A nossa própria sombra

Jackson Pollock, Untitled, c. 1943
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Morte-vida

Somos legião, os infectados pobres,
Só Deus nos vale e a nossa própria sombra.

Ficaremos aos montes sob a terra,
mas já nos amontoavam nas encostas;

de terra em terra vivemos cuspidos,
nos cospem agora pro interior da terra.

(Se cheira pior o cadáver do pobre,
já pelo cheiro nos sentiam chegar.)

E nossa rua será sem nome, sem número,
como já o beco em que a gente morava;

sobre nós a cruz, o mato e a chuva –
em nossa casa escorpiões boiavam.

Não tem lápide pra dizer quem fomos –
em brancas nuvens não passou nossa vida?

Estávamos e não estávamos vivos –
cortou-nos a morte o fio indeciso.

ATÉ NO MEIO da maior feiura,
da maior tristura,
os cães correm balançando o rabo
(e se não o têm assim mesmo o vemos):
nos descampados,
nos cemitérios mais, mais pobres,
nas ruínas
de um lugar, uma vila,
seguindo um cortejo humilde,
uma folia de reis e em tempos subsequentes
também um carro de som, por exemplo.
Por algo menor ainda que isso:
um movimento humano mais amigo,
um homem que se aproxima de uma casa
para afiar uma faca, um carro entrando na garagem,
um carroceiro descarregando a caçamba,
onde às vezes os cães desfilam como príncipes.

Uma festa
é um homem sentar-se no chão para tirar as botas
ou umas crianças correrem atrás da bola
(elas também correm atrás da bola pelas ruínas
se for o caso).
Quando seus donos moram na rua,
é preciso que se diga, parecem
ainda mais felizes.
Se há uma coisa que me faz lembrar o que é vida,
é a imagem deles alegres com os movimentos
de que esperam vir um tesouro –
não se descarte nem mesmo o andar
furtivo de uma barata.

Mas sua evolução milenar não lhes dera meios de se proteger
de seu maior inimigo,
não tinham entrado nos cálculos de Darwin
adventos como a rinha, o envenenamento e outros
impublicáveis;
podem então se enganar com a agitação promissora
e num desfecho trágico levar um tiro? Ah podem,
e com o tiro mais fácil, vão-se enganando mais –
de que lhes vale morder, latir, ouvir
a luz chegando?
Há uma defasagem.
A experiência contínua nem por isso
despertou neles a malícia, um novo órgão
defensivo, um veneno mortífero que fosse.
Mas iludidos ou não iludidos,
perfeitamente apreensível é o momento em que
começa sua bela expectativa.

 

 

A palavra delírio
Dentro dela há lírio
e os lírios não trabalham
nem fiam;
evoca delíquio,
delir de forças
para a falsa vida;
também vejo Íris,
doce amiga;
e íris-luz,
olho, arco-íris.

Por rima e algo mais
de delírio salto para exílio;
mas eu ia esquecendo
não menos, não mais
importante: delírio
é primo de lírica,
num como noutro
o mundo está e não está.

 

MATAR UM LEÃO por dia
receber a pena infinita das galés –
quando isso acabou? quando vai acabar?
Ganhar a vida é uma expressão
para os que pegam no pesado;
quando mal a ganham, mesmo se a luta
é renhida, chamam a si mesmos
“os sobreviventes”.

A vida promete, promete
ela exige, como Salomé, a cabeça
de quem a quer,
exige que lhe matem
feras terríveis, hidras de Lerna
e talvez aí ela se entregue, para logo
escapar das mãos como uma coquete.

A vida nunca está ganha;
dinheiro que é bom dá em árvore –
tem sentido essa ilusão das crianças.

 

Segredo
Mal não havia, quem haveria de implicar
com o singelo sonhador? Pois implicavam,
por exemplo a mulher, pé-de-boi, implicava,
vergando com as contas, com a inflação:
“Fracassado, é um fracassado! Um banana
que não presta pra nada,
pra nada! e ainda tem a boca boa, viu?
Só ver o prato que ele come”.

Ele tinha uma caixinha
no fundo do fundo do seu guarda-roupa —
roupa mesmo era pouca, quase que só servia
de fachada para a caixinha
aproveitada de algum escasso presente.
Veio um dia e morreu, e enquanto
esperavam-lhe o corpo esfriar,
o coro choroso das visitas lembrava:
“Nunca fez mal a uma mosca!”.

Dia seguinte foram abrir o escrínio,
não esperavam encontrar nenhum tesouro
mas queriam ser surpreendidos, foi como um
anticlímax:
uma pequena mecha de cabelo
ruivo, enrolada em crepom azul,
parafusos roliços, antigos
como os cruzeiros, e uma folha de carta
amarelada, dobrada em quatro:
Seu menino não vem amiúde para as aulas. A senhora deve saber como ele gosta de fazer castelos. Quando aparece, toma um assento no fundo, mal olha para a lousa, pois a janela é a sua lousa. Quando não é isso, entretém-se desenhando aviões – ele sempre fala em ser piloto. É motivo de caçoada entre os colegas mais maliciosos e é também por isso que nunca lhe tomo a lição diante dos outros. Se o filho do zelador não fosse seu amigo, ficaria sempre sozinho no pátio, como às vezes fica, retraído, sentado num canto descoberto para se aquecer no sol das nove horas, quando temos o recreio. Sei que é um menino bom e é por isso que me aflijo por ele. O que vai ser dele quando já for um homem e precisar ganhar a vida, o mundo? Venha quando puder, terei muito gosto em ajudar a senhora. Respeitosamente, professora Orides.

 

Antrozoo
Se quiserem forçar a barra comigo, aí que não vou mesmo, um mínimo movimento em falso, o que fazem toda hora, e vou pro meu canto – uns dizem que sou intratável, outros que sou delicado demais, que engano bem nesse meu tamanhão. Fico na gruta até passar o vozerio inútil, aquelas palavras de ordem, aquela gente que, contra toda a advertência afixada sobre minha personalidade, me pede pra fazer gracinha, me joga farelos coloridos. Que humanidade ridícula. Sento na pedra e apoio a cabeça na mão e uns me apontam: “Parece o pensador!”. Nem sei quem é, deve ser alguém exausto como eu. Com um pouco de pena dos que me vêm e por certo senso de responsabilidade – já que não deixo de ser um funcionário aqui, e a plateia pagou o seu bilhete e coisa e tal –, então ainda fico mais um pouquinho além da minha paciência. Esse pessoal não suporta uma cena sem movimento; em vez de contemplarem a árvore minha amiga ao lado da gruta, velha dama de porte magistral, dedos nodosos e respeitáveis, mais antiga que este parque, não!, querem ver o macaco dançar; não sei como já não trazem um chicote pra ficar estalando de longe e me assustar. Assustavam nada, é uma gente frouxa.

Espectadores insolentes, minha caverna é uma trava em seu olhar! Se fico na entrada da minha toca, mais inacessível, logo os vejo formar uma fila meio oblíqua no canto oposto, esticar a cabeça, se apoiar na ponta dos pés; quando volto, se realinham, um por um, de frente para a grade. Penso em ir e voltar cada vez mais rápido e depois tirar um sarro de seu balé ridículo – “quero ver, mãe, o macaco!”, a mãe levanta a criança, esta enfia os pezinhos pela grade, uma mão a segura, outra retém um saco de pipoca, que aliás não para de crescer desde que cheguei aqui. Os paparazzi, palavra com que ouvi alguns ironizarem a si mesmos outro dia, seguram aquela maquininha no alto, parece que não têm mais óculos, mais olhos, mais nada. Que pena eu não ter uma dessas, é tudo tão unilateral. O fato é que as mãos nunca estão vazias e rentes ao corpo; fazem um tchutchu com a boca para me chamar –que que é isso, não se humilhem assim, por mais infelizes que sejam, isso me parte o coração! Mais ou menos.

De nossa ampla repartição observamos vocês – agora estão vindo com máscaras, que lhes aconteceu? O leopardo lá na outra esquina, meio paranoico, ficou agitado com essa novidade. Ele prevê que vai ser só assim daqui pra frente. Às vezes nos deixam sair uns minutos da cela, um carcereiro camarada destrava o portão. Ah sim, tem umas mais arejadas agora, onde a gente pode fazer movimentos mais próximos do que fazíamos, e são providas de pequenos lagos artificiais e tudo que for possível para termos a ilusão de que nada mudou desde que fomos deportados. Nossos filhos não têm o passado que tivemos, percebo como seus gestos são mais vagarosos, já não saberiam correr tanto como nós em nossa jeunesse dorée. É toda uma potência que foi constrangida, mas está lá, eu sei. Lamento que já nasçam sem ver o horizonte que um dia pude ver.

Como os presidiários, improvisamos e temos nossa forma de socializar e se divertir. Como eles também ficamos cínicos, afora alguns e algumas incuravelmente delicadas, como é o caso das girafas, tão alheias a tudo. Pensamos às vezes em rotas de fuga, na verdade estamos em comunicação por um sistema secreto que desenvolvemos. Na hora H desistimos de fugir. Sempre lembramos de um leão que escapou sozinho e nos advertiu, quando de volta e já nas cordas: “Lá fora é assustador, já não aguentava mais; aqui nos dão alimentação e tratamento de saúde, física e até mental; nos alimentam direitinho, mais de uma vez ao dia, e raramente sofremos alguma intoxicação; além disso, temos silêncio à noite para dormir –silêncio lá fora vale ouro, viu? –, e uma bela vegetação. Eles estão soltos, mas poucos têm essas coisas que temos, de que adianta? Somos privilegiados, imaginem. As gaiolas em que os homens metem os de sua espécie são indescritivelmente horrorosas, muito, muito piores que os zoológicos onde encerravam nossos antepassados”. Só para lembrar o que já mencionei antes, nosso espaço aqui se ampliou e melhorou com o tempo em razão dos métodos ilusionistas, com algum efeito sobre nós, mas com efeito tremendo sobre esses espectadores idiotas, entre os quais uns um pouco mais sensíveis, apaziguados na culpa de nos verem presos.

Quando finalmente a turba vai embora, alguém de nós pode gritar de sua cela, dizendo algo como: você viu aquele de barba vermelha? Passou por aí? Passou? Insensível como uma abelha, jogava pedrinhas em mim pra ver se eu acordava. Descia até o pescoço aquele pano patético meio colado na cara só pra dizer: ei, ei, vem, vem! Que espetáculo! E como as crianças berram cada vez mais alto ao longo dos anos. Antes acordava cedo para recebê-las, hoje fico apavorado. Chego a arreganhar os dentes só pra ver se os pais se mancam. Se mancam nada.
Dava tudo pra que amanhã não fosse sábado.
Ouvi que fecharão aqui de novo.
Está melhor que a encomenda.
O que acharam daquele carcereiro que começou hoje? Mal-encarado.
Meio mal-encarado.

 

Curiosa mudança
Era uma vez um alfaiate conhecido em todo o reino não apenas pela excelência de seu corte, mas também por ser excepcionalmente fofoqueiro. Ocorreu que um dia esse homem foi convocado a estar na presença do rei para que lhe fizesse uma roupa especial, a ser usada numa grande comemoração. Recebido por um valete, foi aconselhado a aguardar na antecâmara real até que fosse chamado. Assim obedeceu à advertência, mas por um equívoco de audição supôs que o nome proferido no interior da câmara fosse o seu, quando na verdade o despótico rei (e o mais sanguinário de sua linhagem) se dirigia a um de seus três ministros supremos, que estavam com ele em seus aposentos. Desavisado, abriu a porta devagarinho, ainda temeroso de estar na presença do soberano, e eis que vê o que jamais poderia ter visto — que o rei tinha orelhas de burro! Sim, de burro, acreditem se quiser, esticadas para o alto, duras e peludinhas. O alfaiate, desamparado em sua visão, e completamente absorto naquela imagem que lhe parecia um sonho ruim, não pôde esconder sua presença indiscreta por muito tempo e, vendo-o, um dos ministros soltou um verdadeiro grito de horror, pois de fato acontecia o que jamais poderia ter acontecido – tinham combinado entre si que, antes que aquele plebeu fosse admitido entre eles, tomariam as devidas precauções para disfarçar o defeito extraordinário do eminente homem. Então, com o leite já derramado, ele foi convidado a entrar, de modo que pudessem censurá-lo severamente, mas com mais discrição, longe dos ouvidos palacianos.

Uma vez ali dentro, o pobre homem pôde contemplar um pouco mais de perto a miséria da condição real. O monarca era conhecido por ser um homem muito orgulhoso e insensível, mas de burro mesmo só tinha as orelhas, o que só agravava seu despotismo. Agora tudo ficava mais claro para o alfaiate, que entendia até mesmo por que ele, em suas aparições públicas, sempre usava uma espécie de turbante, hábito exótico naquele país, e mexia tão pouco o maxilar, quase como se tivesse a boca costurada – “Oh, não mexendo muito a boca, também não mexe muito o maxilar e então o músculo que a liga às orelhas, pois a existência destas certamente lhe é muito penosa”. Assim pensava, quando um dos ministros, não menos cruel que o rei, se dirigiu a ele com a seguintes palavras: “Infelizmente não pudemos evitar sua indiscrição, pela qual você já deveria pagar com a vida; mas, como precisamos de seus serviços, você será poupado. Só que veja bem, seu tagarela (todos ali conheciam bem essa outra fama do alfaiate), se abrir o bico, até mesmo a sua mulher e seus filhos, não teremos dúvida em mandar enforcá-lo!”. O pobre diabo jurou que assim o faria, tirou as medidas do rei, contendo-se muito para não explodir em risos, e então foi embora. Mas o pior aconteceria a partir de então, pois justamente por ser fofoqueiro era-lhe extremamente difícil guardar um segredo dessa magnitude, extremamente difícil! Era como se diz hoje “um babado e tanto”. Como não contar a maior anedota de toda a sua vida, a melhor e mais rara que viera a conhecer e que ainda por cima dizia respeito ao soberano maior, vivo e visível? A verdade é que o desejo de dar com a língua nos dentes e o medo de morrer disputaram por muito tempo o peito desse homem, até que ele tomou uma decisão que lhe parecia a mais razoável. Num dia, antes que o sol se derramasse pelas montanhas, se dirigiu a um descampado para além das portas da cidade, e ali cavou suficientemente fundo para despejar o que estava entalado. Gritou para dentro do buraco, a plenos pulmões, aquilo que preferia ter divulgado por toda a cidade. Não tendo se inibido ali, pôde lavar a alma! Então pôs a terra de volta e tomou o rumo de sua casa, sentindo-se muito mais leve. Mas a verdade é que os segredos têm suas artimanhas: tempos depois, nasceriam no local alguns salgueiros, e até hoje, quando a brisa balança suas folhas, pode-se ouvi-las dizer baixinho: “Matemos o rei, estamos sufocando”.

Vocês ficaram espantados com a impressionante modificação da frase original? Pois até hoje eminentes intérpretes debatem se ela se dera por intervenção da brisa e dos salgueiros já crescidos ou pela ação lenta de misteriosas forças sob a terra; outros já cogitaram se o alfaiate não teria mudado de ideia na hora de gritar, preferindo manifestar, já que o manifestava para um buraco, algo mais ousado, na verdade um desejo íntimo acordado justamente naquela grande oportunidade, desejo pelo qual se puniria, caso fosse revelado por aí, não apenas a ele, alfaiate, mas a toda sua geração. Houve ainda hermeneutas que defendessem até mesmo a hipótese, verdade que nada extravagante, de a alteração ter ocorrido por liberdades tomadas já na primeira tradução, aliás francesa, do século 18, logo que fora descoberto o manuscrito original que recolhia a narrativa em língua já extinta. Mas se trata de hipótese impossível de verificar, pois –difícil decidir se por sorte ou azar – o tradutor, erudito como poucos de seu tempo, fora o último a conhecer esse idioma, e com sua morte se tornava impossível conferir no original a veracidade daquele palpite. (reelaboração do conto popular “O rei que tinha orelhas de burro”)

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

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