A música na literatura brasileira

Wassily Kandinsky, Composição VII, 1913.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre a obra fundamental de José Ramos Tinhorão, o historiador recém-falecido

Longe de ser em ensaio ou artigo acadêmico, este artigo é uma rememoração pessoal. Posto isso, vamos começar situando (sempre achei “contextualizando” meio pedante) época e local.

São Paulo, anos 1990. Trabalhava numa emissora de TV, e fui escalado para dirigir uma entrevista com o famoso e temido crítico musical José Ramos Tinhorão. Digo dirigir, porque a nossa repórter era fraquinha, e precisava de um apoio. Não tinha envergadura, bagagem e traquejo para entrevistar um Tinhorão. Por prudência, lá fui eu, roteirista e diretor-adjunto, com ela e a equipe. Cá entre nós, eu também não era lá essas coisas. Sabia quem era o cara, e isso bastou para que eu fosse escolhido “diretor de reportagem”.

Tinhorão havia acabado de lançar um livro interessantíssimo (com a devida vênia a Mario de Andrade), onde mapeava a Música Popular no Romance Brasileiro (Oficina de Livros, 1992). O primeiro volume analisava a produção literária dos séculos XVIII e XIX.

Passei umas dicas para a apresentadora do programa, a entrevista foi razoável. Difícil foi arrumar um local adequado para gravação, já que o apartamento na rua Maria Antônia, em São Paulo, era atulhado de livros de tal forma que para ir ao banheiro você tinha de andar de lado. As paredes dos corredores eram ocupadas por prateleiras abarrotadas com alfarrábios de vários séculos, além de centenas de discos de muitas rotações.

Após meia hora de entrevista gravada, dispensei a equipe e o camburão da emissora. Tínhamos muito mais que o necessário para um programa matinal de variedades, mas decidi ficar. Já era fã de seu clássico ensaio Os Sons Que Vem das Ruas, onde pesquisou os pregões, serenatas e choros, muitas vezes anônimos, que eram a trilha sonora das ruas urbanas antes do rádio e da televisão. Eu, aluno, dei um golpe de mestre: abri a mochila e pedi um autógrafo no volume, publicado por “Edições Tinhorão”. Puxei uma conversa, me declarei amante da música popular brasileira, cantarolei um samba do Nelson Cavaquinho, e perguntei sobre onde almoçar ali perto.

Bom, ele foi até o boteco comigo, dividimos um franguinho (era uma quinta-feira. A entrevista de “cultura” do programa ia ao ar sempre na sexta). Tinhorão comentou que havia um movimento dos moradores do prédio para expulsá-lo, porque o peso dos livros e discos estaria comprometendo as estruturas do edifício. Falei do meu amor pelo choro, ele me indicou a leitura do Animal,[1] que eu não conhecia. Lembro que depois de uma(s) cerveja(s) fiz uma provocação.

– Não é possível ler toda a produção literária brasileira, mestre! Certamente há obras menos conhecidas, que não entraram na pesquisa…

Não seria uma tarefa normal para um humano, claro. Mas Tinhorão era sobre-humano. Na volta ao apartamento, que ele havia transformado num verdadeiro apertamento, me levou até um quarto e apontou para uma parede atulhada:

– Aqui estão todos os romances brasileiros publicados desde 1843, a começar por O Filho do Pescador, de Teixeira e Souza. Abra qualquer um, e veja se não tem marcações e anotações!

Nem tentei. De todos os volumes sobressaíam papeizinhos marcadores de páginas. Não havia só ficção, mas também a obra crítica. Creio ter sido a primeira vez com que me deparei com os sete volumes de História da Inteligência Brasileira, de Wilson Martins. Ou os livros de José Veríssimo e Sílvio Romero.

Havia confirmado o que suspeitava: o cara era o mais obsessivo e meticuloso pesquisador da música popular desse país. Quando encetou o ambicioso projeto de ler todos os romances brasileiros já tinha na cabeça vários ensaios literários: os sons que vem das ruas, a música popular, a origem do fado, as polcas e marchinhas, os lundus e as matrizes do samba.

Além de efetuar minuciosa pesquisa em todas as mídias existentes (sua discoteca de 78 rpm era fenomenal!), jornalista que era, intuiu que o universo ficcional poderia trazer referências sentimentais, memorialísticas, até documentais, que a imprensa cotidiana não registrava. Dessa leitura percuciente surgiram várias obras fundamentais para a cultura brasileira e portuguesa. Tudo isso virou artigo, ensaio e livro.

No decorrer deste inesquecível dia, não ousei levantar o tema bossa-nova ou tropicália. Conhecia a ojeriza do historiador à moderna MPB. Lembro-me apenas de uma pequena referência a Gilberto Gil, que tocou no alto-falante do boteco, que ele apontou como “muito talentoso”, mas que devia parar de copiar aquelas estrangeirices, guitarra elétrica, etc.

Despedimo-nos com a promessa de um novo encontro, que nunca ocorreu. O acervo está nas mãos do Instituto Moreira Salles, depois de uma epopeia mirabolante, e a lembrança do crítico sarcástico e impiedoso com seus coetâneos já foi devidamente esmiuçada. Resta a nós, que algum contato tivemos com esse personagem fascinante, colorir um pouco a história de sua trajetória, nesse país onde a cultura é tão menosprezada.

A leitura de Música Popular no Romance Brasileiro é fonte inesgotável de revelações. Aponta incongruências, preconceitos, descrições errôneas, idealizações sem noção. Também contém acertos, intuições e achados preciosos. Herança fundamental para as gerações vindouras, deixada por um iluminista-marxista que nunca se submeteu aos modismos.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Nota


[1] “Animal” é o pseudônimo de Alexandre Gonçalves Pinto, carteiro e músico amador (1870-1940). Publicou em 1936 o livro O Choro – reminiscências dos chorões antigos, referência fundamental para a história da música popular brasileira.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES