Por RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES*
Considerações sobre o estudo clássico de Paulo Mercadante
“A impressão de que a sociedade, o povo, os grupos sociais, as pessoas pouco ou nada representavam era negada pelas medidas de controle e repressão que o governo punha em ação. Diante das forças sociais não representadas no bloco de poder, em face da rebeldia latente ou aberta contra os interesses dos senhores de escravos, nos engenhos de açúcar e fazendas de café, o poder monárquico agia de forma cada vez mais repressiva. A força, a sistemática e a preeminência dos interesses dos grupos e camadas dominantes representados no aparelho estatal eram de tal porte que alguns intelectuais e políticos imaginavam que a sociedade fosse amorfa e o Estado organizado; como se este pudesse existir por si. Não percebiam o protesto do escravo, a insatisfação do branco pobre no meio rural, as reivindicações de artesãos, empregados e funcionários na cidade. Sem saber – talvez – escreviam a crônica dos vencedores” (Octavio Ianni, O ciclo da revolução burguesa, p. 13.).
Paulo de Freitas Mercadante, nascido em 1923, é o autor de um dos clássicos do conservadorismo brasileiro, o livro de 1965, A consciência conservadora no Brasil.[1] Sua obra jamais teve a repercussão como a de outros conservadores históricos, como Oliveira Viana, no entanto cumpriu o importante papel de sistematizar a concepção da história da intelectualidade orgânica que tinha no Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) o seu aparelho de hegemonia filosófico.[2]
Os intelectuais ibeefeanos em sua grande maioria bacharéis e advogados, buscaram o estabelecimento de uma tradição intelectual no Brasil: o chamado “culturalismo”, que, apesar desses jurifilósofos o saudarem como legítimo “pensamento nacional”, é fundamentalmente a cifragem do culturalismo alemão. Mercadante tem uma trajetória bastante interessante, que começou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o qual acabou rompendo em 1956 em conjunto com outros intelectuais (Antonio Paim, Osvaldo Peralva, Porto Ferraz, Inácio Rangel) que, em seu ponto de vista, formavam o grupo “mais ativo no campo das idéias”[3] do PCB. Do rompimento se inicia a aproximação com o conservador histórico, teórico do integralismo, fundador e líder do IBF, Miguel Reale.
Em A consciência conservadora no Brasil, Mercadante analisa a história do Brasil sob a perspectiva da “conciliação” de classes, que se tornou um conceito de grande valia para os intelectuais ibeefeanos, a medida que nega a luta de classes. Essa interpretação pode ser construída porque há um escamoteamento deliberado das lutas sociais que permearam a história do Brasil no século XIX. A obra de Mercadante, com quatro edições[4] e quase de 50 anos de história, tem boa nomeada entre diversos intelectuais orgânicos da burguesia. Para Olavo de Carvalho[5], a obra é “um clássico da ‘história das mentalidades’”[6]. Roberto Campos afirmou: “Paulo Mercadante, cujas lições de história e sociologia brasileira me abriram novos caminhos”[7]. João Alfredo de Souza Montenegro elogia pelo seu “arrojo renovador de abordagem da mentalidade insistentemente subjacente na evolução sócio-cultural brasileira, a ponto de, em momentos de crise, de impasse da Nação, se levantar em protagonismos exacerbados, forçando recuos, aparando arestas progressistas, e plantando o gradualismo com pretensões de absorver os conflitos sociais, visualizados como impertinências demoníacas pela ótica da ética dominante”[8]. Para Luís Washington Vita, se trata de uma obra “modelar”[9]. Antonio Olinto disse em 1965: “Saiu afinal o livro de Paulo Mercadante, A consciência conservadora no Brasil, que representa um aferimento denso e tranquilo da situação brasileira de ontem e, até certo ponto, de hoje”[10].
Nelson Mello e Souza, prefaciador da quarta edição de A consciência conservadora no Brasil, diz que a “conciliação” de Mercadante é a descoberta da “imantação histórica”, do sentido da história do Brasil; que se caracterizaria pelo fato de que as classes subalternizadas teriam aceitado por vontade própria sua condição social. O conservadorismo brasileiro seria “avesso a revoluções, desconfiado do Estado forte, propenso a garantir as liberdades individuais contra o autoritarismo, inclinado a aceitar a lógica gradualista da história e o lento evoluir da base de valores; o conservadorismo ‘no’ Brasil assumiu perfil conciliatório”[11]. Souza diz que Mercadante teria desvendado a “dialética da conciliação” na história do Brasil.
Paulo Mercadante é autor de uma obra cuja marca principal não é o rigor científico. Se trata de uma elaborada construção ideológica que até busca o argumento histórico, mas que se confrontada com a realidade se mostra sem respaldo histórico. No entanto, não é uma obra de pura falsificação como, por exemplo, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Mas a suposta “conciliação” de classes não explica uma sociedade cuja história é marcada pela exploração e pela violência cujos níveis são hoje os de uma guerra. A consciência conservadora no Brasil é uma das maiores expressões intelectuais da reação que culminou com o golpe de 1964 e com os anos de chumbo da Ditadura; é também o acerto de contas do autor com o seu passado de militância no PCB, é a negação da luta de classes, é a aceitação do prisma imposto pela classe dominante.
A história do Brasil na perspectiva de Paulo Mercadante
Paulo Mercadante busca o fundamento histórico na obra do “ultra-reacionário Oliveira Viana”, como disse José Honório Rodrigues. Segundo essa interpretação, a classe dominante brasileira, que se formou durante a empresa colonial, seria composta de “homens de cabedais opulentos, esses chefes são também homens em que se enfeixam as melhores qualidades de caráter. De integridade moral perfeita, […] pela dignidade, pela lealdade, pela probidade […]. Descendo das flores da nobreza peninsular para aqui transplantada, medalham-se todos pelo tipo medieval do cavalheiro, cheio de hombridade e pundonor”[12]. Esse é o argumento de Oliveira Viana para uma suposta superioridade racial da classe dominante que, na obra de Mercadante, aparece como características da índole dos colonizadores, caracterizadas como pessoas benévolas – em tudo diferentes das etnias e classes dominado. Esses homens são vistos aqui como os membros de uma elite e não de uma classe dominante.
Interessante notar que em relação às interpretações dos intelectuais do PCB, Nelson Werneck Sodré, segundo o qual havia feudalismo no Brasil, e Caio Prado Júnior, que via a colonização sob a égide do capitalismo mercantil, Mercadante propõe uma interpretação oposta. Para ele houve uma “conciliação” marcada pelo compromisso entre nobiliarquia e mercantilagem que teria formado a classe dominante por indivíduos que eram nobres, mas empresários também – e até mesmo industriais! – fazendo do proprietário um “personagem original”[13]. Para o autor, esses fatores teriam implicações culturais abrangentes, que se projetariam na história do Brasil, seriam mesmo o pano de fundo da contemporaneidade do país. Mercadante faz tábula rasa da questão da escravidão e qualquer outra relação social marcada pela luta. Esse é um erro histórico, mas esse erro tem sua origem na prática social de uma classe que, no momento que a obra fora escrita, negava ter instaurado no país um regime autocrático e que ainda nega ser a senhora de toda a exploração, opressão e a repressão.
Para Mercadante, essa distinta classe de “nobres empresários” tinha um modus operandi equivalente ao seu modus vivendi, ou seja, o “nobre empresário” era também um homo politicus, cujas ações seriam marcadas pela moderação e pela conciliação das facções políticas que marcaram a história do Império. Segundo Mercadante, desde a Independência, a “tendência de centro, moderada e oportunista”[14] fora a marca da política da classe dominante. Essa é a parte mais rica e densa da obra de Mercadante; segundo ele essa política era a reafirmação do “grande fazendeiro, espécie de gentry de caráter territorial”, que, por sua vez:
É dúplice econômica e mentalmente: vive numa fazenda de escravos de látego em punho enquanto se empolga pelas ideias liberais correntes nos países europeus já libertos do feudalismo; revolucionário, quando analisa as suas relações de produção com o mercado externo, e conservador, quando reage a quaisquer idéias de abolição. Seu caminho é necessariamente o compromisso entre a escravatura e o liberalismo econômico.[15]
Para Mercadante não há contradição entre o liberalismo, que estava na boca dos tribunos do Império, e a escravidão, base da sociedade naquele momento. Pelo contrário, nesta perspectiva os senhores são o produto dessa amálgama. Evidentemente é um grande exagero dizer que os conservadores eram também revolucionários; mas esse exagero é de ordem prática, pois o autor faz o mesmo uso da palavra que os golpistas de 1964 faziam quando se apropriaram da palavra “revolução”. Na apologética de Mercadante a política do “meio-termo” fora o “lastro de sábia prudência”[16], já que teria evitado a revolução de escravos, como ocorrera em 1804, no Haiti: “O temor à revolução teria sido um dos esteios do movimento pela independência. […] Todos acabariam acordando com a forma de arranjo político, pelo qual se operaria o movimento, e do mesmo modo conformados com a ausência de participação popular. O povo fora advertido […] de que sua atuação nos acontecimentos importantes sempre poderia proporcionar um doloroso saldo de tragédia”[17].
Mais uma patente exageração, pois no Brasil os escravos não tinham o acesso ao pensamento jacobino como o tiveram os escravos haitianos, tampouco tiveram aqui a organização necessária para uma revolução; o que moveu as classes proprietárias das províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais foi o evidente temor da recolonização. Mas, para o autor, uma revolução ─ que aliás nunca esteve a ponto de ocorrer ─ teria fracionado o Brasil, pois a unidade seria mérito exclusivo do escravismo e da moderação.
É latente na interpretação de Mercadante o momento histórico da contra-revolução preventiva levada à cabo pela autocracia burguesa a partir de 1964, por isso a recorrência de imprecisões de origem prática. Sua obra é marcada pelo “temor pânico”[18] da movimentação ativa das massas populares, tão característico das classes dominantes, assim em relação à Independência conclui: “Que tudo viesse com vagar, de forma suave, sem a temerária participação jacobina”[19].
Essa latência do presente vivido é tão característico em sua obra que, segundo o autor, a grande modificação da constituição aprovada após o golpe de D. Pedro I é o fato de que as forças armadas poderiam ser utilizadas internamente[20], ou conforme diz em outro trecho: “em terras onde não estão difundidos em todas as classes da sociedade aqueles hábitos de ordem e legalidade, é preciso começar introduzi-los e sujeitar esses ensaios a uma certa tutela”[21]. “Ordem” e “legalidade”, que os golpistas diziam buscar “restabelecer” quando da derrubada do governo nacional reformista de João Goulart, eram termos empregados para legitimar o golpe e confundir a opinião pública.
Se em um primeiro momento A consciência conservadora no Brasil parece estar pautada na interpretação das questões sociais, Mercadante logo parte para uma análise de cunho metafísico, já que uma de suas preocupações é o acerto de contas com o seu passado no PCB e o combate do marxismo.
Em geral, a classe senhorial […] adota uma atitude pragmática procedente de uma tendência de concórdia e equilíbrio. Uma acentuada inclinação moderadora a transir as ideias políticas, a doutrina e a vida política, o romantismo literário e o arremedo de filosofia colorindo os acontecimentos com os tons da acanhada ideologia da conciliação. […] surgia o ecletismo entre nós, primeiramente como tendência, esboçada de modo empírico, para fazer face às exigências de nossa sociedade, e depois, no curso do século, corporificando-se em idéias, numa integração ao espírito do tempo.[22]
O “espírito do tempo” é definido pelo autor da seguinte maneira: “o espírito contraditório de Hegel é o próprio espírito do tempo. Suas convicções oscilam entre as de um adepto do iluminismo e um profeta do absolutismo. É, porém, adepto do meio-termo”[23]. Vemos assim, que Mercadante propala a reforma conservadora do hegelianismo, o que é essencial para qualquer aparelho de hegemonia filosófico, já que assim se combate a dialética marxista.
A consciência conservadora no Brasil é caracterizada também pela apologia das classes dominantes, o que aliás é uma característica fundamental de qualquer obra conservadora. Nesse sentido, os grandes proprietários rurais aparecem não apenas como a principal classe social, mas também como a única digna de nota, é o que se pode perceber também no fragmento a seguir, original de outra obra de Mercadante: “Quase toda a população, aproximadamente noventa por cento, vivia nos domínios, e dessa massa apenas os senhores formavam um grupo social definido, embora restrito. Os demais moradores dos latifúndios ressentiam-se da falta de homogeneidade. Escravos, em sua maioria pessoas atrasadas e ignorantes, arrancadas com violência de seu meio e com mínimas condições de se organizarem socialmente. A instabilidade era também de outras camadas de moradores do campo. Os agregados das fazendas e engenhos, os sitiantes, pequenos proprietários com suas engenhocas primitivas, ligados todos a produtos secundários de economia agrícola – por sua dependência em relação aos senhores do domínio, e pela dispersão, não constituíam agrupamentos sociais estáveis. […] Na enorme área dos latifúndios agrícolas, só os grandes senhores rurais existem. Fora deles, tudo é rudimentar, informe e fragmentário”. [24]
Mercadante acaba por desqualificar os trabalhadores escravizados como pessoas “atrasadas e ignorantes”, de maneira a persuadir, a induzir o desvio do problema real: a exploração e a condição absurda de vida dos escravizados; assim como também escamotear o papel das classes sociais populares no processo histórico. Para o autor, cabia à classe dominante combater o excesso, e o “excesso eram as ameaças à instituição servil”[25]. Sob esse prisma, o escravismo aparece como fator de unidade nacional: “Não fosse, pois, a objetividade dos homens regressistas, a unidade do Brasil estaria definitivamente comprometida. A questão da escravatura fora decisiva […]”[26]. Esta é uma das teses mais caras do conservadorismo histórico brasileiro, o escravismo teria garantido a unidade territorial, mas isso é pouco plausível, pois muitas das revoltas do primeiro Reinado e do período regencial foram lideradas por senhores de escravos e em nenhuma das revoltas a escravidão foi abolida. Ademais, em nenhum panfleto da independência o argumento da escravidão foi usado para robustecer a unidade territorial[27].
São variados os trechos da obra de Mercadante ─ e porque não dizer a obra inteira? ─ marcados pela apologética persistente às classes dominantes, o que faz d’Consciência conservadora no Brasil uma “crônica dos vencedores”[28]. Nesse sentido, argumenta o autor: “Se havia a necessidade de melhoramentos, de pactos e concessões às novas circunstâncias, melhor seria que a dirigisse o espírito conservador” [29].
Paulo Mercadante afirma que com a conciliação moderadora inaugurou uma época única da História do Brasil, que ninguém definiria melhor do que Justiniano José da Rocha: “E que movimento social era esse que todos os políticos pressentiam, a que obedeciam, que lhes fazia abandonar as suas posições de vencedores, senão o resultado da convicção íntima do país de que estavam extintas todas as paixões, acabadas todas as lutas do passado? E essa extinção das paixões, esse esquecimento de ódios, e que então os sintomas evidentes de que a sociedade tem chegado a esse período feliz de calma e de reflexão que pode e deve ser aproveitado para a grande obra de transação?” [30]
É neste período então que a moderação teria se concretizado no partido da Liga, fundada por Joaquim Nabuco, dirigida pelos conservadores moderados, e de 1862 ao fim da monarquia, considera o autor: “pairaria o espírito da Liga por sobre as instituições”[31] impulsionando a conservação camuflada no juste milieu. O movimento da conciliação, a evolução da moderação, diz Mercadante, teria sua teoria histórica elaborada por J. J. Rocha, e, nesta concepção, se constituiria numa premissa de valor universal que não requer demonstração – num axioma: “Na luta da autoridade com a liberdade, sucediam-se […] períodos de ação, de reação e, por fim, transação. Neste último, o progresso do espírito realiza-se, e se firma a conquista da civilização”.
A aplicação da tese às nossas condições levaria o jornalista [J.J. Rocha] a dividir a História do Brasil em períodos diferentes: os primeiros, a ação, em sua luta e em seu triunfo, abrangendo o período que vai da Independência até 1836; os dois outros, correspondentes à fase da reação que alcança com o seu triunfo monárquico os primeiros anos da década de 50; e finalmente o último, chamado o da transição, que se inicia com Paraná na época em que escreve o seu panfleto.
Havia então chegado o momento em que a reação não mais podia progredir, em que a ação revolucionária esmorecera, cumprindo que a sabedoria dos governantes descobrissem os meios de trazer “a um justo equilíbrio os princípios e elementos que haviam lutado”. A fase da transação era para a que exigia mais prudência. “mais tino, mais devoção nos estadistas a quem é confiada a força governamental e a alta direção dos públicos negócios; pois se a não sabem ou querem reconhecer, se não querem ou não sabem facilitar, se ainda mais a contrariam, provocam calamidade a que depois não há sabedoria que possa acudir”.[32]
Teríamos assim o axioma da moderação; constituído no decalque da dialética da história (o tríptico da ação-reação-transação), no qual se define intelectualmente – e não historicamente – a perversão da dialética da história. A teoria do tríptico visa estabelecer antecipadamente no campo de luta as regras e o resultado da história, tendo como último termo sempre a transação, deturpando a história num hegelianismo mutilado próprio da revolução passiva[33], com vistas à conservação infinita. Das considerações axiomáticas de J.J. Rocha, Mercadante insinua sua teoria do juste milieu moderador: “O justo equilíbrio seria a conciliação dos contrários, do radicalismo, atuante e dinâmico, com a reação que procurava deter-lhe a marcha, firmando o princípio da autoridade. Se é necessário conter a avalancha da revolução, também é imprescindível sustar o processo reator. Nisto consiste a política do meio-termo, do equilíbrio […].
Cumpria que o poder se desarmasse de modo espontâneo, esquecendo as lutas passadas, renunciando ao arbítrio e adotando as idéias que o liberalismo adverso expunha em sua plataforma de inovação, depois de selecioná-las segundo o critério das verdadeiras necessidades públicas. As reformas deviam ser conduzidas sem os prejuízos quanto às suas origens, pois ao contrário, permaneceriam exclusivamente nos programas radicais e demagógicos, e teriam que os conservadores defender a ordem e a autoridade contra as exagerações de um novo surto democrático e jacobino”.[34]
Assim, caberia aos conservadores, tomar para si os projetos e as bandeiras oposicionistas e selecioná-los, fazendo uma escolha fundamentada, para tanto levar a cabo as reivindicações destituídas de seu sentido mais radical, quanto para se antecipar à radicalização dos processos históricos, para sob sua ação conter qualquer possibilidade de ruptura. Nisto consiste a teoria e a prática do moderantismo conservador esboçado por Mercadante. Nesse sentido, o autor traz uma visão bastante doutrinadora, que não se limita à história, mas certamente se remete também ao presente.
Para o autor, a questão da abolição não era ética e nem religiosa, mas com implicações práticas: “Cumpria examinar o problema com espírito objetivo e realista”[35]; aqui as reivindicações populares aparecem como demandas de ordem moral, ética e religiosa, descoladas da realidade, da “prática” – vejamos o fragmento a seguir: “Aqui a ideia humanitária da emancipação nunca encontrara adversários endurecidos, nunca teve que enfrentar a oposição de um partido. […]
Cumpria, antes de tudo, examinar o problema do ponto de vista de nossas condições especiais. Tratava-se de um fato complexo: […] interessando a toda ordem de relações, quer jurídicas, quer sociais. Estava a escravidão essencialmente ligada à lavoura e em seus fundamentos repousavam os direitos consagrados expressamente na Carta Magna e nas leis privadas. Os interesses da agricultura eram para aquela sociedade de senhores rurais os interesses de toda a sociedade pois “ela não pode ter outros mais importantes, porque toda a sua vitalidade aí está. Não os perturbemos. Ao menor abalo pode desabar-se em ruínas um belo edifício”, advertia um dos representantes da lavoura paulista. […]
No domínio das idéias abstratas, facílimo seria resolver o problema […].
Todavia, cumpria ser realista, respeitar, primeiramente os direitos adquiridos e o direito de propriedade”.[36]
Mercadante constrói uma apologética do regime escravocrata. Nessa concepção, cabia, antes de tudo, respeitar o direito de propriedade – ainda que esse fosse a posse de outrem.
Outro problema suscitado por Paulo Mercadante é a questão do Poder Moderador, que, segundo ele, se confunde com a cultura brasileira, ensejando a interpretação que historicamente a classe dominante imputa às Forças Armadas como o Poder Moderador da República. Segundo o autor, o Poder Moderador e o imperador eram imbuídos do ecletismo: “A tendência ideológica do equilíbrio difundia-se sobre tudo. Passava assim a realidade superindividual de nossa cultura a ser caracterizada por tonalidades que o ecletismo procurara ilustrar através de uma fórmula engenhosa de conciliação de diferentes escolas filosóficas. A linguagem do grupo dominante impregnava a coletividade quase toda das palavras e significações tranqüilas. […] A cultura inspirada no ecletismo tornava-se transcendente, predominando nas instituições, na sociedade, e passava a atuar sobre os indivíduos, sobre o príncipe, tornando-se imanente aos próprios homens, principalmente o imperador. A cultura do ecletismo, diríamos, retransia [penetrava até o íntimo] o indivíduo, instalava-se em sua fisiologia, nos seus centros de sensibilidade, condicionando-lhe tudo, os reflexos e o comportamento. Nascera no Brasil o imperador, independente através uma fórmula de ajuste político. Vinha destinado, sobretudo por sua nacionalidade, a desempenhar uma função de apaziguamento dos espíritos conturbados. […] Reservava-se-lhe um papel atreguador a desempenhar na história do país, e seus mestres [José Bonifácio e Itanhaém] imbuíam-lhe os hábitos adequados, modos frios, e ei-lo soberano sem tumultos sentimentais, o que lhe daria o necessário equilíbrio à política de moderação”.[37]
Para Mercadante, o ecletismo e a moderação inebriavam a tudo e a todos, chegavam mesmo a adentrar fisiologicamente os sujeitos, em outras palavras, se constituíam em um espírito mesmo, metafísico, superior às questões histórico-sociais, aos homens, às classes; mas uma superioridade hierárquica que se impunha a tudo e a todos. E, neste sentido, a moderação estaria em outro patamar, intocável, encarnada em D. Pedro II, concretizada no Poder Moderador: “tudo tinha adormecido à sombra do manto do príncipe feliz”[38]. Aqui encontramos o apagamento das lutas sociais, nesta concepção este período histórico aparece como o reinado da paz.
A divulgação do ecletismo teria se iniciado com Silvestre Pinheiro Ferreira, que chegara um pouco após D. João VI, e iniciou um curso de filosofia na Corte a partir de 1813. Segundo Mercadante, “suas ideias, expostas em 1821, exprimiam um meio-termo, afastadas do absolutismo e do jacobinismo democrático”[39]. Em fins dos anos 1830, Ferreira teria conhecido Cousin. O ecletismo teria outro grande disseminador em Gonçalves de Magalhães, autor de Fatos do Espírito Humano (Paris, 1858). Na filosofia, diz Mercadante, assim como na moderação, o caminho também seria evitar os efeitos da Revolução Francesa[40].
Paulo Mercadante, na conclusão de sua obra, diz que a conservação não tem por si mesma qualquer predisposição teórica, de sistematização, pois partiria “de uma pragmática de que não cumpre divagar sobre as situações em que se encontram os homens naturalmente ajustados”[41], e disto seria proveniente “um estado de espírito despido de inquietações”[42]. Neste sentido, diz, o conservadorismo “parte do princípio de que tudo que existe possui valor nominal e positivo em razão de sua existência lenta e gradual”[43]. As reformas, prossegue o autor, devem ser realizadas para conservar[44].
Segundo Paulo Mercadante, as seguintes máximas norteavam as “eminências conservadoras”[45]: “A escola da autoridade é a única legítima; porque é a única realizável; um governo filho da revolta não pode marchar um só dia em virtude de seu princípio, e expira, se o não combate”[46] e “Façamos no governo o que eles reclamam em oposição, diziam eles, os conservadores”[47].
Conclusão
“Toussaint L’Ouverture não está ligado a Fidel Castro apenas pelo fato de ambos terem liderados revoluções nas Índias Ocidentais. Tampouco esse laço é uma demarcação conveniente ou jornalística de um período histórico. O que havia acontecido na São Domingos francesa entre 1792 e 1804 repetiu-se em Cuba em 1958. […] o povo de Cuba continua lutando, valendo-se dos mesmos esforços.” (C.L.R. James).[48]
Karl Marx, numa comparação entre as revoluções burguesas e as proletárias, diz que as primeiras costumaram fazer a “ressurreição dos mortos”. Foi comum nas revoluções inglesa (1640) e francesa (1789) reviver o passado, com o objetivo de glorificar as novas lutas, de engrandecer a imaginação, de encontrar o espírito da revolução. Mas a revolução proletária, diz Marx, contrariamente “não pode retirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda a veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram de lançar mão de reminiscências da história universal para se iludirem quanto ao próprio conteúdo”, enquanto a revolução do proletariado deve “deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ultrapassava o conteúdo, agora é o conteúdo que ultrapassa a frase”[49].
A consciência conservadora no Brasil não visa reavivar as lutas do passado, como verificou José Honório Rodrigues, ou a burguesia descrita por Marx em O 18 Brumário. Mercadante, ao contrário, busca apagar as lutas sociais do século XIX. Tenta construir o fetiche de que o Brasil vivia uma paz sedimentada sobre a conciliação de classes, enquanto a colonização espanhola se esfacelava em “republiquetas”, e ao passo que na colônia francesa do Haiti o povo irrompia com a liderança jacobina Toussaint L’Ouverture. Para Mercadante o “espírito” da “conciliação” e da “moderação” paira sobre o Brasil alertando para as revoluções do presente, principalmente a cubana (1959).
Não é a primeira vez que os conservadores recorrem a estes expedientes, o general Ferdinando de Carvalho já havia publicado em 1951 o livro que tinha por título a seguinte mensagem: “-Lembrai-vos de 1935!”. A luta pela memória, a luta pelo passado e pela história compõem também o quadro maior da luta de classes. Para Mercadante, na sua concepção fetichista da história que escamotea a luta de classes, o Brasil deveria continuar sendo o bastião da suposta e propalada conciliação de classes – expressão ideológica de uma classe que visava esconder que estava em plena revolução-restauração[50] de “autodefesa ativa, militante e agressiva”[51]. Sua obra é, verdadeiramente, um manifesto político e a compreendemos quando remetemos ao contexto de sua publicação. Nesse sentido, se Paulo Mercadante faz uma digressão ao Império brasileiro, seu livro está impregnado da contra-revolução preventiva, da revolução-restauração de 1964. Mas o argumento não é histórico e sim metafísico. É uma obra cuja principal característica é a latência do presente dos anos 1960, marcados pelo golpe e pela autocracia burguesa.
Por diversas razões pode-se dizer que Mercadante busca um acerto de contas com seu passado no PCB. Ter pertencido ao Partido Comunista deixou marcas indeléveis em sua trajetória[52]. E, por isso mesmo, acertar as contas com a esquerda foi algo necessário para um homem que se alinhou à direita nos anos 1950. O ajuste veio na forma de uma obra que tem como escopo o ocultamento da luta de classes na História do Brasil. A “conciliação” de Mercadante é uma clara resposta aos intelectuais progressistas, como José Honório Rodrigues, e aos intelectuais da esquerda, principalmente Nelson Werneck Sodré. Para José Honório, uma conciliação era desejável como alternativa à secular violência e intransigência mais uma vez demonstradas pela classe dominante em 1964[53].
Para Nelson Werneck, na época o mais articulado interlocutor do PCB entre a intelectualidade, a “conciliação” era verdadeiramente um projeto político, uma aliança estratégica entre a burguesia “nacional” e o proletariado visando a projeção de um capitalismo autônomo de base nacional-popular, construído a partir da desarticulação do imperialismo e de seus interesses no país que se materializariam no latifúndio agro-exportador, cuja concentração fundiária estaria estruturada em modelo “feudal”[54]. Mercadante responde à essas teses dizendo que a nossa história já seria marcada por uma conciliação politicamente desenvolvida durante a monarquia entre conservadores, liberais e o Poder Moderador, cuja base social seria o proprietário de terras escravocrata – aliás, contrariando a tese do intelectual comunista de que os latifundiários são os grandes usurpadores do povo brasileiro, mas ao contrário, reafirmando-lhes o suposto papel protagonista na formação da nação.
Se fosse verdade que os atos conciliatórios regem as relações sociais desde a época colonial, todo o aparato repressivo e hegemônico da classe dominante seria desnecessário, no passado e no presente. Portanto, a “conciliação” não visa a explicação e o entendimento da realidade histórica, mas sim a justificação do presente (1965) marcado pela reação ostensiva e agressiva da classe dominante. A “conciliação” de classes de que fala Mercadante é algo que no texto só é possível entre aspas e, na realidade, só existe no encontro do porrete com as costas. A obra de Mercadante é uma “crônica dos vencedores” (Octavio Ianni)[55]; cabe indagar este autor com algumas das Perguntas de um operário que lê (Bertold Brecht): “A grande Roma / Está cheia de arcos de triunfo. / Quem os ergueu?” – definitivamente, não foi a classe proprietária que construiu o Brasil, apesar de, na luta de classes, definir em grande medida seus contornos.
*Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Autor de A restauração conservadora da filosofia: o Instituto Brasileiro de Filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1964) (Gárgula).
Publicado originalmente na revista História e Luta de Classes, ano 9, no. 16.
Notas
[1] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasi: contribuição ao estudo da formação brasileira. 4 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. Há uma interessante análise disponível na internet da autoria de Maria Bernadete Oliveira de Carvalho, Ser conservador (Revista Espaço Acadêmico, nº 50, julho de 2005, ano V).
[2] Conforme conceituação desenvolvida por Christine Buci-Glucksmann em Gramsci e o Estado: por uma teoria materialista da filosofia. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
[3] SOARES, Jorge Coelho. Marcuse no Brasil: entrevistas com filósofos. Londrina: CEFIL, 1999. p.131.
[4] As edições são: 1 ed., Rio de Janeiro: Saga, 1965; 2 ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972; 3 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; 4 ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
[5] Carvalho é editor e prefaciador da obra de Mercadante A coerência das incertezas: símbolos e mitos na fenomenologia histórica luso-brasileira (São Paulo: Editora É Realizações, 2001); Carvalho é conhecido pelos seus polêmicos ataques à esquerda.
[6] Cf. CARVALHO, Olavo de. Paulo Mercadante e a alma brasileira. Este texto é o prefácio d’A coerência das incertezas e está disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/textos/pmercadante.htm>, capturado em 11/06/08.
[7] Cf. contra-capa de MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
[8] MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. Resenha de “Militares & Civis: A Ética e o compromisso”. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, volume XXVIII, fascículo 110, p. 234, abril-junho de 1978.
[9] Cf. contra-capa da 4ª edição d’A consciência conservadora no Brasil.
[10] Cf. contra-capa de MERCADANTE, Paulo. Das casernas à redação: a era de turbulências. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2004.
[11] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil…, p. 40.
[12] Idem, p. 72, citando VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil, v.1, p. 115. S/local, s/editora, s/data.
[13] Idem, p. 91.
[14] Idem, p. 96.
[15] Idem, p. 105.
[16] Idem, p. 98.
[17] Idem, p. 107-8.
[18] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 291
[19] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil…, p. 100.
[20] Idem, p. 121-126.
[21] Idem, p. 166.
[22] Idem, p. 143 [grifos nossos].
[23] MERCADANTE, Paulo. Militares & civis…, p. 33.
[24] Idem, p. 35.
[25] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil…, p. 158.
[26] Idem, p. 159.
[27] Cf. CARVALHO, José Murilo (Coord.). A contrução nacional 1830-1889, volume 2. Rio de janeiro: objetiva, 2012. p. 25-6.
[28] IANNI, Octavio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 13.
[29] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil…, p. 191.
[30] Idem, p. 193-4, apud. ROCHA, Justiniano José da. Ação, Reação, Transação. In: MAGALHÃES, R. Três panfletários do Segundo Reinado. S/D, S/L, p. 216.
[31] Idem, p. 196.
[32] Idem, p. 197-8, apud. ROCHA, J.J. Ação, Reação, Transação… p. 163-4.
[33] Segundo a conceituação desenvolvida por Antonio Gramsci, a revolução passiva consiste em mudanças caracterizadas pelas reformas sociais e pela atualização do Estado em processos marcados pelo (i) apassivamento da classe trabalhadora induzido pela classe dominante e (ii) pela cooptação e corrupção das lideranças antagônicas. Todo o processo é marcado pela preservação da ordem econômica-social e pelo fortalecimento e pela perpetuação do poder. Gramsci trata do conceito, também denominado como revolução-restauração, principalmente no 5º volume dos Cadernos do cárcere (vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.).
[34] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil…, p. 198.
[35] Idem, p. 203.
[36] Idem, p. 203-4-5, apud. SILVA, Rodrigo da. Voto em separado. In: Elemento Servil, Parecer e Projeto-de-Lei apresentados à Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 16 de agosto de 1870, p. 106-7 – grifos nossos.
[37] Idem, p. 248-51.
[38] Idem, p. 259, apud. ROMERO, Silvio. Explicações indispensáveis. In: BARRETO, Tobias. Vários Escritos. S/Local, S/Editora, S/Data. p. XXVI-II.
[39] Idem, p. 262.
[40] Cf. Idem, p. 271.
[41] Idem, p. 273 – grifo nosso.
[42] Idem, p. 273.
[43] Idem, p. 274.
[44] Cf. Idem, p. 275.
[45] Idem, p. 290.
[46] Idem, p. 290, referindo-se a Cafefique, sem citar a obra.
[47] Idem, p. 291.
[48] JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L‟Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2007.
[49] MARX, Karl. O 18 Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003. p. 17-8.
[50] Gramsci denominava a revolução passiva como revolução-restauração.
[51] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2006. p. 393.
[52] Veja por exemplo o artigo de Dênis de Moraes, Carlos Marighella, 90 anos (2001), disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci>.
[53] RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Originalmente publicado em 1965.
[54] SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 14 ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2002. Originalmente publicado em 1962; suas teses fundamentais já haviam sido desenvolvidas em um curso do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) no final dos anos 1950.
[55] IANNI, Octavio. Op. cit.