Por VALERIO ARCARY*
A campanha contra Lula, com a colaboração agora demonstrada do FBI, tentou destruir a liderança de esquerda com maior representatividade entre os trabalhadores e o povo.
“Na casa de Kautsky, assistimos à festa que eles deram em homenagem a Ledebour quando ele completou sessenta anos. Entre os convidados, havia cerca de dez de nós, estava August Bebel, que estava prestes a completar oitenta anos. Foi o momento em que a festa estava atingindo seu auge. A unidade tática parecia perfeita. Os velhos registraram os triunfos e olharam com confiança para o futuro. Foi nessa festa íntima que tive a oportunidade de conhecer Bebel e sua esposa, Julia. Todos os presentes, sem excluir Kautsky, estavam pendurados nos lábios do velho Bebel assim que ele falou uma palavra (…) Em seus pensamentos, em seus discursos, em seus artigos, Bebel não desperdiçou uma única energia espiritual que não foi posta diretamente a serviço de um fim prático. E foi isso que deu uma beleza e um sentimento especiais à sua personalidade política. Bebel identificou aquela classe que só pode dedicar as horas livres para estudar, que sabe o que cada minuto significa e assimila o essencial, mas apenas isso. Uma figura humana incomparável. Bebel morreu durante a conferência de paz de Bucareste, entre a guerra dos Balcãs e a guerra mundial. Ouvi as notícias na estação de Ploischti, na Romênia. O que seria a socialdemocracia sem ele? Lembrei-me das palavras de Ledebour, que descreviam a vida interior do Partido Socialdemocrata Alemão nestes termos: ‘Vinte por cento radicais, trinta por cento oportunistas; o resto vota com Bebel’”
(Leon Trotsky, Minha vida).
As semelhanças entre as histórias do SPD alemão, antes da Primeira Guerra Mundial e o PT do Brasil são, evidentemente, muito menores do que as especificidades e diferenças [i]. Ainda assim, o papel de August Bebel no SPD lembra muito o lugar de Lula no PT até a eleição de 2002. Mas tiveram destinos distintos. Bebel morreu antes da amargura de ver o SPD sucumbir à pressão patriótica, quando do início da Primeira Guerra em 1914, e muito antes do SPD chegar ao governo na República de Weimar, e ajudar a enterrar a revolução alemã que teria mudado a história do mundo.[ii]
Lula chegou ao governo, e articulou, pessoalmente, as condições de concertação com a classe dominante para manter a governabilidade durante dois mandatos. Elegeu Dilma Rousseff sua sucessora e viu, mesmo depois das jornadas de 2013, a sua reeleição [iii]. Nesse longo processo, Lula cometeu muitos erros políticos e pessoais. Terminou sendo denunciado, condenado e preso pela operação Lava Jato.
Mas a perseguição a Lula não se explica porque flertou com a possibilidade de comprar um apartamento no Guarujá, muito menos porque aceitou uma cozinha de presente no sítio de Atibaia, duas besteiras que são um erro, mas não um crime. A monstruosa campanha para desmoralizar Lula, com a colaboração dos órgãos de segurança dos EUA, finalmente, demonstrada, foi construída para legitimar a destruição da liderança de esquerda com maior representatividade entre os trabalhadores e o povo.
O significado deste diktat ou ukaze contra Lula é simples. Uma esquerda implantada na classe operária e nos oprimidos não pode voltar ao poder nacional no Brasil. Não importa se for semimoderada, hipermoderada, criptomoderada. Claro que muito menos se for radical. Durante a Guerra Fria existia um ultimato semelhante contra os partidos comunistas nos países da área de influência dos EUA. Agora não é somente contra o PT. É contra toda a esquerda. Há uma ordem de comando que une as forças burguesas que apoiam o governo Bolsonaro e aquelas que apoiam a oposição liberal. A luta pela liberdade de Lula é um tema tabu, proibido e interditado pela e para a classe dominante. A reafirmação de sua condenação é inegociável.
Enquanto a pandemia continua sua dinâmica expansionista e mais governos estaduais e municipais decidem flexibilizar a quarentena, dois processos políticos centrais estão em desenvolvimento nas últimas três semanas. O enfraquecimento do governo Bolsonaro, e a pressão da oposição liberal para a formação de uma Frente Ampla que incorpore o PT, mas deve aceitar a presença de Sergio Moro, o que, evidentemente, exclui Lula.
Exclui, porque Lula não pode aceitar a presença de seu carrasco em uma Frente em defesa da democracia, se o papel de Sergio Moro foi insubstituível para condená-lo, e sua criminalização pela operação Lava Jato foi essencial para legitimar o impeachment de Dilma Rousseff. Não é possível compreender a eleição de Bolsonaro sem a condenação de Lula, impedindo a sua candidatura. Este passado não pode ser absolvido por ninguém, porque ainda pesam contra Lula inúmeros processos e julgamentos que são uma espada de Dâmocles sobre a recuperação de seus direitos políticos.
A defesa de Sergio Moro e, portanto, da Lava Jato, inclusive uma possível articulação de sua candidatura à presidência é indivisível da condenação de Lula. Há uma interdição explícita que une as diferentes frações da classe dominante, e as mais distintas alas que fazem a representação política de seus interesses: Lula não pode voltar a ser candidato.
Pouco importa se Lula está ou não disposto a ser candidato. Sobre esta proibição há dois campos em que se divide cada uma das organizações, correntes e tendências da esquerda brasileira. Ou se está contra ou a favor. Trata-se de um tema politicamente delicado, pois há muita hipocrisia nas camadas médias, especialmente, mas não só, onde se enraizou a ideia de que o maior drama nacional é a corrupção, e não a pobreza e a desigualdade social.
A luta pela anulação das condenações que pesam sobre Lula não é, portanto, um problema só do PT. O precedente estabelecido com a criminalização de Lula faz com que qualquer liderança popular que venha a se destacar como porta-voz da esquerda esteja, permanentemente, ameaçada. A começar pelo PSol e, até por isso, não podemos vacilar.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã)
Notas
[i] A Alemanha na virada do XIX para o século XX era um dos dois países centrais em maior dinâmica de industrialização, enquanto o Brasil da virada do XX para o século XXI é um país dependente na semiperiferia em estagnação há uma década; o SPD alemão foi oposição durante décadas ao governo do Kaiser, enquanto o PT chegou aos governos locais e estaduais em tempo, relativamente, precoce; os desdobramentos da crise do SPD foram precipitados pela derrota do Império alemão na guerra, e a vitória da revolução russa, que abriu o caminho para a formação de um Partido comunista na Alemanha que era o maior e mais importante do mundo.
[ii] O partido alemão foi a seção mais importante da Segunda Internacional. Quando ocorreu a mudança qualitativa na natureza da direção do SPD alemão? Quais teriam sido, afinal, os fatores decisivos da sua adaptação política e degeneração burocrática é um tema pouco explorado que, no entanto, merece atenção. A direção de Bebel e Kautsky foi a mais prestigiosa de seu tempo, e não sem razão. Entretanto, os processos degenerativos das organizações do movimento operário demonstraram-se, historicamente, de uma rapidez não só surpreendente, como irreversível. A visão mais comum, e também a menos convincente, é a que considera que a agonia do SPD coincide com o dia da votação dos créditos de Guerra, ou seja, agosto de 1914. Mas o salto de qualidade já deveria ter ocorrido com uma enorme antecedência. Só isso pode explicar o isolamento dos internacionalistas, depois reagrupados no Spartakusbund entre os membros do partido. A hipótese mais interessante é a que destaca que o processo de burocratização teria se iniciado nos sindicatos, e só posteriormente se estendido ao partido. Por certo período, os sindicalistas formaram um bloco com as outras tendências reformistas, pressionando a direção do partido, e até desafiando a sua orientação em público. Este processo se iniciou nos sindicatos ainda nos anos 90 do XIX e, quando dos debates sobre as greves de massas, depois de 1905, já estava cristalizado. No SPD, deve ter dado o salto de qualidade a partir de 1912, quando a bancada de deputados do SPD no Reichstag passou a ser a maior.
[iii] O PT passou por muitas crises, ao longo de uma história de quarenta anos, e se transformou em cada uma delas. Mudar é deixar de ser, é um vir a ser. Partidos não são imortais, mas, tampouco são invulneráveis. Já vimos muitos partidos no Brasil que são “cadáveres insepultos”: continuam a existir, mas são agrupamentos de mortos, feridos e mutantes, como os zombies. Um partido tem os seus dias contados quando perde a capacidade de ser expressão de sua base social. Enquanto não surgir um partido ou movimento que ocupe seu lugar um partido pode agonizar, lentamente, desde que consiga preservar sua influência. Ainda que derrotado, o PT provou que estava vivo em 2018.