A letargia hedônica na escola pública

Imagem: A Yush
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Por EDNEI DE GENARO*

Os mecanismos individuais de avaliação e autoculpabilização são a chave para se gerir, conservar e desresponsabilizar a ordem institucional

Em 2009, Mark Fisher publicou um livro seminal — Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo — para a compreensão e atualização, no contexto do século XXI, da “lógica cultural do capitalismo tardio”, tal como Fredric Jameson preconizou, em 1991, em Pós-modernismo: a lógica cultura do capitalismo tardio.

Mark Fisher foi professor em instituições públicas de ensino na Inglaterra, lecionando em universidades e em programas de “educação continuada” (futher education), oferecidos a qualquer pessoa maior de 16 anos que deseje realizar cursos diversos de aperfeiçoamento ou obtenção de novas habilidades de trabalho; ou seja, no mais das vezes, um programa de especialização e de reciclagem da classe trabalhadora do país. Em sua referida obra, tais experiências enquanto profissional da educação mobilizam exemplos diversos e emblemáticos da cultura contemporânea.

Levando em conta isso, buscarei aqui recuperar as fecundidades e sofisticações das respostas de Mark Fisher sobre o estado psicossocial realista capitalista, tendo em vista, bem particularmente, as questões e problemas referentes à escola pública, onde parece ser mais fácil imaginar o fim das escolas públicas do que o fim do gerencialismo de autoculpabilização dentro delas.

Sobre os processos diversos de neoliberalização e mercantilização do ensino, quem ainda procura pensar nisso? De outro modo, como podemos nos desembrutecer acerca dessa “coisa inominável”, sem nenhuma lei transcendente, sem limites, infinitamente plástica, que é o capitalismo? Perguntas em tom retórico, em primeira instância, para lembrar a situação atual de desengajamento e a deflação depressiva decorrentes da normalização das crises — tendo em Mark Fisher a obra literária distópica Filhos da Esperança, de P. D. James ([1992] 2013), e a adaptação cinematográfica homônima, de Alfonso Cuarón, como icônicas da ascensão do ultra-autoritarismo e ultracapitalismo, de destruição massiva dos espaços públicos, algo já presente entre nós, mas com consumação em um futuro próximo.

Uma situação, enfim, que se metamorfoseia sobretudo em posicionamentos de mundo hedonistas niilistas, escreve Mark Fisher, de modo que o aprendizado de convicções políticas e atitudes é substituído pelo desengajamento e pela observação voyeurística do mundo (Fisher, 2020, p. 13). O realismo capitalista é “[…] análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão” (Idem, p. 14).

Ao absorver toda contraposição, ao usurpar o tempo livre e ao anular qualquer atitude alternativa e independente, o capitalismo contemporâneo funciona “sem um exterior”. Do rock ao hip hop, passando pelo atual ideal gangster — para citar as exemplificações culturais marcantes de Fisher — a busca é de autenticidade e… conformação à guerra hobbesiana de todos contra todos, condicionando a produção da cultura, da educação e do trabalho. “Cair na real” significa hoje a construção de competências e friezas para o distanciamento cínico, longe assim do crítico e destinado à práxis. A ironia anticapitalista, presente agora até em filmes da Disney, “[…] mais alimenta do que ameaça o realismo capitalista” (Idem, p. 25-6).

É precisamente nestas posturas que as formas ideológicas capitalistas se reavivam. Sobre isso, segue um trecho da obra Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, de Slavoj Žižek (1992), conforme citado por Mark Fisher: “O distanciamento cínico é só uma maneira […] de fechar os olhos para o poder estrutural da fantasia ideológica: mesmo quando não levamos as coisas a sério, mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, nós as continuamos fazendo” (Žižek apud Fisher, 2020, p. 26).

A fantasia ideológica cínica é complementada pela inviabilidade do desempenho de uma crítica moral do capitalismo, tornada inócua, uma vez que “pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade” (Fisher, 2020, p. 35), somente reforçam o realismo capitalista, de modo que a reativação da crítica/práxis, propõe Mark Fisher, exige uma inflexão, explicitando a burocracia, que “em vez desaparecer, mudou sua forma” (p. 38) e a resultante disso, o problema de saúde mental, isto é, “o caso paradigmático de como o capitalismo realista opera” (Idem, p. 36-7), enquanto as duas aporias, por excelência, do capitalismo contemporâneo, que ensejam transtornos e aborrecimentos na população em geral, e nos expedientes das escolas públicas, de maneira muito representativa.

A abolição do otium e a transformação da escola em espaços constituintes e integrados ao negotium é um problema enraizado na própria gênese das escolas públicas na modernidade. Fato que assinalou o paradoxo de sua origem no mesmo ato de destruição do seu sentido autêntico, ou seja, da escola (scholé) como o lugar do tempo livre, de retiro, do repouso; em outras palavras, do tempo disponível à ocupação intelectual, aos estudos científicos diversos, à filosofia e à política. A dimensão do negotium em ambiente escolar se transfigurou e agravou com o modelo neoliberal introjetado no nível psicossocial das vivências e relações públicas.

Segue a resposta de Mark Fisher ao mito da descentralização como fim da burocracia, prescrevendo a própria definição do modelo neoliberal de gestão escolar: “O fato que medidas burocráticas tenham se intensificado sob governos neoliberais que se apresentam como antiburocrático e antiestalinista pode, a princípio, parecer um mistério. No entanto, viu-se, na prática, proliferar uma nova forma de burocracia — uma burocracia de ‘objetivos’, dos ‘resultados esperados’, das ‘declarações de princípio’ — ao mesmo tempo em que ganha força a retórica neoliberal sobre o fim do comando vertical e centralizado. Pode parecer que essa volta da burocracia é algo assim como um retorno do reprimido, ironicamente reemergindo no coração de um sistema que jurou destruí-lo. Mas seu triunfo no neoliberalismo é bem mais que um atavismo ou uma anomalia” (Fisher, 2020, p. 72).

Nem atavismo e nem anomalia sociais, mas, sim, uma ordem constituída: o “stalinismo de mercado”. De forma sutil, a burocracia reemerge com novas técnicas e se intensifica. “A avaliação periódica dá lugar a uma avaliação permanente e onipresente, que não pode deixar de gerar uma ansiedade perpétua” (Idem, p. 87), ao impor “[…] à força a responsabilidade ética individual que a estrutura empresarial desvia” (Idem, p. 116).

Assim, a metabolização simbólica das classes sociais se manifesta: a responsabilidade recai em relação às tarefas e processos dos indivíduos, a despeito da estrutura social ou da instituição, alterando, pois, a própria lógica de visibilidade e estruturação dos papéis sociais, com base em dois clichês dominantes: culpar a estrutura é apenas desculpa invocada pelos fracos — o “choro dos fracos”; cada indivíduo deve dar o máximo de si para se tornar aquilo que aspira a si — o “voluntarismo mágico”, sendo estes clichês, como escreve Fisher, “[…] a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea […]” (Idem, p. 140), que esculpem a mentalidade capitalista.

Os mecanismos individuais de avaliação e autoculpabilização são a chave para se gerir, conservar e desresponsabilizar a ordem institucional, mantendo seus vícios e defeitos, inclusive nos “espaços de lazer e tempo livre”, as escolas. Tudo se conserva, engolindo todos na epidemia da cultura de auditorias internas e externas, por ranqueamentos, classificações e titulações infinitas de produtividade, alimentados por dados, informações e processos compostos e insertado nos sistemas enquanto o âmago do trabalho educacional. O delírio psicológico burocrático é tanto uma violência à saúde mental dos profissionais de educação quanto a destruição de espaços coletivos e deliberativos, como colegiados de instituições de ensino, que se transformam em reuniões de feedbacks, e de espaços formativos, que se tornam treinamentos.

O gerencialismo de autoculpabilização é a perda do sentido de gerência coletiva. A descentralização e a competição entre os pares são meios para o controle e a despotencialização do coletivo subordinado. A precarização do educador, por meio de contratos temporários e sobrecarga de trabalho, arremata a condição de informalidade causal e autoritarismo silencioso que pairam sobre as cabeças dos trabalhadores.

Em resumo, uma trapaça. “As metas rapidamente deixam de ser um meio para avaliar e tornam-se a finalidade em si” (Idem, p. 77), a fim de que continuamente se repita o universo quantitativo de “valorização dos símbolos dos resultados, em detrimento do resultado efetivo” (p. 76). Lógicas falaciosas que coadunam com o espírito do capitalismo financeiro e de influencia em redes sociais, pois o valor gerado no mercado de ações e de monetizações depende menos do que um perfil ou uma empresa “realmente faz” e muito mais das percepções, visualizações e expectativas performáticas futuras (Idem, p. 77).

A ilusão de muitos que entram nas funções de gerência, com grandes esperanças, é precisamente de que eles, os indivíduos, podem mudar as coisas, que não vão repetir o que seus gerentes fizeram, que as coisas serão diferentes desta vez. Mas basta prestar atenção a qualquer um que tenha sido promovido a um cargo gerencial para perceber que não demora muito tempo para que a petrificação cinza do poder comece a engoli-lo. É aqui que a estrutura é palpável: pode-se praticamente vê-la absorvendo e tomando conta das pessoas, ouvir os juízos moribundos/mortificantes da estrutura sendo vocalizados através delas. (Idem, p. 115-6).

A incerteza ontológica e a lógica falaciosa do gerencialismo de autoculpabilização são estratégias de adaptação e ruína da saúde mental dos educadores. Em termos deleuzianos e kafkianos, isto é, nas condições atuais de poder cibernético e distribuído das sociedades de controle, as aflições, os problemas e dilemas coletivos, tratados como assuntos individuais, são submetidos a uma “postergação indefinida”: o processo se prolonga, sem fim; as aflições, problemas e dilemas nunca se resolvem; pelo contrário, são resguardos por “policiamentos internos” e atarefamentos exaustivos, que agora se levam para casa.

Uma experiência de poder dominante que liquida a ideia de ponto central de comando. Um sistema que se quer sem “operadora central”, como previu Kafka (2005), em O processo. Em última instância, em caso de altercação sobre o poder e a responsabilidade, o procedimento geral é de denegação e anunciação de um “grande outro”: “o superior que cuida disso, desculpa”. No máximo, a responsabilidade recairá sobre “[…] os indivíduos patológicos, aqueles que ‘abusam do sistema’, e não o próprio sistema” (Idem, p. 116).

Ademais, escreve Mark Fisher, “os professores se encontram hoje sob a intolerável pressão de mediar a subjetividade pós-letrada do consumidor no capitalismo tardio e as demandas do regime disciplinar (passar nos exames e coisas do tipo)” (Idem, p. 49). Como se fossem um dos últimos representantes do poder panóptico, os professores, entre muros, carteiras e cadeiras, derivam seu público, composto por “desenraizados” e flexíveis, impacientes e dispersos, buliçosos pela ausência e pelo hedonismo permissivo dos pais, desde muito cedo ansiando em ser também como os seus célebres “empreendedores online” da cultura, vistos e comentados pelas redes sociais.

A “letargia hedônica” presente hoje nos jovens designa o ponto máximo de dissolução da cultura na economia cibernetizada, de controles automáticos sobre cognições e ambientes de trabalho/lazer. Em última instância, a programação massiva de modelos assincrônicos de educação a distância demarca o fim das instituições escolares.

Os sofrimentos e a paralisia psíquica dos professores são deliberadamente cultivados e tratados como “fatos naturais” e privados. As deteriorações da psique, da cultura, da educação e do trabalho têm obviamente razões para existir: permitir a submissão fatalista das pessoas. Ora, o descontentamento privatizado, a sorte de pelo menos ter um emprego e a aceitação de que as coisas vão piorar são propositados e explicam historicamente a destruição do “estado bem-estar social” a partir da ascensão do discurso neoliberal contra a classe trabalhadora.

Na Inglaterra, país de origem das primeiras experiências políticas neoliberais, uma das medidas inaugurais foi a abolição do leite nas escolas públicas, em 1971, no momento em que Margareth Thatcher era secretária de educação… Contudo, o neoliberalismo hoje não passa de um zumbi.

O neoliberalismo perdeu a iniciativa, e persiste inercialmente, desmorto, como um zumbi. Podemos ver agora que, embora o neoliberalismo fosse necessariamente “realista capitalista”, o realismo capitalista não precisa ser neoliberal. Para se salvar, o capitalismo poderia voltar a um modelo social-democrata ou a um autoritarismo do tipo que se vê no filme Filhos da esperança. Sem uma alternativa crível e coerente ao capitalismo, o realismo capitalista continuará a governar o inconsciente político-econômico. (Idem, p. 130).

De 2009 a 2024, foram os autoritarismos fascistas e neoreacionários que se desenvolveram no mundo todo, inclusive no Brasil, inclusive dentro das escolas públicas, com os projetos cívico-militares, entregando uma compleição moribunda às democracias e as faces mais violentas do zumbi neoliberal, ao escancarar a subordinação do Estado ao capital e ao manter monopólios e oligopólios como antimercados e espaços de articulação fascistas… Afinal, questiona Mark Fisher, como elaborar estratégias políticas para matar este zumbi? Como “[…] desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”? (p. 142).

Um novo anticapitalismo, “[…] não necessariamente ligado a velhas tradições e linguagens […]” (Idem, p. 130), é possível, antes de tudo, a partir da rejeição das estratégicas que não funcionam, por exemplo: estratégias horizontalistas, de ação direta sem ações indiretas, devem ser rejeitadas. “Só a esquerda horizontalista acredita na retórica da obsolescência do Estado” (Idem, p. 148), que, pensando bem, faz deleitar o capital com a sua popularidade e inocuidade, pois aparecem como “[…] ruídos carnavalescos para o realismo capitalista” (Idem, p. 27). Por sua vez, “no caso dos professores talvez a tática das greves devesse ser abandonada, porque prejudicam apenas estudantes e membros da comunidade” (Idem, p. 131-2).

Onde se empenhar, afinal? Segue um trecho da resposta de Mark Fisher: “Se o neoliberalismo conseguiu triunfar ao incorporar os desejos da classe trabalhadora pós-1968, uma nova esquerda poderia começar agindo sobre os desejos que o neoliberalismo gerou, mas que não foi capaz de satisfazer. Por exemplo, a esquerda deveria argumentar que pode entregar o que o neoliberalismo falhou em fazer: uma redução massiva da burocracia. O que se faz necessário é travar uma nova batalha em torno do trabalho e de seu controle; uma afirmação da autonomia do trabalhador (em oposição ao controle gerencial) juntamente com a rejeição de certos tipos de trabalho (com a auditoria excessiva que se tornou uma característica tão central do trabalho no pós-fordismo). Esta é uma luta que pode ser vencida — mas apenas por meio da composição de um novo sujeito político”.

Esse novo sujeito não surgirá, pois, sem um enfoque nos elementos estruturais e nas falhas que produzem os efeitos negativos do neoliberalismo, algo que sensibilizaria e mobilizaria novamente as populações para as pautas de esquerda, a fim de que estratégias parlamentares, no seio Estado, resultem em mudanças estruturais da situação. Não obstante, na atual conjuntura brasileira, na última década, tal sensibilização e mobilização foram bem-sucedidas pela coordenação de grupos, recursos e desejos para as pautas de (extrema) direita, a partir do aproveitamento massivo das comunidades online solipsistas — “redes interpassivas de mentes semelhantes que confirmam, ao invés de desafiar, os pressupostos e preconceitos de cada um” (Idem, p. 126).

Na “guerra cultural” que se tornou a política contemporânea, o futuro das escolas públicas — e das instituições de ensino, em geral — depende imensamente da mudança de estratégias e de novos ventos na política. No Brasil, a precarização do trabalho, o gerencialismo de autoculpabilização e o modelo cívico-militar, que silenciam e dessolam a saúde mental dos professores e alunos, são prioridades na luta política progressista nas escolas públicas.

*Ednei de Genaro é professor do curso de educação na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Campus Tangará da Serra.

Referências


Fisher, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

James, P. D. Filhos da esperança. São Paulo: Editora Aleph, 2023.

Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.

Kafka, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Žižek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.


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