Por CARLOS RANULFO MELO*
As mudanças na relação entre Executivo e Legislativo são de difícil reversão
A conquista de bancadas expressivas no Congresso, e em especial na Câmara dos Deputados, sempre foi fundamental no Brasil. As razões para tanto são claras. De um lado, o acesso a recursos vitais para os partidos depende do tamanho das bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados. De outro, nosso presidencialismo é, sempre foi e continuará sendo, um regime que demanda a montagem de coalizões para funcionar a contento.
A novidade dos últimos anos, e de 2022 em particular, é que a importância da batalha pelo Legislativo Federal aumentou e muito. E isso vale para os dois aspectos acima ressaltados.
Do ponto de vista dos recursos, além do fundo partidário e do horário de propaganda gratuita – repartidos de forma proporcional ao tamanho das bancadas eleitas para a Câmara – a força dos partidos no Congresso passou a definir, desde 2017, a divisão do fundo eleitoral, cujo montante disponibilizado saltou de R$ 1,7 para R$ 4,9 bilhões de 2018 a 2022. A distribuição dos recursos inovou ao considerar o Senado: 15% do total é distribuído proporcionalmente às bancadas eleitas em 2018, agregados aos senadores em cumprimento do segundo quadriênio.
Mas o papel da Câmara continuou decisivo: 35% dos recursos são distribuídos proporcionalmente aos votos obtidos na eleição de 2018 entre partidos que tenham conquistado pelo menos uma cadeira; outros 48% dependem do tamanho das bancadas eleitas. 2% são distribuídos igualmente entre todas as legendas registradas no TSE.
A segunda razão pela qual a batalha pelo Legislativo assume hoje maior relevância do que antes está em mudanças nos dois pilares que contribuíram para o funcionamento do presidencialismo de coalizão no país desde a redemocratização: o controle da agenda decisória pelo poder Executivo e da dinâmica legislativa pelos líderes partidários.
A dinâmica legislativa foi fortemente afetada pelo aumento na fragmentação partidária. Tal processo exigiu coalizões de governo mais amplas. Especialmente na Câmara, as grandes bancadas gradativamente perderam peso e a cena legislativa passou a depender das pequenas e médias. A dispersão do poder “inchou” o Colégio de Líderes, diminuindo sua capacidade de coordenação e negociação. Os líderes, com menos poder e menor capacidade de atender as demandas, perderam força relativamente aos membros de suas bancadas. O grau de disciplina nas votações diminuiu.
Nas coalizões de governo aumentou o “poder de chantagem” de cada membro. Cresceu o peso dos blocos partidários, em detrimento dos partidos, elevando o grau de incerteza na definição da Mesa Diretora, como evidencia a ascensão de Eduardo Cunha e Artur Lira. Em ambos os casos, a conquista da Presidência da Câmara baseou-se em acordos feitos “cabeça a cabeça”, à revelia dos líderes. E a posterior condução dos trabalhos revelou uma centralização e um protagonismo inéditos na condução da agenda legislativa.
Paralelamente ao aumento da fragmentação partidária, o Congresso foi assumindo maior protagonismo na produção legislativa. Desde 2007 a maior parte da legislação aprovada no Congresso passou a ter origem na iniciativa dos parlamentares, e não do Executivo, invertendo o quadro prevalecente desde a promulgação da Constituição.
Trata-se de um processo de mudança institucional incremental, calcado em pequenas modificações nas regras e/ou mudanças na interpretação das regras existentes. As duas modificações mais expressivas se deram na tramitação das Medidas Provisórias (MPs) e no processo orçamentário. No primeiro caso, Michel Temer, quando presidente da Câmara em 2009, passou a considerar que o trancamento da pauta, medida que facilitava o controle da agenda pelo Executivo, deveria valer apenas para matérias relacionadas à temática da MP.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que as Medidas Provisórias (MP) deveriam obrigatoriamente passar por uma Comissão Mista – algo previsto, mas nunca efetivado no Congresso. Finalmente, em 2015, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade permitiu ao Presidente da Câmara decidir, de ofício, o que é ou não matéria estranha à MP. A sequência de modificações aumentou o poder de barganha do legislativo vis a vis o Executivo.
As modificações no Orçamento viriam a ter impacto ainda maior. Desde 2015, a execução das emendas individuais dos congressistas deixou de depender do arbítrio do Executivo para tornar-se obrigatória. O mesmo aconteceu com as emendas de bancada. Em 2019, o Congresso transformou as “emendas do relator”, que até então se destinavam a corrigir erros ou omissões de ordem técnica ou legal, em um mecanismo que confere ao relator da Lei Orçamentária o direito de encaminhar emendas que precisam ser priorizadas pelo Executivo. Tal inovação, ao invés de referir-se às emendas já aprovadas, abriu espaço para que o Congresso abocanhasse uma maior fatia do orçamento; uma fatia cujo valor total a ser empenhado equivale à soma das emendas individuais e de bancadas.
De um ponto de vista mais substantivo, a sequência de mudanças no processo orçamentário turbinou o particularismo na distribuição dos recursos da União – ao invés de uma distribuição feita com base em critérios nacionalmente definidos, prevalece uma lógica onde cada congressista destina recursos para sua base eleitoral prioritária. Do ponto de vista da relação entre os poderes, as mudanças no orçamento, assim como no caso das MPs, tornaram menos potente a “a caixa de ferramentas” do Executivo para lidar com o Legislativo.
Levando em conta todas as mudanças, o que se tem hoje é um Legislativo dotado de maior protagonismo, capaz de formular e implementar sua própria agenda e menos dependente do Executivo. O quadro desenha-se com mais nitidez na Câmara com a formação de uma coalizão legislativa majoritária de centro-direita. Por ocasião do segundo mandato de Dilma Rousseff tal coalizão operou contra o governo. Sob Jair Bolsonaro, garante a sua sobrevivência, mas opera sob prioridades internamente definidas e é capaz de impor limites ao Executivo – não é à toa que o atual presidente é o recordista em vetos derrubados na Nova República.
Nos dois momentos, a coordenação de tal coalizão coube a um presidente da Câmara regimentalmente cada vez mais poderoso. Ao direito de iniciar os processos de impeachment, a gestão de Artur Lira acrescentou à “caixa de ferramentas” da presidência um controle ainda maior sobre a agenda – consubstanciado na redução da capacidade de obstrução da minoria, e na expansão das iniciativas votadas em urgência e das votações remotas – e a prerrogativa de indicar o relator da Comissão Mista do Orçamento, nos anos em que tal decisão cabe à Câmara.
A governança tornou-se mais complexa. As mudanças na relação entre Executivo e Legislativo são de difícil reversão. Poder não se devolve facilmente. Em tese, um Legislativo dotado de maior protagonismo e autonomia é bom para a democracia. Mas combinado com uma hiper centralização nas presidências das casas e com a exacerbação de uma dinâmica particularista pode tornar-se um elemento de instabilidade. Supondo, como indicam as pesquisas, que Bolsonaro seja derrotado, a batalha pelo Legislativo torna-se crucial, começando pelas eleições de outubro próximo e continuando na definição das presidências de Câmara e do Senado.
*Carlos Ranulfo Melo é pprofessor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG.
Publicado originalmente no site do Observatório da Eleições do Instituto da Democracia.
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