O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2

Imagem: Anthony Mucci
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Por RENATO DAGNINO*

Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar

Este é o segundo de cinco escritos que preparei esquartejando, a conselho de uma companheira, um maior sobre este assunto. O primeiro foi publicado no site A Terra é Redonda, em 02 de dezembro.

Neste segundo, desloco o foco genérico e global do primeiro para caso específico, brasileiro. Ele precede o terceiro, que também trata da “problemática”, adicionando informação secundária e primária sobre o contexto brasileiro. O quarto, ainda se situa no momento da “problemática”. Mas, diferentemente dos anteriores, aborda um obstáculo de natureza ideológica, interno à concepção de muitos dos partidários da Economia solidária (ES), relacionado à maneira como entendem a relação entre ela e a tecnociência capitalista. Finalmente, o quinto escrito, apresenta a “solucionática” proposta.

1.

Minha hipótese forte de partida é de que o empreendedorismo (ED) é a origem de um “erro de projeto” que entrava a política da Economia solidária.

Inicio com outra a ela associada, de que a pervasividade do ideário neoliberal vem produzindo dinâmicas que levaram à crescente acolhida do empreendedorismo como padrão organizacional adequado da atividade econômica brasileira. O qual atua, como pretendo mostrar, transcendendo a ação sobre os integrantes da economia informal, penetrando, pela via dos processos de pejotização a dinâmica da economia formal, e alterando a forma como se vai conformando o circuito de acumulação de capital como um todo.

Há prenúncios de que, semelhantemente ao que ocorreu em meados dos anos de 1970, quando a reforma neoliberal do capitalismo foi experimentada no Chile de Augusto Pinochet, estaríamos hoje aqui assistindo ao ensaio da adoção de um novo padrão organizacional. Mais adaptado à diminuição da importância das atividades de produção de bens e serviços para a exploração da mais-valia gerada pelos trabalhadores, o empreendedorismo vem ganhando tração.

Isso têm levado a que a proposta do empreendedorismo, já em implementação por influentes órgãos estatais criados para o fomento da competitividade empresarial e implicitamente endossada em outros ambientes, venha sendo crescentemente adotada no ambiente em que se elabora a política da Economia solidária brasileira. Isso a ponto de que, mesmo os que estão conscientes da sua pouca aderência à Economia solidária, veem o empreendedorismo como uma saída tática, defensiva, para a obtenção do resultado estratégico por ela buscado.

Está no centro dessa origem o fato de o empreendedorismo ser crescentemente entendido como um “modelo de negócio” dotado de alto potencial de aumento de eficiência, eficácia e efetividade das políticas públicas “inovadoras” com que o capitalismo contemporâneo – predatório, financeirizado, datificado, excludente etc. – busca enfrentar sua policrise. Derivado disso, está a incorporação da sua proposta organizacional como núcleo das políticas orientadas a “outras economias”, como as que recebem o “sobrenome” de verde, de impacto, criativa, responsável, circular, sustentável etc.

2.

Políticas que, fruto do rebaixamento das agendas da esquerda e do vácuo propositivo derivado, vêm oportunisticamente ocupando um espaço na agenda pública, no orçamento governamental, no processo espúrio das emendas parlamentares, e na ação (subliminar, inclusive) do “quarto poder” midiático. Mas, por ser racionalmente injustificado, ele precisa ser entendido como um elemento ideológico da contrapartida de consentimento associado à hegemonia do neoliberalismo.

O fato de que essas “outras economias”, embora possuam contradições com as explorações inerentes ao capitalismo, não questionam seus princípios – heterogestão, propriedade privada dos meios de produção e do conhecimento etc. –, nem a premissa da produção para o, e da competição no, mercado, e pretendam tão-somente atualizá-lo, faz com que a adoção do empreendedorismo como “modelo de negócio” seja vista como natural, legítima e eficaz.

Ao investigar o que ocorre na Economia solidária realmente existente, se constata que ao buscar sobreviver, os integrantes da economia informal tendem a atuar seguindo a lógica da Economia Popular; a qual se caracteriza pela produção de mercadorias a partir de não mercadorias.

Em especial da força de trabalho que, por não ser vendida e comprada pelo capitalista para viabilizar a acumulação de capital mediante a extração de mais valia, entra num circuito de produção de bens e serviços como uma não mercadoria. O que, quando o resultado de seu uso se orienta para a venda no mercado capitalista faz com que ele se converta numa mercadoria.

Para abordar a “problemática” de modo aderente à proposta de “solucionática” que vou finalmente fazer, é conveniente entender essa lógica como animada por três vetores de indução. O primeiro deles é muito semelhante àquele que famílias e comunidades que foram adquirindo, ainda no período de transição do feudalismo para o capitalismo, um conhecimento que lhe permitia a produção de alguns bens e serviços. Delas se originaram as guildas que, quando bem-sucedidas, constituíram a burguesia. Esse vetor explica, por exemplo, as atividades da Economia solidária relacionadas à agricultura familiar e ao artesanato.

Os outros dois vetores têm que ser entendidos a partir da previa existência de um mercado capitalista consolidado. O segundo deles pode ser entendido com o exemplo bem conhecido, a ponto de se ter tornado o caso paradigmático da economia popular. É o da senhora que, utilizando sua própria força de trabalho, seu liquidificador e sua geladeira, produz geladinho ou picolé para vender na vizinhança. E que, eventualmente, caso bem-sucedida como empreendedora a ponto de poder empregar ajudantes, venha a se transformar numa empresária.

3.

O terceiro vetor que induz os integrantes da economia informal a se inserirem no mercado tem como caso paradigmático o catador. Aqui o insumo material (trabalho morto) é algo que devido a sua condição ainda miserável não pôde ser por ele previamente adquirido. O que recolhem e processam é a única coisa que no ambiente urbano costuma não ser objeto de propriedade privada, o lixo.

Essa atividade, que costuma ser aquela que ocupa as pessoas mais subalternizadas da Economia solidária realmente existente, é aquela que, paradoxalmente, se encontra mais estreitamente ligada ao processo de acumulação de capital. Seu resultado costuma ser um insumo industrial.

É importante ressaltar que, qualquer que seja o vetor de indução, usualmente a alternativa natural (ou sistemicamente determinada) de sobrevivência dos integrantes da Economia solidária realmente existente é sua inserção no mercado capitalista. É ele que consome seja como produto final, seja como insumo, o resultado da produção de mercadorias a partir de não mercadorias.

É trazendo para esse contexto, que sistemicamente condiciona a Economia solidária realmente existente a submeter-se ao mercado capitalista (ou ao circuito de acumulação de capital), o fenômeno do empreendedorismo, que me parece conveniente revisitar o tema recorrente das diferenças entre economia de mercado e capitalismo, entre os circuitos inferior e superior etc.

Minha interpretação é que é necessário entender o empreendedorismo como uma categoria de intermediação funcional entre essas duas “camadas”. Ou seja, que é através dele que elas passam a estar mais do que antes funcionalmente conectadas numa relação de subordinação que possibilita que a extração de excedente econômico pelo circuito de acumulação de capital ocorra sem a necessidade de incorporação da força de trabalho existente na “economia de mercado”.

É tendo por base essa interpretação que tenho defendido uma radical reorientação da compra pública na direção das redes solidárias que irei retomar no quinto escrito desta série.

Adianto, tendo como referência o acima exposto, que a reorientação da compra pública deve ser entendida como a melhor maneira de evitar a subordinação da Economia solidária ao circuito de acumulação de capital e, em consequência, de consolidá-la mantendo seus princípios. Através dela, seria possível, a partir do uso da não mercadoria força de trabalho a produção de não mercadorias.

Ou seja, de bens e serviços (valores de uso) de natureza coletiva não orientados para o mercado e sim para serem adquiridas pelo Estado para fornecê-los à população em troca do imposto que paga. O que apoia a ideia de que a ES, como uma utopia em construção, não pode prescindir da explicitação de sua vocação, ou atribuição precípua, de produção de “não mercadorias”.

4.

Retomo a hipótese do “erro de projeto” da política de Economia solidária afirmando que ela decorre da observação de que a Economia solidária parece estar sendo orientada segundo o mesmo modelo que busca aumentar a eficiência das redes privadas e a competição entre elas; algo que é visto pelo pensamento econômico de direita como o modo adequado, por excelência, para dinamizar o circuito econômico.

Ações estatais, como as de capacitação, concessão de crédito e outros benefícios, concebidas para aumentar a aptidão das redes privadas para competir no mercado, são orientadas para as redes solidárias. Suas características atuais, e a natureza contra-hegemônica e utópica da Economia solidária, decorrente dos princípios e valores do futuro para além do capital que ela pretende construir, não são levadas na devida conta.

A formulação dessa hipótese não desconhece ou subestima aspectos que poderiam ser considerados como “de quantidade”. Ou seja, os referentes ao volume ínfimo de recurso estatal alocado à política de Economia solidária quando, dada a importância derivada de sua superioridade fartamente evidenciada para alavancar o projeto da esquerda, ele é comparado com o orientado às redes privadas.

O que essa hipótese destaca são aspectos “de qualidade”. Mantendo a referência aos aspectos “de quantidade”, e radicalizando para que a questão seja bem entendida, o que ela aponta é que, no limite, mesmo que estes pudessem ser equacionados, o modo como a política de Economia solidária está sendo orientada (baseada no empreendedorismo, focada na competição no mercado etc.) não seria capaz de alavancar as redes solidárias.

Mais além dessa questão, relativa ao curto e médio prazo e da qual se trata em seguida, há outra ainda mais grave. Situada no plano político-ideológico, que é o que justifica a própria existência do pensamento da esquerda, está a afirmação ainda mais forte que dela decorre de que o “erro de projeto” tenderia a inviabilizar o fortalecimento do ator portador de futuro da sociedade para além do capital que se pretende construir.

5.

Ao postular que as redes solidárias devem competir no mercado pelo poder de compra das empresas e das famílias, entre si, com os que sobrevivem na informalidade (e são hoje hipocritamente subsumidos na categoria de empreendedores), o “erro de projeto” associado ao empreendedorismo, inviabiliza a construção desse futuro.

Um efeito perverso merece ser assinalado. Como resultado de sua entrada num espaço contra-hegemônico, da esquerda, o da Economia solidária, o empreendedorismo, já presente como “modelo de negócio” das políticas das “outras economias”, se fortalece e reafirma sua pretensa validade genérica. E, ao mesmo tempo, difunde na sociedade e, pior, no âmbito das pessoas de esquerda que estão no governo, a ideia de que, apesar de ser carregado e “carregador” de valores muito distintos daqueles da Economia solidária, ele deve ser adotado como normativa para alavancar a Economia solidária.

Ou, pelo menos, para, como advoga uma parte do movimento feminista envolvido com a Economia solidária, promover o empoderamento, advindo da renda oriunda do seu trabalho pautado pela proposta do empreendedorismo, das mulheres submetidas ao patriarcalismo milenar e ao capitalismo centenário que as oprime.

Não é a primeira vez que a adoção, no momento tático, de práticas pouco aderentes ao cenário estratégico desejado tende a “contaminar” a trajetória futura com valores e interesses contrários àqueles que animam a construção do cenário estratégico desejado.

O que sugere, por um lado, uma avaliação crítica do jogo de interesses que levou ao emprego de propostas e receitas de política pública que, embora provenientes do âmbito privado, se propõem como universais e, portanto, extensivas a territórios como os da Economia solidária, animados com propósitos distintos daqueles do mundo dos negócios.

E, por outro, examinar por que propostas alternativas ao empreendedorismo que nascem “contaminadas” com valores distintos, e ganham crescente adesão na cena internacional e se afirmam como um caminho de enfrentamento radical (no sentido de ir até as raízes do problema) da policrise global, permanecem até mesmo por ação da nossa esquerda, mais do que desfinanciadas, invisibilizadas, no espaço da política pública.

Por propor a solidariedade (e não a competição), a autogestão (e não a heterogestão centralizada e autoritária) e a propriedade coletiva dos meios de produção (e não a privada ou estatal), essa ideia-força parece muito mais proveitosa para a esquerda do que o empreendedorismo para orientar a construção do cenário estratégico que ela deseja construir.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular) [https://amzn.to/4gmxKTr]

Para ler o primeiro artigo da série clique em https://aterraeredonda.com.br/o-empreendedorismo-e-a-economia-solidaria/


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