Por PETER HUDIS*
Hoje, a fusão do antissionismo com o antissemitismo – seja pela direita ou pela esquerda – serve o propósito de tornar invisível a perspectiva da emancipação humana universal
O avanço de um novo McCarthismo nos Estados Unidos e noutras partes do mundo ocidental, alimentado pela vontade de reprimir as críticas a Israel por causa da sua guerra genocida contra a Palestina, está a produzir um nível sem precedentes de supressão da liberdade de expressão – tanto dentro como fora da academia.
Em alguns aspectos, é ainda mais perigoso do que o McCarthyismo dos anos 1950, que tinha como alvo figuras bem conhecidas do governo, do entretenimento e da educação. O esforço para abafar as expressões de solidariedade com a Palestina e de condenação do projeto sionista está agora a atingir todos os níveis da sociedade, colocando potencialmente qualquer pessoa na posição de ser silenciada e desumanizada.
No centro deste esforço está a instrumentalização como arma da acusação de antissemitismo contra os críticos do imperialismo israelita. Isto, é claro, não é novo: o esforço para manchar os críticos do sionismo com antissemitismo tem sido um elemento básico para os apoiantes do Estado israelita há muitos anos. No entanto, desde o brutal ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, atingiu um nível totalmente novo.
O que há de novo hoje é a coalescência de duas tendências políticas aparentemente opostas que trabalham ambas para demonizar os críticos de Israel: os populistas de extrema direita movidos por uma agenda claramente racista e os neoliberais de centro-esquerda que se apresentam como Democratas razoáveis a defender a diversidade e a inclusão.
Coalescência de ataques
A direita republicana está empenhada em purgar das escolas os currículos que analisam criticamente a raça, o género e a sexualidade, como parte de um esforço para contrariar o aumento de consciência social produzido pelos protestos massivos do Black Lives Matter em 2020. Está agora a alargar este esforço para penalizar qualquer pessoa na academia que critique Israel – e muitos democratas estão a juntar-se a ela nesse esforço.
A coalescência de republicanos com o objetivo de acabar com o discurso crítico e de democratas (incluindo muitos “liberais”) que tentam suprimir as críticas ao sionismo coloca os “liberais” numa posição difícil – a última coisa de que querem ser acusados é de serem indiferentes às iniciativas de diversidade, equidade e inclusão ou de facilitarem os esforços da extrema direita para destruir o que resta da democracia americana.
No entanto, é precisamente isso que estão a fazer ao aceitarem a premissa de que atacar o sionismo e as políticas genocidas do Estado israelense é inerentemente antissemita.
A ironia aqui é que não é nenhum segredo que a defesa fervorosa de Israel por parte da extrema direita é muitas vezes acompanhada por estereótipos antissemitas – desde a noção de que a economia mundial é governada por uma cabala das “elites da Costa Leste” (muitas vezes com nomes judeus) até à crença de muitos evangélicos de direita de que a segunda vinda de Cristo ocorrerá quando o último judeu abandonar a sua fé e abraçar o cristianismo.
O que o ideólogo nazi Joseph Goebbels denunciou como “cosmopolitismo judaico exagerado” é exatamente aquilo contra o qual a extrema direita se tem vindo a insurgir há anos, sob nomes diferentes – com a particularidade de estar agora associado a um apoio total a um Estado israelense que massacra muçulmanos e palestinianos, ao mesmo tempo que atua como o aliado mais próximo do imperialismo norte-americano.
Um exemplo notável disto foi o comício “Retomar as nossas fronteiras” no Texas, a 2 de fevereiro, que contou com Sarah Palin, Ted Nugent e a nacionalista cristã Lara Logan como oradores. Michael Yon, um convidado regular do podcast War room de Steven Bannon, também se dirigiu à multidão, afirmando: “Estes imigrantes que inundam a nossa fronteira estão a ser financiados por dinheiro judeu – judeu, isso mesmo – pela Sociedade Hebraica de Ajuda aos Imigrantes, que está a financiar as pessoas para virem para cá e gritarem ‘Allahu Akbar’.”[1]
Robert Bowers, que assassinou onze judeus na sinagoga da Árvore da Vida em 2018, no ataque antissemita mais sangrento da história recente dos EUA, justificou o seu ato expressando animosidade pelo apoio da Sociedade Hebraica de Ajuda aos Imigrantes aos direitos dos imigrantes.
Nenhuma força nos Estados Unidos representa atualmente uma ameaça mais grave para a vida dos judeus do que a extrema direita racista. Contudo, não se conseguiria imaginar isto ao ouvir a congressista Elise Stefanik, cujas acusações de antissemitismo contra os presidentes da Universidade de Harvard e da Universidade da Pensilvânia levaram ambos a perder os seus empregos – apesar de Elise Stefanik ter feito amizade com Nick Fuentes, um antissemita declarado e amigo do seu novo mentor Donald Trump (ela é uma das principais escolhas para se candidatar a vice-presidente).
Também não o saberíamos pelas fileiras de Nancy Pelosi, que chamou aos estudantes que denunciaram o ataque assassino de Israel a Gaza agentes pagos da Rússia – uma acusação estranha, dado que o ministro dos Negócios Estrangeiros de Vladimir Putin, Sergei Lavrov, declarou recentemente que “Israel tem objetivos semelhantes [em Gaza] aos da Rússia” na Ucrânia.
O antissemitismo na realidade
O ataque aos críticos de esquerda do sionismo por parte dos democratas de centro-esquerda conjuga-se diretamente com a narrativa racista da extrema direita – independentemente de quanto tentem convencer-se do contrário.
Algumas forças que se opõem a Israel são antissemitas, como no slogan da milícia Houthi do Iémen, “Morte à América, Morte a Israel, maldição aos judeus”. Isto não justifica que os Estados Unidos e os seus aliados bombardeiem as bases Houthi no Iémen, mostrando que estão mais interessados na livre circulação de capitais através do Mar Vermelho do que em levantar um dedo para forçar Israel a parar a sua destruição de Gaza e os seus ataques à Cisjordânia.
Algumas pessoas de esquerda também mantêm opiniões antissemitas. Se não fosse esse o caso, August Bebel não teria tido de chamar ao antissemitismo popular “o socialismo dos tolos” há 150 anos. É antissemita defender que todos os judeus apoiam por natureza o sionismo ou que todos os israelitas, independentemente da sua origem ou convicções políticas, são cúmplices dos atos genocidas do seu governo.
A existência de dois mundos em cada país é um princípio básico do marxismo – um princípio a que os racistas de todos os géneros se opõem virulentamente. Mas não há provas de que tais visões antissemitas caracterizem a explosão de protestos contra Israel pela nova geração de ativistas que inundou as ruas nos últimos quatro meses.
Muçulmanos e palestinos sob ataque
Resido em Chicago, onde se encontra o maior número de palestinos de todas as cidades dos EUA. Organizações palestinas e muçulmanas têm realizado protestos massivos contra o genocídio de Israel, envolvendo frequentemente dezenas de milhares de pessoas a cada semana. Organizações como a Jewish Voice for Peace, Not in My Name e IfNotNow (bem como um grande número de judeus não filiados em qualquer organização) têm estado integralmente envolvidas em praticamente todos eles.
Isto culminou numa manifestação em massa e numa concentração em 31 de janeiro, que levou a Câmara Municipal a aprovar uma resolução, por 24 votos contra 23 – o presidente da Câmara, Brandon Johnson, deu o voto decisivo – apelando a um cessar-fogo e ao fim das hostilidades. É a maior cidade dos EUA a fazê-lo. Em nenhum destes comícios e eventos os judeus se sentiram indesejados.
Alvin Tillery, diretor do Centro para o Estudo da Diversidade e da Democracia da Universidade de Northwestern, declarou recentemente: “Nenhum estudante judeu foi sujeito na verdade a violência na maior parte dos campus” – com exceção de uma agressão a um estudante israelita na Universidade de Columbia e de uma ameaça de bomba num centro judaico da Universidade de Cornell (que se veio a verificar ter partido de um único estudante perturbado e que não pertencia a qualquer organização).
Alvin Tillery acrescentou: “Há uma enorme divisão geracional nos campus universitários, e os jovens judeus estão no movimento de apoio a Gaza”, pois sabem que “os republicanos servem o mestre Donald Trump que está a citar Hitler nos seus discursos; as pessoas percebem isso”.
No entanto, Virginia Fox, congressista republicana da Carolina do Norte e presidente da Comissão de Educação e Trabalho que realizou audiências sobre o antissemitismo nos campi universitários, declarou: “Queremos que os estudantes se sintam seguros nos seus campi, o nosso problema número um é que os estudantes judeus não se têm sentido seguros”.[2]
Não vi qualquer prova disso no colégio onde leciono – que tem campus em Des Plaines e Skokie, esta última uma zona historicamente judaica que agora também alberga muitos muçulmanos e palestinos.
A uma curta distância da minha faculdade fica Plainfield, onde Wadea al-Fayoume, um palestino-americano de seis anos, foi assassinado num crime de ódio em 14 de outubro. Alguns dos meus alunos assistiram ao seu funeral.
Embora não tenha havido assédio ostensivo contra muçulmanos de que eu tenha tido conhecimento na nossa faculdade, vários estudantes disseram-me que estavam a ser assediados pelos seus vizinhos e abusados verbalmente por serem “terroristas”.
Muitos jovens palestinos estão a manter-se discretos e silenciosos como forma de se protegerem – exceto quando se juntam às manifestações. Se há grupo que tem o direito de dizer que não se sente seguro no atual clima político, esse grupo é o dos palestinos.
O aspecto mais flagrante deste novo macarthismo não são as figuras de destaque, como os presidentes das universidades – por muito trágico que isso seja. Pior é o silenciamento, a sensação de que não se pode dizer o que se sente sobre o momento atual por medo de ser manchado com a marca do antissemitismo.
Este medo é omnipresente no meio académico, a vários níveis. Também afeta o corpo docente, especialmente os que não têm estabilidade ou que trabalham a tempo parcial (mais de 70% dos que lecionam em faculdades públicas no Ilinois são adjuntos com pouca ou nenhuma proteção no emprego).
Frantz Fanon sobre o antissemitismo
Para combater este esforço de silenciar o pensamento crítico, a discussão e a ação, é importante ter em mente o que define o antissemitismo. Um pensador que tem muito a dizer sobre este assunto é Frantz Fanon, o notável teórico da raça e do racismo.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), Frantz Fanon fez a seguinte observação: “À primeira vista, pode parecer estranho que a perspectiva do antissemita esteja relacionada com a do negrofóbico. Foi o meu professor de filosofia, natural das Antilhas, que um dia me recordou o fato: ‘Sempre que ouvires alguém falar mal dos judeus, presta atenção, porque ele está a falar de ti’. E eu descobri que ele tinha toda a razão – e com isso queria dizer que eu era responsável, no meu corpo e no meu coração, pelo que era feito ao meu irmão. Mais tarde percebi que ele queria dizer, muito simplesmente, que um antissemita é inevitavelmente anti-negro”.[3]
Frantz Fanon assinala que todas as formas de racismo, quer sejam dirigidas contra judeus, negros ou árabes, partilham “a mesma queda, o mesmo fracasso do homem”.
A sua evocação do comentário de Aimé Cesaire, segundo o qual aqueles que odeiam os negros odeiam invariavelmente os judeus, não é uma mera observação casual. É um vislumbre filosófico da sua estrutura partilhada. Ele argumentou que os judeus e os negros são vítimas de substituição, ou seja, são objetos de frustração mal dirigida por parte daqueles que se recusam a enfrentar as razões do seu sofrimento social e psíquico.
Claro que estes racismos são diferentes: “negro representa o perigo biológico; os judeus, o perigo intelectual.” (p. 127)
Os negros são vistos como subassociais, biológicos e físicos; os judeus são vistos como suprassociais, controlando o mundo através do seu intelecto. Sofrem de formas de substituição radicalmente diferentes, mas o conteúdo da desumanização – na medida em que são vistos como objetos ao ponto de não serem realmente “vistos” – é o mesmo.
Frantz Fanon é claro como a água a este respeito ao declarar, “O racismo colonial não é diferente de qualquer outro racismo. O antissemitismo atinge-me diretamente: Estou enraivecido, estou a sangrar até empalidecer por uma batalha terrível, estou privado da possibilidade de ser um homem. Não posso dissociar-me do futuro que é proposto ao meu irmão”. (p. 65)
Escusado será dizer que Frantz Fanon era fervorosamente antissionista. Foi uma figura de proa da Revolução Argelina, que Israel trabalhou ativamente para subverter. No entanto, nunca lhe ocorreria confundir o antissionismo com o antissemitismo, uma vez que a sua crítica ao racismo branco foi feita em nome do avanço de uma luta pela emancipação humana universal que transcende qualquer abordagem nacionalista estreita.
Hoje, a fusão do antissionismo com o antissemitismo – seja pela direita ou pela esquerda – serve o propósito de tornar invisível a perspectiva da emancipação humana universal, a que Frantz Fanon se referia como um “novo humanismo”.
Clareza sobre o antissemitismo
Por esta razão, vale a pena referir um documento mais recente que aborda a questão do sionismo e do antissemitismo – a Declaração de Jerusalém sobre o Antissemitismo, redigida por personalidades dos estudos judaicos e do Médio Oriente em março de 2021, em resposta à mistura feita pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto entre a crítica a Israel e o ódio aos judeus.
A Declaração de Jerusalém afirma que não é antissemita “criticar ou opor-se ao sionismo como forma de nacionalismo, ou… apoiar acordos que concedam plena igualdade a todos os habitantes ‘entre o rio e o mar’, seja em dois estados, um estado binacional, um estado democrático unitário, um estado federal ou em qualquer forma”.
Também não é antissemita, afirma, criticar “a conduta de Israel na Cisjordânia e em Gaza, o papel que Israel desempenha na região, ou qualquer outra forma pela qual, enquanto Estado, influencia os acontecimentos no mundo. Não é antissemita apontar a sua discriminação racial sistemática” contra os palestinos.
Além disso, “as críticas que alguns possam considerar excessivas ou controversas, ou que reflitam um ‘duplo padrão’, não são, em si mesmas, antissemitas”.[4]
Os apologistas da sociedade burguesa usam a todo o momento dois pesos e duas medidas. Os Estados Unidos e a União Europeia fazem-no claramente ao apoiarem a resistência da Ucrânia ao imperialismo russo e ao oporem-se à luta da Palestina contra o imperialismo israelita. O mesmo se pode dizer dos conservadores e liberais que se insurgem contra as violações dos direitos humanos na China, na Venezuela ou em Myanmar, mas pouco ou nada têm a dizer sobre os crimes cometidos por regimes aliados dos EUA, como a Arábia Saudita, a Índia ou a Guatemala.
A política de dois pesos e duas medidas também caracteriza muitas pessoas de esquerda, como quando os crimes de Israel contra a Palestina são corretamente condenados, enquanto o assassinato de dezenas de milhares de civis em Alepo pelo regime sírio ou a limpeza étnica da cidade ucraniana de Mariupol pela Rússia não o são.
Discussão livre precisa-se!
Embora algumas das pessoas de esquerda que usam dois pesos e duas medidas possam ser motivados pelo antissemitismo, é óbvio que a grande maioria não o é. São motivados por uma má política – ou o que equivale ao mesmo, a mentalidade de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.
A luta contra essa mentalidade é um dos desafios mais importantes que a nova geração de ativistas anticapitalistas e anti-imperialistas enfrenta. Sem ela, não pode surgir uma alternativa viável a todas as formas de capitalismo-imperialismo. Esta é mais uma razão para contrariar os esforços contínuos dos apoiantes de Israel para impedir a livre discussão e o debate.
O fato de um número crescente de judeus já não aceitar a mitologia do sionismo e apoiar o direito dos palestinos à autodeterminação está a levar os sionistas a ataques de frenesi apoplético.
Uma vez que equiparam a continuação da existência de Israel como Estado imperialista de apartheid à manutenção do seu poder e privilégio, a última coisa que querem é que as suas mentiras sejam expostas por aqueles que dizem representar.
A instrumentalização de acusações de antissemitismo é, portanto, cada vez mais um instrumento para silenciar as opiniões dos judeus de esquerda e que pensam de forma independente. Deixo ao leitor a tarefa de julgar – não será essa instrumentalização, ela própria, antissemita?
*Peter Hudis é professor de filosofia no Oakton Community College. Autor, entre outros livros, de Frantz Fanon: philosopher of the barricades.
Texto publicado originalmente no portal Against the Current. Traduzido por Carlos Carujo para o site Esquerda.net.
Notas
[1] “Far-right Convoy Protesting Migrant Crisis Nears Southern Border,” by Jacob Rosen, CBS News, February 3, 2024.
[2] Quoted in “GOP to Extend Colleges Inquiry Beyond Antisemitism,” by Anne Karni, The New York Times, January 6, 2024, A11.
[3] Black Skin, White Masks, by Frantz Fanon, translated by Charles Lam Markmann (London: Pluto Press, 1988), 92. All page numbers in the text are to this edition.
[4] https://jerusalemdeclaration.org(link is external)
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