A morte da mariposa

Imagem: Solange Arouca Rodrigues Guimarães
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Por DÉBORA MAZZA*

Comentário sobre o livro de Virginia Woolf

Este é um dos ensaios de Virginia escrito no fim de sua vida, em meio à Segunda Guerra Mundial e publicado postumamente. Ela não faz referência direta à guerra e nem menciona que a casa em que morava, em Rodmell, se situa a seis quilômetros de distância do local onde o exército alemão estava atracado (MESQUITA, 2016), não obstante; entendemos que a autora, através da janela aberta de A morte da mariposa, procura uma linguagem capaz de representar a consciência de suas personagens penetrando em sua interioridade e mergulhando por baixo da superfície das palavras numa tentativa de buscar a mensagem, a interpretação, a transfiguração dos fantasmas, o sofrimento e a luta social do ser humano espremido entre os agenciamentos humanos e não humanos. (WOOLF, 2021).

Desta forma, nos parece que A morte da mariposa ao tratar do fim da vida de um inseto, aparentemente insignificante, traduz os esforços de resistência, os horizontes do devir e a luta incansável pela sustentação da vida. Na trilha de Giuseppe Ungaretti, o texto se situa na corda bamba da necessidade de estabelecer um equilíbrio entre a expressão artística e a atividade social entendendo: “é preciso resolver milagrosamente o contraste de ser singular, único, anônimo e universal (…) e trazer revolução ao mundo”.

O cenário descrito é o do interior de uma casa, próximo a uma janela aberta através da qual se vislumbra “uma manhã agradável de meados de setembro, amena e benigna, mas com uma brisa mais cortante do que a dos meses de verão (…) o arado já sulcava o campo (…) a terra se via aplainada, brilhando e úmida. Um vigor vinha em ondas dos campos e da colina (…). As gralhas se agitavam (…) sobrevoando as copas das arvores em círculos, como se uma vasta rede de milhares de nós pretos fosse lançada pelos ares (…) com clamor e vociferações extremos (…) e em seguida se acomodasse aos poucos no topo das arvores” (p.11-12).

Virginia não consegue manter os olhos presos no livro que lê pois é capturada pela mesma energia que inspira “as gralhas, os lavradores, os cavalos, as costas nuas das colinas” e, de repente, surge uma mariposa que “esvoaça de um lado para o outro no quadrado da vidraça da janela aberta” (p. 13).

Ela não consegue afastar os olhos desta “criatura híbrida que voa de dia, nem alegre como a borboleta, nem sombria como as da sua espécie que despertam agradável sensação quando voam nas noites escuras de outono” (p. 11). A mariposa com asas cor de feno desperta, em Virginia, um sentimento de pena pois “as possibilidades de prazer naquela manhã pareciam tão gigantescas e tão diversas diante do quinhão de vida que cabia a uma mariposa diurna” (p. 14). Desta forma, descreve detalhadamente as tentativas de voo da mariposa, de um canto ao outro do compartimento de vidro, sua fadiga, suas oportunidades minguadas de alcançar “a amplitude do céu, o tamanho das colinas, a fumaça das casas e o vapor do mar”. Observa “a fibra enorme de energia do mundo, finíssima, pura, naquele corpo frágil e diminuto que cruzava a vidraça atrás de um fio de luz visível” e imagina: “ela não era nada, ou quase nada, além de vida” (p. 14).

Woolf persegue a natureza desta pulsão e diz: “é uma forma tão simples de energia que ondeava pela janela aberta e se infiltrava nos corredores estreitos e intrincados do meu cérebro e de outros seres humanos (…) é ao mesmo tempo maravilhoso e patético (…) uma minúscula gota de pura vida enfeitada, muitíssimo leve e enviada para dançar e ziguezaguear, a fim de mostrar a verdadeira natureza da vida” (p. 15).

Depois de um tempo, e de uma, duas, três, quarto, cinco, seis e sete tentativas de sobrevoar até a manhã benigna, a mariposa cansada de sua dança, se acomoda no peitoril da janela sob o sol, rígida, desajeitada e fracassada. Enquanto isto, Virginia tenta ajudá-la a se recompor estendendo-lhe um lápis ao qual ela pudesse se agarrar, se apoiar e voltar a voar. Olha pela janela e repara que já é meio-dia e o trabalho nos campos já cessou, os pássaros tinham se ido, os cavalos descansavam, a imobilidade e o silêncio haviam substituído a animação do início da manhã e assevera: “o poder continua ali, acumulado lá fora, indiferente, impessoal com nada em particular (…) opondo-se à pequena mariposa (…) inútil tentar qualquer coisa. Só se podia observar os esforços extraordinários das perninhas minúsculas contra uma sina que se avizinhava e poderia, se quisesse, submergir uma cidade inteira, e não apenas uma cidade, mas as massas de seres humanos: nada, eu sabia, tinha a menor chance contra a morte” (p. 19).

Segundo David Carter (1993), um pesquisador de mariposas, existem cerca de 170.000 espécies diurnas e noturnas que exibem uma variedade de tamanhos, formas e cores distribuídas geograficamente por todos os continentes, com exceção da Antártida. São criaturas frágeis, objetos de grande beleza e que sobrevivem em um mundo hostil sem armas de ataque para se defenderem. Ainda assim, desenvolveram êxitos evolutivos em diferentes habitats do planeta cobrindo as geleiras, as montanhas, os desertos, as zonas temperadas e as selvas tropicais. Experimentam quatro ciclos de vida diferentes: os ovos, a lagarta, a crisálida e a mariposa e têm uma expectativa de vida de cerca de quatro meses, do ovo a fase adulta, a depender das condições climáticas e dos seus predadores.

O texto relata que após uma pausa de exaustão, as pernas da mariposa se agitam ainda uma vez como um último protesto esplêndido e frenético que promovia uma simpatia entre a observadora e a mariposa, pois ambas estavam do lado da vida. Entretanto, “não havia ninguém para se importar ou testemunhar aquele esforço descomunal de uma mariposinha insignificante em conservar algo que ninguém mais valorizava ou desejava manter, contra a força de tal magnitude, era estranhamente comovedor. Novamente, o que se via era a vida: uma gota pura.”

O texto sugere que esta força tão imensa chamada morte representa um antagonismo cruel que nos causa assombro e que ela, assim como a vida, nos causa estranhamentos e encerra dizendo: “a mariposa, agora aprumada, jazia serena com grande decência e sem se queixar. Ah sim, parecia dizer, a morte é mais forte do que eu”. (p. 21)

Talvez este texto de Virginia tenha alcançado a proeza anunciada por Ungaretti quando sugere que o oficio do escritor é o de contrastar as situações singulares e anônimas com os sentimentos universais e coletivos e, no tenso equilíbrio entre a expressão artística e a resistência social, trazer a revolução ao mundo.

Neste momento pandêmico, pode parecer revolucionário pensar que os esforços da mariposa, assim como dos humanos, para sustentar a vida ziguezagueiam por movimentos patéticos e dignos de pena, mas também esplêndidos e que eles “submergem uma cidade inteira, e não apenas uma cidade, mas massas de seres humanos” (p. 6). Assim, as coisas mínimas podem guardar em si algo de esplêndido e contrastar a ternura das nossas existências aparentemente insignificantes.

*Débora Mazza é professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp.

Foto: Solange Arouca Rodrigues Guimarães. VC no TG [https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/noticia/2019/03/19/borboletas-e-mariposas-se-diferenciam-por-repouso-das-asas-e-antenas.ghtml].

 

Referência


WOOLF, Virginia. A morte da mariposa. Tradução Ana Carolina Mesquita. Edição bilíngue: português e inglês. São Paulo: Editora Nós, 2021, 48págs.

 

Bibliografia


CARTER, David. Manual de identificación de Mariposas diurnas y nocturnas. Barcelona: Ediciones Omega, S.A., 1993.

MESQUITA, Ana Carolina de Carvalho. O diário de Tavistock: Virginia Woolf e a busca pela literatura. Tese de Doutorado. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. (DTLLC). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), 2018.

UNGARETTI, Giuseppe. Entrevista Alberto Moravia e Giuseppe Ungaretti. In BRAGA, Rubem. Retratos parisienses. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013, p. 145-149.

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