A irresponsabilidade institucional no Judiciário

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Por FÁBIO KONDER COMPARATO*

A quem recorrer, quando o mais elevado tribunal do país não cumpre a sua elementar tarefa de julgar os casos a ele submetidos?

Dos três Poderes do Estado Moderno, o Judiciário surgiu por último e talvez, em razão disso, sua evolução institucional permanece inacabada.

É o que de certo modo explica o fato de ele aparecer em grande número de países, entre os quais o nosso, como um elemento estranho no quadro político. Para a grande massa, a vida política cinge-se à relação entre quem tem o poder de mandar e quem é constrangido a obedecer; sendo que de um lado enxerga-se o Chefe do Governo com todos os seus assessores – entre os quais, juízes e legisladores – e do outro lado, o povo.

Escusa dizer que tal realidade representa a negação cabal do modelo republicano e democrático, pois o bem comum do povo (a res publica no sentido original da expressão romana) está sempre submetido aos interesses particulares, e o povo jamais dispõe efetivamente do poder político supremo. Aliás, se dele dispusesse, não saberia exercê-lo, preferindo antes receber uma esmola – perdão ! – um “auxílio emergencial”.

É o que acontece neste querido país; com a agravante de que, quando pensamos em reforma de instituições, a última providência que nos vem à mente é mudar a configuração do sistema judiciário.

Como ninguém ignora, a grande diretriz da proclamação da república brasileira, ao final do século XIX, foi copiar servilmente as instituições políticas norte-americanas, sendo que um desses arremedos institucionais foi a criação do Supremo Tribunal Federal, à imagem da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Nos termos da Constituição norte-americana (Artigo Terceiro, primeiro parágrafo), os magistrados que compõem essa Corte são mantidos em suas funções “during good behavior”, o que acabou sendo interpretado como significando “pelo restante de suas vidas”; a menos que sofram impeachment, peçam demissão ou sejam aposentados. Ora, até hoje um só magistrado da Suprema Corte dos Estados Unidos (Samuel Chase em 1804) sofreu impeachment na Câmara dos Representantes, mas acabou sendo absolvido no Senado. Ou seja, os magistrados daquela mais elevada Corte são irresponsáveis, na acepção jurídica da palavra.

No Brasil acontece o mesmo; o que não significa, de forma alguma, que lá como cá os magistrados desses dois tribunais supremos sejam insensatos ou incompetentes.

O fato é que até hoje, com uma única exceção, nenhum Ministro do nosso Supremo Tribunal teve sua nomeação rejeitada pelo Senado. A exceção ocorreu quando o Marechal Floriano Peixoto decidiu nomear para preencher uma vaga naquele tribunal o doutor Barata Ribeiro, que era seu médico pessoal e permaneceu no cargo durante dez meses. Literalmente, não houve descumprimento da Constituição, pois a Carta de 1891 exigia que os nomeados para esse cargo tivessem “notável saber e reputação”; o que ninguém podia negar ao Dr. Barata Ribeiro. Foi somente pela Emenda Constitucional de 1926, e em razão desse episódio, que se resolveu acrescentar o adjetivo “jurídico” à expressão “notável saber”.

Pois bem, com a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, a qual instituiu o Conselho Nacional de Justiça, imaginou-se que doravante o Supremo Tribunal Federal – como todos os demais tribunais – passaria a ser controlado por aquele Conselho. Mas quatro meses depois, ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade nº 3367, a nossa Suprema Corte decidiu, pura e simplesmente, que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros”. Ponto e basta.

Pergunta-se, então: a quem recorrer, quando o mais elevado tribunal do país não cumpre a sua elementar tarefa de julgar os casos a ele submetidos?

Para ilustrar a indagação, cito apenas um caso, em que tive a honra de representar o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153 na qual, uma vez findo o regime totalitário instaurado em 1964, foi questionada a anistia que os chefes militares concederam a si próprios, relativa aos múltiplos crimes contra a humanidade, por eles cometidos durante mais de vinte anos.

O Supremo Tribunal Federal, contra apenas os dois honrosos votos dos eminentes Ministros Ayres Britto e Ricardo Lewandowski, julgou improcedente a ação. O tribunal “esqueceu-se”, porém, de reconhecer que os vários crimes de destruição, subtração ou ocultação de cadáver, então cometidos, são permanentes (Código Penal, art. 111, inciso III); ou seja, a prescrição criminal só começa a correr quando encontrados e identificados os cadáveres.

Por essa razão, publicado em março de 2012 o acórdão que julgou a citada ADPF nº 153, o Conselho Federal da OAB ingressou com o recurso de embargos declaratórios contra essa omissão decisória. O recurso foi distribuído ao relator do caso o qual, aposentando-se, foi substituído pelo Ministro Luiz Fux. Segundo o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 337, § 2º), uma vez apresentado um recurso de embargos declaratórios, o relator do caso deve submetê-lo a julgamento na primeira sessão ordinária seguinte do tribunal. O relator, porém, que atualmente ocupa a presidência da Corte, até hoje – passados nada menos do que oito anos e meio da apresentação do recurso – ainda não cumpriu a regra do Regimento Interno do tribunal, nem certamente irá cumpri-la.

Como se vê, o órgão ao qual compete, “precipuamente, a guarda Constituição”, atua desde sua fundação, há mais de um século, isento de toda guarda.

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de A civilização capitalista(Saraiva).

 

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