Por ANDRÉ BOF*
No Brasil o Estado absorve tudo e oferece compensações individuais sedutoras como recompensa
Não é exagero afirmar que nas atuais condições da política brasileira de esquerda a importância dos debates teóricos é menos do que instrumental. Se em tantos contextos históricos a teoria ao redor dos grandes fenômenos da luta de classes foi pragmaticamente utilizada como justificação de uma prática, tantas vezes, materialmente interessada, hoje, seu papel cumpre, quando muito, a tarefa de perfumar as pouco lidas elaborações de intelectuais úteis ao projeto de um liberalismo mais ou menos avermelhado.
É doloroso, porém inescapável, constatar que inexistem, no horizonte político de amplas camadas da classe trabalhadora, quaisquer reflexões ao redor de grandes transformações políticas que possam dar soluções históricas à crescente deterioração de suas condições de vida.
Resultado, óbvio, do processo de “endireitização” forçada e permanente ao qual o povo trabalhador foi submetido pelo bolsonarismo e suas parideiras que, hoje, interessadamente, desembarcam da aventura radical da extrema direita e esbravejam pela defesa de uma sacrossanta democracia abstrata.
Na medida em que as condições de vida deterioram numa constante inflacionária que segue até hoje, nos trabalhos precários e na dura sobrevivência dos últimos anos dado o contexto da Pandemia, apesar da divisão do país ao meio, por pouco, as massas trabalhadoras trouxeram ao comando do Executivo do estado burguês brasileiro uma solução que mais parecia sensível as suas necessidades econômicas e materiais.
Seria de se esperar que, num contexto de agravamento de todas as dimensões da vida social e econômica das massas, organizações, perspectivas programáticas e propostas progressistas ou radicais se fortaleceriam e haveria um deslocamento do espectro político para a esquerda. Não ocorreu.
O fisiologismo de partidos burgueses, que hoje servem de abrigo aos representantes mais asquerosos da extrema direita, chegou ao controle prático do Congresso nacional, na figura do PL, herdeiro prático da direita protofascista que se alçou ao poder em 2018 pelo extinto PSL, ambos ligados ao bolsonarismo.
De 81 senadores, 61 são de partidos que, ainda que se dividam por conveniência diante das tradicionais barganhas com o atual governo federal, identificam-se com o liberalismo mais selvagem, coronelista, oligárquico que, no fundo, são as características que preenchem o cerne das forças motrizes do bolsonarismo.
O atual presidente do Banco Central, transformado por essas raposas numa espécie de quinto poder autônomo da república, Roberto Campos Neto, parente do viúvo da ditadura “Bob Fields”, atua de modo a sabotar ao máximo a economia em benefício dos incendiários bolsonaristas e, claro, dos rentistas e exportadores lucrando com juros altos.
De conjunto, com a eleição de Lula-Alckmin (binômio inseparável), o espectro político brasileiro que seguia à direita, sofreu um solavanco e, em troca de algumas concessões cosméticas, tem caminhado no mesmo sentido. Tal movimento da política não pode passar sem deixar marcas na superestrutura cultural e, assim, teórica, do que podemos chamar, de forma generosa até demais, de “vanguarda” brasileira.
A chegada do atual governo burguês, fantasiado de “frente ampla de salvação nacional”, foi pavimentada de aberrações teóricas e oportunismos por grande parte dos representantes da atual esquerda. O estelionato é a cada dia mais evidente. A despeito da ação correta, porém inescapável, diante da tragédia humanitária Yanomami, todo o centro das promessas do governo tem sido abandonado no caminho imposto pelo compromisso com a realpolitik brasileira.
Para acalmar a classe média, prometeu-se uma isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, reordenando o peso maior para grandes fortunas. Após um teatro de meses do “governo de transição”, essa promessa ficou para um futuro incerto a ser negociado a peso de ouro com as raposas patronais nas casas supracitadas.
O aumento do salário mínimo, a resolução do problema insustentável do endividamento das famílias de baixa renda (que hoje chegam ao histórico de 79% de endividados), a retomada de uma política industrial e de emprego, a revogação das reformas trabalhista e da previdência que destroçaram os empregos no país, em suma, a picanha na mesa e o salário no bolso ficam cada vez mais retidos diante das trincheiras do capitalismo de espoliação de alta intensidade brasileiro.
Aquele que, hoje, o governo administra, defendido pelos apologistas a sua esquerda com uma retórica de “redução de danos” dizendo que fazem “o que tem para hoje”.
O governo Dilma e o PT foram, por um período de anos, alvos de uma coalizão de forças conservadoras burguesas que os entendiam como obstáculos diante de uma janela de oportunidade histórica para reduzir o preço da força de trabalho e realizar transformações estruturais que permitissem o controle mais pleno e permanente das condições para manterem suas taxas de lucro elevadas, mesmo em condições de crise.
Para isso, numerosos políticos tradicionais, membros do judiciário e a imprensa corporativa fecharam fileiras e elevaram a mentira, a dissimulação, a instrumentalização do fanatismo religioso e moralista a condição de força política de primeira ordem, sintetizada na figura circunstancial de Bolsonaro, logo após Alckmin demonstrar a desidratação de um político tradicional diante da radicalização aguda de massas contra “tudo o que está aí”.
É repetitivo afirmarmos que todo esse processo decorre de um profundo desgaste das instituições da democracia liberal. Esse é um fenômeno mundial, que encontra paralelo com a incapacidade crônica de propiciar o surgimento (o único necessário) de forças revolucionárias e transformadora por parte da esquerda “que está aí”.
A divisão do país, somada aos níveis altíssimos de abstenção e votos nulos num país de voto obrigatório, é resultante do esgotamento das saídas institucionais e da notória decadência do atual regime político. Sua incapacidade para tratar dos problemas e oferecer saídas para as aspirações de amplas massas, numa sociedade cada vez mais conectada, de ritmo acelerado, só pode causar a epilepsia política no seio das classes médias e a repulsa por parte das camadas mais excluídas do povo.
Numerosos são os comentários sobre o fenômeno. O bolsonarismo basicamente soube sintetizar numa retórica “antisistêmica” falsa todos esses rancores, angústias, insatisfações e desprezo diante do atual regime de coisas. E é aqui que a reflexão teórica dos apologistas da atual frente ampla se detém.
É notável o fato de que o governo burguês atual conseguiu absorver para dentro do Estado, repetindo o padrão de domesticação praticado pelos primeiros governos Lula e Dilma, figuras importantes de movimentos sociais, alocadas de forma estratégica em ministérios e secretarias figurativas, com baixíssimas prerrogativas e orçamentos.
Seu papel é óbvio: emanar legitimidade “popular” ao atual governo, enquanto esse faz o arroz com feijão da política burguesa: troca bilhões do orçamento secreto por “ampliação do tetro de gastos” para garantir programas de efeito “assistenciais-eleitorais”, apoia os representantes da oligarquia brasileira na presidência do Senado e Câmara (os mesmos que permitiram a Jair Bolsonaro massacrar o povo por quatro anos, impedindo pedidos de impeachment de seguirem seu curso) em troca de “governabilidade”, ou seja, segue o mesmo, falando que fazem diferente.
Tática conhecida na história de tantos processos de chacoalhar político, revolucionários e de fricção, focado em absorver a legitimidade de representantes populares enquanto governam para minar as bases da organização popular e desviar suas forças e expectativas para dentro do Estado e suas promessas.
Após 700 mil mortes, surpreendentemente não surgiu uma força capaz de questionar a paralisia das centrais sindicais e movimentos sociais burocratizados e sua forma de organização mafiosa que impede a associação independente nos chãos de fábrica, locais de trabalho e bairros. Tampouco tamanha tragédia propiciou um debate de perspectivas táticas quanto a quais bandeiras levantar de forma unificada para combater a fome, o desemprego, o subemprego e a precariedade da vida nos bairros. Tudo foi absorvido pelas expectativas em “quem será o próximo a mandar no Estado”.
Num país de endividados, uberizados, desempregados, cujos salários orbitam os míseros 1700 reais, toda a chamada “vanguarda” se aglutina ao redor da linha de defesa da “democracia”, essa mesma comandada por escravizadores parasitários do povo, odiosos e odiados, soando como bombeiros da ordem, redutores de danos da exploração, propiciando as mais diversas formas de confusão ideológica em camadas cada vez maiores de trabalhadores e da classe média.
Dessa forma, tornaram a arqui-reacionária “justiceira social” Rede Globo em aliada de primeira ordem na “defesa do Estado democrático de direito”, mesmo que esse “direito” seja sempre imposto “direito” contra os pobres e “torto” contra os magnatas do capital e seus filhos.
Embarcados na toada unitária, nossa esquerda amarelada, e, por vezes, inebriada por uma viagem lisérgica mal sucedida de retorno às inexistentes glórias dos cadáveres do stalinismo, agarra-se ao desprezível papel de aterrorizar os incautos com os perigos de “criticar prematuramente” um governo diante do constante e ameaçador potencial das forças bolsonaristas.
Agradecidas estão, obviamente, as forças da conciliação de classe, materializadas na fusão refém-sequestrador de Lula e Alckmin, cuja principal oferta aos banqueiros, rentistas e magnatas foi a de pacificação social em tempos de solavancos econômicos e sociais inevitáveis. Essa foi a razão da aceitação do governo social liberal anterior e será sua principal mercadoria oferecida hoje.
Desse modo, o debate de estratégias some no horizonte da névoa da realpolitik quando ele se torna mais urgente e necessário. O italiano Antonio Gramsci, revolucionário dos anos 20 do século passado, é, então, invocado para esse inglório cenário. Será comum ao leitor esforçado e paciente encontrar nas elaborações de diversos grupos “socialistas” menções ao léxico gramsciano, frequentemente como forma de justificação teórica para sua atuação política prática. Isso não é novo.
Talvez um dos autores marxistas mais vilipendiados nesse sentido tenha sido Gramsci, cujas categorias abrangentes que, muitas vezes, partem de reflexões parciais, específicas e, até, pouco claras, constantes em seus cadernos do cárcere, são lançadas ao ar como malabares do oportunismo político.
Não consideramos poder culpar o autor, cuja produção se deu em condições de prisão sob o fascismo. Se até mesmo Marx é incensado como “artigo de luxo” retórico por tantos liberais de distintos matizes, não surpreende o uso interessado pela estirpe de teóricos que dominam o rarefeito debate teórico nacional e mundial.
Dentre suas categorias, a ideia de “guerra de posição” ocupa papel destacado, tanto em seu pensamento, quanto no inventário a disposição dos oportunistas brasileiros. Para o autor, havia uma distinção nítida entre o Ocidente e o Oriente no que diz respeito às formações de cada dimensão de suas superestruturas. O que isso quer dizer?
Grosso modo, significa que para os países ocidentais a atuação das organizações proletárias não se daria nas mesmas condições que aquelas dos países orientais. Enquanto no oriente o “Estado era tudo”, compreendendo de maneira abrangente e primitiva as relações da sociedade, concentrando seu poder numa dinâmica tantas vezes mais rígida e autoritária, no Ocidente existiria uma série de “fortalezas e casamatas” por detrás do Estado, sendo essa uma realidade de distribuição do poder de maneira mais flexível, multifacetada, complexa, distribuída numa sociedade civil mais robusta de maneira que a luta política deveria se modificar.
Essa definição, interessante do ponto de vista teórico e útil do ponto de vista da prática revolucionária foi, é claro, historicamente distorcida por todos os tipos de reformistas clássicos e adversários da perspectiva revolucionária.
Enquanto Gramsci advoga por uma ação inteligente de infiltração em todas as “brechas” inevitáveis existentes numa superestrutura de uma sociedade de classes, compreendendo os espaços onde se produz cultura, se organizam os territórios, as representações políticas e profissionais, os espaços da produção literária e jornalística, tendo em vista o objetivo de acúmulo de forças para a conquista do poder através do desenlace de um movimento insurrecional e revolucionário com apoio de massas, os oportunistas pintaram outro cenário.
Trata-se de entender que a luta mesma se modificara, deixando de objetivar a transformação aguda e rupturística para tratar de ocupar os espaços dentro do Estado Burguês, de suas instituições e de seus fórums, administrando “as coisas como são” até um futuro insondável de melhoria gradual e progressiva.
Sindicalistas acomodados ao sindicalismo de resultado economicista com data marcada com os tribunais, professores universitários bem pagos e privilegiados de retórica avermelhada, funcionários públicos de carreira em cargos “estratégicos de chefia”, uma gama imensa de figuras de classe média emplumadas com um vocabulário marxista e acomodadas num conforto relativo trataram no passado e tratam, renovadamente, hoje, de se colocar como discípulos da linha gramsciana.
No Brasil, realmente, o Estado é tudo e, em que pese a relativa robustez de instituições presentes na sociedade civil, toda iniciativa potencialmente disruptiva é absorvida e, de maneira menos aguda ao menos na história recente, desbaratada repressivamente. Para usar a analogia de Gramsci, talvez a face humana do centauro, com seu cântico de cooptação, promessas futuras, ofertas de melhoria material e de relativo conforto acima das condições reais da verdadeira massa hipnotizam lideranças e ativistas e predominem quando se tratam de alternativas políticas organizadas. No pior dos casos, ficam presos a nichos e microcosmos sociais.
A parte fera do centauro se reserva aos desorganizados, desnutridos, excluídos e encolerizados nas periferias, prisões, trabalhos precários guetos e vielas. Ali, os poderes fáticos adquirem suas feições nítidas para quem quiser ver. Expressam-se na figura da ditadura de “chão de fábrica” do Capital e sua imposição do trabalho precário e mal remunerado como regra, no fundamentalismo moral e religioso e, nas rebarbas sociais, no crime e mendicância.
Enquanto reproduzem o mais deprimente da política burguesa, somando ao palavrório infindável e coro minoritário das esquerdas midiáticas surfistas de “justiça social” (impossível sob o capitalismo para as minorias e maiorias do povo) no congresso, as esquerdas deixam todo o espaço livre para que os poderes fáticos imponham a eleição de seus representantes e sua força nos congressos, nas câmaras, no Executivo, no Judiciário, ou seja, na superestrutura jurídica do Estado Burguês.
Ainda que fossem sérios em sua intentona eleitoral, estariam errando. Não estão e nem agem como se quisessem disputar seriamente a influência do povo trabalhador. Podem ser bem sucedidos em nichos, camadas de trabalhadores e setores de classe média progressistas, mas abandonam a enorme massa à escolha pírrica das alternativas citadas.
Por detrás do discurso da disputa por uma melhoria gradual e progressiva “conforme forem chegando mais e mais ao congresso”, buscando o poder através de um fenômeno que nunca existiu na história da luta de classes moderna, escondem-se as acomodações reais a modos de vida, salários, privilégios, benefícios, status e conforto alheios a enorme maioria do povo.
O que se esconde é, portanto, o profundo processo de domesticação, novamente, nada novo, de lideranças sindicais, operárias, de movimentos sociais e de esquerda, pela legalidade e propriedade burguesas. Nada se faz para além dessas. Pelo contrário, de maiores questionadores da ordem como sempre foram os revolucionários, somos reduzidos, pelos pretensos “socialistas” amarelados, stalinizados ou diretamente social liberais, a boias salva vidas de um regime odiado pelo povo, surfando circunstancialmente as altas de ondas de insatisfação, vez ou outras desviadas, nas baixas, para o colo da extrema direita.
Armados do discurso da guerra de posição, nossa atual esquerda em suas diversas facetas, todas acomodadas pelo guarda-chuva do governo liberal de Lula e Alckmin, oculta a oposição à guerra….de classe.
É certo que nessa guerra não podemos escolher o terreno. Em condições de uma baixa histórica da consciência e organização de classe, propiciada pelas profundas derrotas históricas do comunismo no século XX, pela ofensiva neoliberal e pelas transformações na estrutura morfológica do trabalho, as formas defensivas, clandestinas, subterrâneas, para usar Antonio Gramsci, ganham importância central.
A disputa de influência tratando de mesclar ideologia e prática em ações de solidariedade revolucionária entre áreas territoriais, setores de trabalhadores e fábricas, buscando formar presença física e política em áreas das periferias amontoadas do país criando centros, lutando suas lutas e vivendo seus dramas, oferecendo perspectiva política revolucionária de transformação, auxílios diversos onde o Estado burguês se retira e questionamento da ordem, um programa que tenha como alvo central o lucro e o poder patronal, cuja prática angarie respaldo e proteção da opinião e ação de massas de trabalhadores contra os poderes fáticos, que vejam os revolucionários como os seus, surgidos dos seus, como alternativa de vida para os seus, eis a única verdadeira guerra de posição capaz de colocar os proletários em posição de guerra num futuro mais ou menos próximo.
É óbvio que, no caminho, os desvios e as acomodações sempre vão se apresentar. No Brasil o Estado absorve tudo e oferece compensações individuais sedutoras como recompensa. Tão mais central entendermos a futilidade histórica e o nanismo político de tais justificações e projetos do eleitoralismo.
Em condições históricas de decomposição acelerada da vida dos peões e das condições da própria vida no planeta, é só o futuro da humanidade que segue nas mãos dos comunistas, hoje, lamentavelmente, dispersos e desorientados. Um cenário, no entanto, já tão fértil para retomadas de porte histórico.
*André Bof é graduado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP).
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