A associação dos escritores dos BRICS

Imagem: Kim van Vuuren
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SERGIO COHN*

Os BRICS foram projetados com um tripé formado por economia, soberania nacional e cultura, este terceiro ponto tem tido pouca atenção dentro das políticas criadas em torno do bloco

1.

Algumas coisas parecem se mover por baixo das camadas tectônicas do nosso mundo. Deslocamentos geopolíticos e culturais estão surgindo, mesmo que de forma despercebida para olhares menos atentos. Gestos amplos começam a ressurgir, depois de cerca de duas décadas de uma certa timidez social. Desde o começo deste século, grandes movimentações, como o Fórum Social Mundial, não tiveram continuidade ou foram substituídas por outras propostas.

É como se o advento digital tivesse dado a impressão geral que os encontros se realizariam naturalmente, sem necessidade de esforço ou organização. Mas agora sabemos que não: o digital tem via dupla, amplia as possibilidades de contato, mas, especialmente depois do domínio dos algoritmos das redes sociais, tende a estreitar de forma radical as trocas e as experiências. Ao mesmo tempo em que governos autoritários se multiplicam, o risco fascista se faz evidente, o colapso climático se aproxima, os investimentos em educação e cultura rareiam ou são praticamente extintos, começam a ressurgir propostas de associações internacionais para responder a essas demandas urgentes.

Entre elas, uma das mais interessantes, exatamente por estar localizada num dos novos polos geopolíticos do mundo, é a Associação dos Escritores dos BRICS. É uma proposta salutar, especialmente por conta de que, embora os BRICS tenham sido projetados com um tripé formado por economia, soberania nacional e cultura, este terceiro ponto tem tido pouca atenção dentro das políticas criadas em torno do bloco. Criada por iniciativa do poeta russo Vadim Terekhin, a Associação já conta com representantes dos diversos países do bloco e realizará dezenas de eventos em 2025, entre encontros, festivais e publicações.

Entre elas, está a BRICS Poetry Review, uma revista quadrimestral de poesia, que será editada por Sergio Cohn e Marcelo Reis de Mello, representantes do Brasil na BRICSWA. O fato de ser o Brasil o país escolhido para editar a revista é de grande importância, porque nos coloca em posição central no estabelecimento das trocas culturais em torno dos BRICS. A revista terá edição em inglês, com ampla circulação entre os países, e também em línguas locais – a edição em português já está garantida, assim como a espanhola.

Cada volume trará entrevistas com poetas e críticos, dossiês com ensaios e antologias de poesia contemporânea dos países do bloco, além de poemas esparsos, sempre em edição bilíngue. É uma iniciativa de grande importância para estreitar o diálogo e criar uma relação continuada com as poesias desses países, deslocando-se do eurocentrismo que marca a circulação poética atual e ampliando horizontes.

2.

Para apresentar o projeto da Associação dos Escritores dos BRICS, fizemos uma entrevista com o seu diretor, Vadim Terekhin, que segue abaixo.

Até o momento, a cultura tem recebido a menor atenção entre os três principais pilares do BRICS. A criação da Associação de Escritores do BRICS é uma iniciativa importante para reverter esse quadro e estabelecer um intercâmbio cultural consistente e contínuo entre os países do bloco. Como surgiu essa proposta e quais países já são membros da associação?

Vadim Terekhin – De fato, o BRICS é visto principalmente como uma união política e econômica de Estados, mas quaisquer conquistas econômicas e de negócios não têm sentido se não forem voltadas para o benefício dos seres humanos, para seu desenvolvimento cultural, moral e espiritual.  Portanto, é impossível distinguir essas esferas da atividade humana, pois elas estão intimamente interconectadas e servem de apoio umas às outras.

Em última análise, todas as conquistas econômicas não devem servir para o enriquecimento pessoal, mas para o desenvolvimento criativo da humanidade. Somente a cultura e a literatura, em sua manifestação mais elevada, como portadora da palavra, constituem efetivamente a humanidade. Elas lhe dão um significado especial.

A criação da Associação de Escritores do BRICS tem o objetivo de aproximar nossos povos, reconhecer as peculiaridades de cada um, os valores que estão próximos de todos desde o nascimento e levá-los a todos os confins de nosso pequeno planeta.

Apesar do enorme espaço cultural e de informações que nos devora todos os dias, apesar do fato de que, com um clique no teclado, podemos nos encontrar virtualmente em qualquer lugar do mundo, ainda sabemos muito pouco sobre nossos vizinhos. 

Somente a literatura, a cooperação estreita e os contatos podem preencher essa lacuna. Temos uma oportunidade única de expandir nosso mundo espiritual por meio da interpenetração das literaturas. Devemos nos engajar em atividades de tradução, publicação e festivais. Acho que esses são os três pilares da Associação de Escritores do BRICS!

Atualmente, seus coordenadores são Adel Khozam (EAU), Ahmad Al-Shahawi (Egito), Biplab Majhi (Índia), Rati Saxena (Índia), Cao Shui (RPC), Zolani Mkiva (África do Sul), Sergio Cohn (Brasil), Marcelo Reis (Brasil), Hamid Nazarhah Alisarai (Adonis Dodestani, Irã), Abdulwhab Aloraid (Arábia Saudita), Vadim Terekhin (Rússia), Alemayehu (Etiópia), Vladimir Gavrilovich (Belarus), Abdullah Issa (Palestina), Sastri Barki (Indonésia), Alex Pausidis (Cuba), Karel Alexei Leyva Ferrer (Cuba), Anwar Radwan (Malásia), Hosiyat Rustamova (Uzbequistão), Nguyen Quang Thieu (Vietnã).

A Associação já está atraindo grande interesse de escritores de outros países que ainda não são membros do BRICS.

Na Rússia, cooperamos com o Conselho de Especialistas de Alto Nível do BRICS (https://brics-expert.info/culture/), o Fórum Econômico e Financeiro Internacional do BRICS (https://ifeforumbrics.ru/kazan_2024) e a plataforma de oportunidades “Let’s Do Good” (https://ifeforumbrics.ru/#rec771071582).

Temos cartas de apoio à iniciativa da Associação da União de Escritores Etíopes, da União de Escritores Sírios, da União de Escritores Palestinos, da União de Escritores Libaneses, do Movimento Mundial de Poesia (Colômbia), da Sociedade Internacional de Estudos Socioculturais (Índia), do Congresso de Jornalistas Africanos (Egito), do Centro de Referência da Poesia Brasileira (Brasil), do Instituto de Belas Artes Gil Kochesfahan (Irã), da Coordenação Nacional do Movimento Mundial de Poesia (Emirados Árabes Unidos), do Festival Internacional de Alfabetização Minangka e do Festival Internacional de Alfabetização do Povo Minangka.

A Associação de Escritores do BRICS (doravante denominada BRICSWA) representa a literatura como uma forma essencial de autoexpressão. 

A literatura é a forma mais importante de expressão e comunicação da humanidade. A literatura é uma forma de arte e um instrumento de transformação social e cultural.

A BRICSWA incentiva a cooperação entre escritores de todo o mundo que compartilham suas visões e experiências culturais por meio da literatura. Ela prevê uma estreita cooperação com o WPM (World Poetry Movement), que já provou sua eficácia por meio de um trabalho real.

A BRICSWA defende a liberdade de expressão e os direitos humanos, que são fundamentais para a proteção dos escritores e de seu trabalho. Em um mundo cada vez mais dividido, a literatura e as vozes dos escritores criam um vínculo global e promovem a paz, a unidade e a compreensão.

A BRICSWA se esforça para se tornar uma organização planetária com sedes e pontos focais em todos os países, compartilhando a visão da organização, fortalecendo a unidade espiritual de pessoas e nações no trabalho em prol da paz global e da plena liberdade de expressão.

3.

Em 2025, a BRICSWA terá um programa de eventos físicos dentro dos festivais e encontros literários existentes, além de novos eventos criados pela própria associação. Qual a importância da circulação de autores entre esses países e como pode ser desenvolvida uma política pública para isso – comum ao bloco ou a cada governo?

Vadim Terekhin – Sim, nós elaboramos o principal plano de trabalho do BRICSWA para 2025. São 47 atividades no total. É claro que o plano de trabalho não é um dogma, mas um guia de ação e a vida pode fazer seus próprios ajustes, mas era muito importante que ele aparecesse.  É interessante que a Associação de Escritores do BRICS tenha sido criada não por pressão de cima, não pela vontade estatal de nenhum país, mas pelo desejo dos escritores de se comunicarem uns com os outros, ou seja, pessoas criativas!

É claro que gostaríamos de contar com o apoio de nossos países, por entenderem a importância do trabalho que os escritores fazem.

Por alguma razão, tanto os escritores quanto o público leitor na Rússia sempre foram orientados para o Ocidente e os EUA, ignorando quase completamente as grandes literaturas e culturas da Ásia, África e América Latina. Os caminhos literários dos escritores russos nesses países se tornaram excessivamente fechados e, hoje, é simplesmente necessário abri-los novamente.

A literatura de qualquer país pode ser autossuficiente, mas ainda assim devemos perceber que fazemos parte de um enorme processo mundial e que, ao nos fecharmos apenas em nosso próprio mundo linguístico, perdemos muito. Precisamos influenciar uns aos outros e tomar emprestado o que há de melhor.

4.

Além dos eventos físicos, serão publicados livros em 2025 – por exemplo, uma antologia de poesia do BRICS a ser publicada pela Rússia e uma BRICS Poetry Review a ser editada pelo Brasil. Qual é a importância de desenvolver uma política comum de diálogo editorial para superar a atual falta de intercâmbio bibliográfico de poesia contemporânea entre esses países?

Vadim Terekhin – Por meio de programas de publicação, teremos que nos conhecer novamente.

A literatura do século XXI está se afastando do formato de papel usual para o espaço virtual e está se perdendo nos vastos campos da Internet.  Hoje, todos têm a oportunidade de se expressar, em maior ou menor grau. Outra coisa é que somente parentes e pessoas próximas o ouvirão, o que já é muito. Quase não há mais não escritores entre meus colegas.

Todos escrevem postagens, resenhas, opiniões críticas, que também são trabalhos criativos. Para mim, “tendências interessantes” na literatura significa ler um livro que influencia seu destino. Em minha juventude, havia livros assim. Hoje estamos em um momento decisivo da história, em que novas formas de comunicação estão sendo desenvolvidas. Nesse processo, não podemos deixar que o número vença a palavra!

Tenho medo de citar nomes de escritores proeminentes, jovens e contemporâneos, porque só o tempo tem esse direito. Tenho uma antologia de escritores do final do século XIX, no entanto, a maioria de seus nomes não diz quase nada para o leitor moderno.

A literatura russa é bela porque ainda mantém a tradição em sua essência. Por mais que ela possa ser quebrada! A simpatia e a misericórdia pelos humilhados e insultados, a busca da verdade e da veracidade, o desejo de “viver de acordo com a consciência”, a busca do amor divino – esses são os pilares sobre os quais ela se manterá para sempre.

5.

Um dos problemas das propostas culturais relacionadas à poesia é a tradução – justamente por ser um gênero literário de difícil adaptação entre idiomas. Como a BRICSWA pensa sobre isso? Serão criados grupos de trabalho para garantir que esse conteúdo circule entre diferentes idiomas?

Vadim Terekhin – Na Rússia, muitos grandes poetas, como Boris Pasternak, Nikolai Zabolotsky, Samuil Marshak e muitos outros, se dedicavam à tradução. A escola de tradução era muito desenvolvida. Do meu ponto de vista, o próprio tradutor deve ter um grande dom poético, conhecer a literatura, as tradições e os costumes do país de origem do poeta traduzido, para que a tradução seja bem-sucedida. Mas o mais importante é que o próprio tradutor seja um bom poeta!

Acho que precisamos criar grupos de trabalho não apenas para traduções, mas também para todos os gêneros literários – poesia, prosa, teatro, crítica, literatura visual, etc.

6.

A cultura é uma forma de unir as pessoas e fortalecer a paz, e o BRICS está se tornando um importante centro geopolítico no mundo. Qual é a importância de uma proposta como a da BWA no contexto atual?

Vadim Terekhin – A palavra tem um poder enorme, é uma faca de dois gumes! Ela pode ferir profundamente uma pessoa e até mesmo destruí-la, mas também pode elevá-la a patamares espirituais sem precedentes. A palavra é a garantia de paz na terra, ela acaba com as guerras e conclui acordos de lealdade e amor.  A palavra abre as portas desta vida para os homens e deve servir em nome do homem e para o bem do homem.

Quando um poeta se senta à mesa de escrever, deve sempre haver nele o desejo de escrever um livro que transformará o mundo.  Um poeta talentoso tem a responsabilidade de saber como usar o talento que lhe foi dado. Um escritor (poeta), talvez, após a morte, não vai para o inferno ou paraíso, como todo mundo, mas para o mundo que ele criou em sua imaginação durante sua vida.

Uma obra talentosa é sempre festiva, brilhante e, mesmo com um final trágico, ela purifica, dá força para superar as dificuldades e os sofrimentos encontrados no caminho de todos, ajuda a carregar a própria cruz. Oferece uma oportunidade de olhar para si mesmo de fora, avaliar suas ações, corrigir erros e é um ponto de partida para sua criatividade. Proporciona empatia, simpatia e ensina a aceitar outras experiências espirituais. Um bom livro me deixa empolgado e com vontade de escrever algo semelhante, e talvez até melhor.

A verdadeira poesia exige esforço, porque a verdadeira alegria é proporcionada somente pelo esforço sobre si mesmo. O mundo precisa não apenas de escritores talentosos, mas também de leitores talentosos.

Poetas e leitores de todos os países uni-vos!

*Sergio Cohn é poeta e editor da Azougue. Atualmente, é curador da revista Poesia Sempre da Fundação Biblioteca Nacional.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Franz Kafka e Clarice Lispector

Franz Kafka e Clarice Lispector

Por RICARDO IANNACE: As experiências jamais se manifestam cindidas – são perdas, desilusões, expectativas e ...
A desqualificação da filosofia brasileira

A desqualificação da filosofia brasileira

Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: Em nenhum momento a ideia dos criadores do Departamento ...
O quarto ao lado

O quarto ao lado

Por JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO: Considerações sobre o filme dirigido por Pedro Almodóvar ...
O tempo e a eternidade do ser humano

O tempo e a eternidade do ser humano

Por LEONARDO BOFF: O sentido da vida no tempo é viver, simplesmente viver, mesmo na ...
Freud – vida e obra

Freud – vida e obra

Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Considerações sobre o livro de Carlos Estevam: Freud, Vida e ...
15 anos de ajuste fiscal

15 anos de ajuste fiscal

Por GILBERTO MARINGONI: Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na correlação de forças da ...
O risco de descarrilhamento de Lula 3

O risco de descarrilhamento de Lula 3

Por CICERO ARAUJO: O atual governo Lula parece estar embaraçado numa espécie de versão modificada ...
Nas ideologias da cultura a arte nunca está no centro

Nas ideologias da cultura a arte nunca está no centro

Por RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI: Os gêneros da indústria da cultura não são arte popular e ...
Narcisistas por todo lado?

Narcisistas por todo lado?

Por ANSELM JAPPE: O narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para ...
Clóvis Moura – centenário de um intelectual negro

Clóvis Moura – centenário de um intelectual negro

Por PETRÔNIO DOMINGUES: A obra de Clóvis Moura é um registro original da agência negra ...
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!