A disputa pela educação e pela memória no Cone Sul

Imagem: Suzy Hazelwood
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Por MAURICIO VÁZQUEZ CORREA & ANDRÉS DEL RÍO*

Os países sul-americanos, sob governos de direita e extrema direita, estão reconfigurando as narrativas sobre as últimas ditaduras e o papel dos militares na democracia

A reforma da educação foi um dos cavalos de batalha do governo de coligação de direita liderado por Luis Lacalle Pou no Uruguai. No entanto, desde a sua implementação, tem deixado mais dúvidas e sombras que melhoras. A sua imposição, marcada pela falta de diálogo e de participação dos professores na sua concepção e implantação. Além do confronto com as associações de estudantes. Essas são algumas das críticas.

Afirmando-se como uma “transformação profunda”, limitou-se apenas a alterar a nomenclatura das disciplinas e a aumentar a carga administrativa. Mas também revela um empobrecimento substancial do currículo e dos programas de estudo, exemplificado nos eufemismos utilizados para definir alguns dos conceitos mais sensíveis da história recente, que também afetam o presente do país.

Imposição a preço de mercado

Considerar a educação como uma mercadoria não é novidade. É um fenômeno típico do auge neoliberal dos anos 1990, mas que, com o advento de uma nova onda de direita, parece estar ganhando força. O Uruguai não escapa a esta lógica, com um presidente que construiu a sua campanha sobre os pilares da “liberdade”, entendida, sobretudo, como a liberdade das empresas privadas sobre o interesse público. Embora a necessidade de reformas educativas fosse amplamente reconhecida por todos os atores sociais envolvidos, a atual reforma apenas responde aos interesses das empresas privadas e à orientação ideológica da coligação governamental. Em outras palavras, o seu objetivo é enfraquecer e suprimir o desenvolvimento do pensamento crítico em favor de uma educação orientada para o mercado.

Neste sentido, os sindicatos de professores, bem como os sindicatos de estudantes, sublinham o seu caráter impositivo, não tendo havido uma construção adequada com aqueles que, para além dos mandatos presidenciais, são responsáveis pela educação das crianças e adolescentes do país. A Federação Nacional dos Professores do Ensino Secundário (FeNaPES) denuncia que as atuais autoridades do ensino público e certos operadores políticos têm tentado “criminalizar os professores sindicalizados devido à sua resistência às reformas neoliberais”. Por outro lado, denunciam que esta reforma implica no maior corte orçamentário da história e representa “o regresso aos anos 1990” na educação.[i]

Nesta linha, a Mesa Permanente das Assembleias de Professores Técnicos (ATD) denunciou que o processo de reforma não respeita várias disposições da Lei da Educação, incluindo a participação, que consideram “um dos princípios básicos da organização geral do ensino público”.[ii] Por seu lado, as associações de estudantes também exigiram ser ouvidas e tidas em conta quando se trata de efetuar mudanças na educação, bem como a cessação desta reforma educativa.[iii]

Note-se que a base legal para levar a cabo é fornecida pela Lei de Urgente Consideração (LUC), promovida pelo governo assim que tomou posse. A LUC é uma lei “ônibus” que, entre outras iniciativas, permite desregulamentações financeiras que facilitam a legalização de capitais e um aumento do papel punitivo do Estado.

Ensinar para esquecer

Em consonância com a deterioração da qualidade do ensino proposta pela reforma, um dos pontos que mais chamou a atenção foi a recategorização de alguns acontecimentos sensíveis do passado recente.

O novo currículo utiliza o conceito de “suspensão e subjugação das garantias constitucionais”, que não passa de um eufemismo para a ditadura civil-militar que governou o país entre 1973 e 1985, e retira do currículo a noção de “terrorismo de Estado”.

Esta alteração já tinha sido tentada em 2022, mas não foi bem sucedida nesse momento. No entanto, no final de 2023 e ignorando o pessoal docente, conseguiram concretizá-la. Este ano, a poucos dias do início das aulas, a mudança foi notada, o que motivou uma reação da Associação de Professores de História do Uruguai (APHU). “A mudança não é inocente”, argumentam em comunicado, alegando que o termo “é utilizado pela historiografia e pelas ciências sociais para descrever e analisar as violações dos direitos humanos levadas a cabo pelas ditaduras ocorridas na segunda metade do século XX na América Latina”.

Além disso, o sindicato denuncia a introdução de um item denominado “movimentos de guerrilha e violações dos direitos humanos”. Como se sabe, essa afirmação “é infundada, pois ignora inúmeras normas jurídicas e a literatura que indicam que é o Estado que pode cometer violações de direitos humanos”.[iv]

Segundo Carlos Demasi,  professor na Universidad de la República, parece adotar “uma visão negacionista” que “tenta amortecer o que a ditadura e todo o período de terrorismo de Estado representaram para a sociedade uruguaia”.[v] Carlos Demasi assinala que este tipo de argumentação está muito presente no discurso do Cabildo Abierto, o partido militarista que faz parte da coligação governamental, que “sempre que fala da ditadura fala também do que aconteceu nos anos 60” do século passado, “como se fosse uma justificativa”.

Por seu lado, o secretário-geral da FeNaPES, Emiliano Mandacen, salientou que a eliminação do termo é uma clara tentativa do bloco de poder hegemônico de reescrever a história e justificar o que aconteceu durante a ditadura, deslegitimando a importância da memória.[vi] Para o presidente da Academia Nacional de Letras do Uruguai, Gerardo Caetano, a substituição do termo é inaceitável e implica um afastamento não fundamentado do consenso historiográfico.

Estes acontecimentos, que desfiguram as violações dos direitos humanos e as responsabilidades do Estado, não são fatos isolados. Poucos dias depois, o senador e líder do Cabildo Abierto, Guido Manini Ríos, afirmou que as Forças Armadas são o “freio” para que as “instituições antidemocráticas”, como a única central sindical do país (PIT-CNT), não “façam o que quiserem no país” e “entrem na Casa do Governo”.[vii] Declarações desse tipo são uma constante do senador, que representa setores conservadores e militares.

Um fenômeno regional

Quando olhamos para os nossos vizinhos, eles também estão passando por um processo de transformação simbólica e material em relação às considerações sobre as últimas ditaduras civis-militares. Por um lado, no Brasil, Bolsonaro promoveu as comemorações do último golpe de Estado, em 1964. Recorde-se que, em março de 2022, as Forças Armadas e o Ministério da Defesa publicaram uma nota elogiando o golpe.[viii] O atual presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, pretende baixar o seu perfil e manter o silêncio sobre os acontecimentos de 31 de março de 1964. Nem crítica, nem comemoração.

Um grande retrocesso na matéria e um silêncio perigoso. Ainda mais se levarmos em consideração os danos causados pelo governo anterior: desde a comemoração do golpe, a criação de centenas de escolas militares, ter sido o governo com o maior número de militares em cargos civis, ter estabelecido uma infinidade de privilégios e benefícios para a categoria e, claro, a responsabilidade de muitos militares na construção da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, que está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal.

A justificativa do presidente brasileiro é a intenção de apaziguar a relação com as Forças Armadas. Como aponta o presidente do grupo de prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, “Ignorar o passado favorece o ressurgimento de novos retrocessos, como no caso da campanha de perdão (anistia) ao inominável e seus cúmplices”.[ix] Marco Aurélio de Carvalho alega que o perdão ao golpe de 1964 dialoga com a exigência de anistiar os setores que participaram da tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Entre eles, Jair Bolsonaro e altos comandos das Forças Armadas.

Se dermos um salto para o outro lado do Rio da Prata, a situação na Argentina não é melhor. A Argentina, um exemplo no âmbito da justiça de transição, está observando e se mobilizando face ao novo presidente na Casa Rosada. Sobretudo devido às declarações da sua vice-presidente, Victoria Villaroel. Em todas as oportunidades, Victoria Villarroel lança dúvidas sobre o número de desaparecidos deixados pela última ditadura civil-militar, em 1976. O dia 24 de março é o dia nacional da memória da verdade e da justiça, mas desta vez não houve nenhum evento oficial.[x] Sobre o tema, segundo a vice-presidente: “Estamos num estado democrático, se eles querem celebrar o golpe, isso é com eles, claramente há uma morbidez sobre isso”.[xi] Desprezando uma das datas nacionais mais importantes do país.

No início de março, ocorreu um atentado contra uma militante da rede nacional de Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio – H.I.J.O.S.[xii] Depois de apanhar e ser abusada, a militante foi ameaçada de morte. Na saída, seus algozes deixaram marcas na parede, com a sigla VLLC (Viva La Libertad, Carajo), o famoso slogan do presidente Javier Milei. Neste processo, há movimentos para reestruturar os setores militares, melhorias salariais, reintrodução do serviço militar obrigatório, utilização dos militares para segurança interna, entre muitas outras propostas. Enormes retrocessos que foram também fomentados pelo desastroso governo de Mauricio Macri.

Horizonte

Os países sul-americanos, sob governos de direita e extrema direita, estão reconfigurando as narrativas sobre as últimas ditaduras e o papel dos militares na democracia. Como parte desse processo, há alterações na educação e uma profunda disputa pela memória. O Uruguai tem eleições presidenciais no final de 2024. E o resultado vai determinar o rumo do tipo de educação e dos sentidos da memória do passado recente violento.

*Mauricio Vázquez Correa é mestre em Estudos Latino-Americanos Contemporâneos pela Universidade UDELAR-Complutense de Madrid.

*Andrés del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Notas


[i] FeNaPES (2022), “Una reforma de Terror”. En la web se enumeran una serie de datos que dan cuenta del recorte y otros factores que inciden en la desmejora educativa. Disponible en: https://fenapes.org.uy/DeTerror

[ii] Publicado en La Diaria, 4 de octubre de 2022. Disponible en: https://bit.ly/49To3IO

[iii] Plataforma educativa del Gremio Estudiantil del IAVA, Derechos Humanos en el Uruguay, Informe anual de SERPAJ Uruguay (2023), pág 245 y 246. Disponible en: https://bit.ly/4cb6EN8

[iv] Asociación de Profesores de Historia del Uruguay, (2024). Comunicado en relación al nuevo programa de Historia de Primer Año de Educación Media Superior. Disponible en: https://bit.ly/3ID23Wu

[v] https://ladiaria.com.uy/educacion/articulo/2024/2/demasi-considera-que-cambios-que-codicen-hizo-al-programa-de-historia-de-bachillerato-se-alinean-con-visiones-negacionistas-de-la-dictadura/

[vi] https://www.pagina12.com.ar/717494-uruguay-el-negacionismo-florece-en-la-educacion

[vii] https://www.elobservador.com.uy/nota/manini-rios-dijo-que-las-ff-aa-son-el-freno-para-instituciones-como-el-pit-cnt-y-le-respondieron-legisladores-20242299330

[viii] https://www.brasildefato.com.br/2022/03/30/forcas-armadas-celebram-golpe-de-64-em-nota-legado-de-paz-de-liberdade-e-de-democracia

[ix] https://www.poder360.com.br/brasil/prerrogativas-diz-que-silencio-sobre-o-golpe-de-64-e-inadmissivel/

[x] https://www.pagina12.com.ar/721736-dia-de-la-memoria-sin-acto-oficial

[xi] https://www.lanacion.com.ar/politica/victoria-villarruel-se-opone-a-la-intervencion-del-ejercito-en-rosario-y-defendio-el-aumento-a-nid21032024/

[xii] https://www.pagina12.com.ar/723116-el-testimonio-de-la-militante-atacada-un-gobierno-elegido-po


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