Por Leonardo Avritzer*
O Brasil vive um momento de dúvidas e questionamentos em relação à democracia. Nos últimos quatro anos, presenciamos uma eleição com resultados legítimos, mas fortemente contestados, duas tentativas de impeachment presidencial sendo que uma delas levou à remoção da presidenta eleita com base em argumentos legais extremamente frágeis. Assistimos também à remoção e à posterior prisão do presidente da Câmara dos Deputados que havia liderado esse processo de impeachment. Acompanhamos, desde 2017, conflitos espetaculares e também trágicos protagonizados pelo Supremo Tribunal Federal envolvendo questões tão importantes quanto o habeas corpus. Nesse cenário caótico, um presidente, Michel Temer, sem nenhuma legitimidade e com baixíssimos níveis de aprovação ainda levou ao Congresso reformas que alteram profundamente a organização do Estado brasileiro. Por fim, o país viveu um processo eleitoral caótico com a proliferação de notícias falsas e elegeu um presidente que procura reabilitar o período autoritário e chama para tomar chá a viúva do mais famoso torturador do período. Como entender tais mudanças que tornam a democracia no país frágil, senão incerta, e abalam elementos centrais do estado de direito?
Quando olhamos detidamente todos esses elementos, percebemos que o Brasil vive um processo que se encaixa nas discussões internacionais sobre “a crise da democracia”. Ele vive uma degradação das instituições democráticas por dentro, um conceito diferente daquele conhecido como golpe.
O golpe, de acordo com a teoria política, consiste em uma ruptura completa com a lei e com qualquer forma de ordem e justiça. Não por acaso, o golpe militar na história latino-americana envolveu exatamente elementos de ruptura com a ordem legal e institucional presentes no Ato Institucional número 1, no caso do Brasil, ou no primeiro comunicado da junta militar argentina que suspendeu as atividades políticas do Congresso.
Nenhum desses elementos está presente na realidade brasileira. Ao contrário, o que observamos é um processo contínuo de degradação institucional, semelhante àquele discutido por Levitsky e Ziblatt no livro Como as democracias morrem (Zahar).
Tivemos no Brasil, em 2016, elementos que sugerem a aproximação com um golpe parlamentar. Ainda assim, o ataque ao exercício do poder no seu centro político, que seria a característica principal do golpe parlamentar, prescinde de um elemento de ruptura assinalado por Gabriel Naudè, o primeiro teórico dos golpes de estado. Além disso, nesse novo formato de descontinuidade de governo, surge uma outra dimensão ausente nos golpes clássicos e que eu caracterizaria da seguinte maneira: uma ruptura completa com a legalidade.
O que vemos no Brasil desde 2016 é uma enorme zona gris entre o legal e o não legal, entre o respeito e o desrespeito aos direitos e garantias legais. É possível perceber que o golpe parlamentar se situa na interseção entre o golpe e o não golpe no sentido que a ruptura forte e imediata situa-se apenas no campo do exercício do poder e não se estende à tessitura das relações legais que, ainda assim, foram abaladas pelo ato legalmente questionável de afastamento da presidente e pelas manipulações posteriores na indicação de Procuradores Gerais da República.
A situação da democracia no país degradou-se ainda mais com os fortes sinais de manipulação do julgamento do ex-presidente Lula e dos demais julgamentos realizados pela 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. Sabemos quais são as ilegalidades mais flagrantes: condução coercitiva com visibilidade midiática, prisão preventiva fora dos preceitos legais, pressões indevidas sobre o STF.
Todos estes fatos que acabaram comprovados pelos vazamentos das conversas dos procuradores do MP em Curitiba parecem apontar na direção de um poder judiciário que, em articulação com outras instituições judiciárias, exorbita da autonomia concedida pelo quadro constitucional constituído em 1988 e avança para o campo de um pretorianismo jurídico em relação às instituições políticas.
Temos, assim, a afirmação de uma representação não soberana do interesse público por parte das instituições judiciárias de controle. O maior exemplo dessa ideia distorcida de interesse público foi, mais uma vez, oferecida pelo juiz Sérgio Moro ao contrapor interesse público e legalidade no vazamento de gravações obtidas de modo ilegal na operação Lava Jato e posteriormente ao exorbitar das suas funções na condenação do ex-presidente Lula.
Todos esses elementos são novos no Brasil em relação inclusive à experiência autoritária dos anos 60 e 70 e provavelmente estão relacionados à ruptura de uma concepção de tolerância informal associada ao papel desempenhado pelo catolicismo no país. Na ausência dessas estruturas temos intolerância associada à ausência das garantias civis oferecidas pelo estado de direito.
Jair Bolsonaro é consequência desta conjuntura. Sua vitória expressa diversos elementos que nos permitem declarar tanto o fim da Nova República quanto novos problemas na nossa democracia, a saber: a interferência radical do poder judiciário no processo de determinação da soberania política por meio das eleições e, ainda mais grave, a relativização pelo presidente da negatividade associada ao período autoritário vivido no Brasil a partir do golpe de 1964, referência até então compartilhada pelas principais forças políticas do país e por todos os presidentes desde 1985.
A partir da posse de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do poder judiciário e das instituições de controle sobre o sistema político. Esse ataque e, ao mesmo tempo, a intervenção no Rio de Janeiro e a nova política de segurança pública no estado completam a equação de violação de direitos e de adesão a uma política de segurança pública que constitui uma ameaça à vida da população de baixa renda e, majoritariamente, negra.
Em meu novo livro, O pêndulo da democracia (editora Todavia) discuto todos estes elementos por meio da teoria do pêndulo democrático no Brasil. O país vive desde o pós-guerra uma estrutura pendular de democracia na qual existem momentos de forte otimismo democrático e ampliação da participação que são alternados por outros momentos nos quais as elites e muitos setores populares aderem à rejeição da democracia ou à antipolítica.
A conjuntura apresentada em 1945-6 trouxe elementos na direção da ampliação da democracia, tanto no que diz respeito às eleições quanto à nova Constituição elaborada no ano seguinte. A conjuntura 1985-8 seguiu, da mesma forma, uma lógica de um otimismo acrítico com os entraves do processo de construção democrática.
Os momentos regressivos em relação à democracia na história do Brasil também foram diversos e nos permitem estabelecer um padrão analítico. Em geral, esses momentos envolvem divisões políticas, crise econômica e profundo desacordo em relação ao projeto de país. Esse foi o cenário no qual se desenrolaram as crises de 1954 e 1964. Esse é o cenário no qual a crise atual se insere. Somente essa chave analítica permite entender a conjuntura 2013-8 como um momento turbulento de degradação institucional contínua e de movimentação da elite e da classe média contra a soberania popular e a ordem democrática.
A diminuição da importância das eleições na discussão sobre o impeachment e o alinhamento judicial contra o governo Dilma Rousseff são as principais características dessa conjuntura e se acentuam com a eleição de Jair Bolsonaro. Sua vitória acrescenta um elemento a essa conjuntura que reforça a própria tese do pêndulo, o ataque aberto às demais instituições democráticas como o Congresso e o STF. Temos assim todos os ingredientes para uma regressão democrática. As instituições corroendo-se por dentro e atacando umas às outras constituem o sinal maior desta crise. Para que o pêndulo pare de regredir faz-se necessário um retorno à operação das principais instituições dentro de seu leito normal, ou seja, em uma estrutura de divisão de poderes na qual cada uma delas não se ache forte porque tomou o poder de outra ou conseguiu abusar de forma mais eficiente das suas prerrogativas. Apenas assim será possível deter o pêndulo da regressão democrática
*Leonardo Avritzer é professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).