eduardo Borba Gilioli é doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
Texto publicado originalmente em Constelaciones – Revista de Teoría Crítica, número 16, 2024.
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Notas
[i] Assim como alguns textos de Adorno, as “Observações sobre a personalidade autoritária” foram publicadas apenas postumamente. A sua não publicação pelo autor não elimina a pertinência do texto para revelar aspectos importantes de seu pensamento à época da publicação de Personalidade Autoritária. Registre-se também que o texto foi localizado no Arquivo Horkheimer, da Universidade de Frankfurt am Main, e publicado sem reparos em 2016 na revista Platypus (n. 91), já tendo se tornado parte do corpus de obras do autor.
[ii] No original: “An idea may be considered openly antidemocratic when it refers to active hatred, or to violence which has the direct aim of wiping out a minority group or of putting it in a permanently subordinate position. A pseudodemocratic idea, on the other hand, is one in which hostility toward a group is somewhat tempered and disguised by means of a compromise with democratic ideals”.
[iii] No original: “It is probably an error to regard the pseudodemocratic compromise as a mere surface disguise used deliberately and skillfully by prejudiced people to camouflage their actual, conscious antidemocracy. The person whose approach to social problems is pseudodemocratic is actually different now from one whose approach is now openly antidemocratic. For various reasons perhaps because he has internalized democratic values, perhaps out of conformity to present social standards—the pseudodemocrat does not now accept ideas of overt violence and active suppression. The concern with democratic values, and the resistance to antidemocratic ones, must be considered as psychologically and socially important facts in any attempt to understand prejudice, American variety”.
[iv] Não se trata de defender que Adorno tenha se inspirado em Levinson para desenvolver em seus textos posteriores à Personalidade Autoritária considerações sobre a “personalidade antidemocrática”. Trata-se, isto sim, de indicar a presença de conceitos semelhantes nas obras de ambos os autores (verificar se houve influência direta ou não requereria, cremos, uma pesquisa específica, com consulta a cartas e documentos de arquivo).
[v] O presente artigo pode contribuir para esclarecer esse ponto, na medida em que pondera sobre o peso do narcisismo na personalidade que serve de base à dominação política de traços autoritários.
[vi] Para sustentar esse argumento, o autor recorre ao texto de Adorno sobre “Teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista”. A proeminência dos elementos narcisistas na personalidade de líderes autoritários contemporâneos, tais como Trump, Bolsonaro, Orban, Duterte e outros, foi analisada por Nai e Toros (2020).
[vii] Para além da questão do narcisismo, contudo, a escala F teria sido incapaz, segundo a autora – e como os próprios autores da obra coletiva admitem na conclusão do capítulo VII (Adorno, 2019: 231) – de comprovar a conexão entre as atitudes que ela media e a estrutura de caráter dos respondentes: essa conexão teria sido estabelecida com mais sucesso nas entrevistas e testes clínicos (Brockhaus, 2015: 22).
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