A reconstrução do Ministério do Desenvolvimento Agrário

Imagem: Revac Film
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Por JEAN MARC VON DER WEID*

A construção do MDA de 2003 a 2016 e propostas para o novo Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável

Na instalação do novo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, há um mês, tentei fazer um apanhado da experiência que vivi desde a inauguração do primeiro Conselho do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) em 2004, até o seu fechamento em 2016, depois do golpe que derrubou o governo da presidente Dilma Rousseff.

Por outro lado, analisando a conjuntura deste terceiro governo do presidente Lula, decidi fazer uma ousadia e, à luz de 12 anos de experiência, sugerir algumas ideias sobre o papel que o novo Conselho deveria assumir. Espero que os atuais conselheiros entendam esta contribuição como algo despretensioso, sem intenção de dar lições para ninguém e que façam uso das ideias expostas se encontrarem algo que tenha significado a partir das suas próprias vivências.

A construção do Ministério do Desenvolvimento Agrário

A indicação do primeiro dos ministros do Ministério do Desenvolvimento Agrário na série de governos populares entre 2003 e 2016, Miguel Rossetto, não ocorreu sem algumas complicações e conflitos de bastidor. Miguel Rossetto foi o último dos ministros a ser nomeado pelo presidente Lula, depois de intensas negociações. Lula pediu aos movimentos sociais do campo que indicassem um nome de consenso e isto revelou-se impossível.

O MST indicou Plínio de Arruda Sampaio, secretário agrário do PT; a FETRAF indicou Sameck, militante do PT do Paraná, apoiado pelo antigo DNTR da CUT e a CONTAG indicou seu presidente, Manoel de Serra. Com o tempo passando e sem que surgisse um acordo, Lula optou por Miguel Rossetto em outra lógica, a de dar um ministério para a corrente mais forte da esquerda petista, a Democracia Socialista, desde que distribuísse os cargos mais importantes do ministério entre os movimentos sociais.

Miguel Rossetto assim o fez, entregando a SAF para Bianchini, ligado à FETRAF e apoiado por Graziano, o INCRA para um nome indicado pelo MST e a secretaria de crédito fundiário para um nome indicado pela CONTAG. Foi uma distribuição bastante desigual, sobretudo porque o recém indicado presidente do INCRA foi rapidamente substituído após um bombardeio político da direita. O MST adotou, a partir deste momento, uma política de não participação direta no governo ou no recém-criado Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável. A secretaria entregue à CONTAG tinha pouco peso e o grande vitorioso nesta distribuição acabou sendo a FETRAF.

Minha primeira impressão da nomeação de Miguel Rossetto não foi positiva. Considerei preocupante o fato do novo ministro, originário do movimento sindical petroleiro, não ter nenhum histórico de relação com os temas da ruralidade. Apesar disso, desde o primeiro contato com Miguel Rossetto, antes mesmo de sua posse, descobri um quadro político de altíssimo nível, preocupado em dominar a complexa agenda do seu ministério, conversando com os mais variados atores políticos, sociais e acadêmicos. Miguel Rossetto tinha uma qualidade rara. Era um político sabia perguntar, questionar as diferenças, formar uma opinião sobre os temas em debate e construir consensos para fazer andar a máquina pública. Foi, de longe, o melhor ministro que o Ministério do Desenvolvimento Agrário já teve e bem que poderia assessorar o atual.

A bem da verdade, o Ministério do Desenvolvimento Agrário herdou as principais políticas para o setor desde os tempos da criação do ministério, com FHC. Sem uma discussão maior sobre estratégias e modelos de desenvolvimento, o Ministério do Desenvolvimento Agrário se propôs a duas coisas: ampliar a reforma agrária e promover o desenvolvimento (de tipo convencional) da Agricultura Familiar via crédito facilitado.

Padecendo das limitações de ser parte de um governo com minoria no congresso, o Ministério do Desenvolvimento Agrário viveu as mesmas restrições vigentes no governo precedente para promover a Reforma Agrária e aplicou as mesmas “soluções”, num caso como no outro arrancadas pelas pressões das ocupações de terras. Os dois governos de Lula ampliaram os números de famílias assentadas, mas o aumento não foi espetacular, algo entorno de 20%. Prevaleceu a distribuição de terras via regularização fundiária ou via entrega de terras públicas, mais para colonização do que para reforma agrária.

Também continuaram a ocorrer desapropriações de terras entregues pelos próprios latifundiários. Os casos em que se poderia tipificar o uso de mecanismos redistributivos de terras via desapropriações ocorreram sobretudo nas ocupações. Travas impostas pela legislação e pela correlação de forças com o agronegócio se somaram com a recusa do governo de redefinir os indicadores do uso social da terra, temendo um choque com a bancada ruralista apesar desta medida ser administrativa e não do legislativo.

O poderio econômico e político do agronegócio definiu o tamanho e a qualidade da reforma agrária: ela se deu, principalmente, nas áreas mais frágeis do latifúndio, nas terras públicas ou em terras que já estavam degradadas. O quadro atual não é diferente, é até bem pior. A correlação de forças é ainda mais negativa e o governo dispõe de menos recursos, com o Estado quebrado por anos de má gestão e o orçamento cada vez mais fatiado para atender os interesses eleitorais dos congressistas.

A ação em favor dos agricultores familiares para promover seu desenvolvimento tinha um implícito, já existente no governo FHC: o crédito (e, mais adiante a assistência técnica e extensão rural – ATER) deveria facilitar o acesso dos agricultores familiares aos insumos ditos modernos (sementes melhoradas, adubos químicos, agrotóxicos e maquinário). Houve uma diferenciação de juros dos empréstimos para a produção alimentar e foi criado o seguro para cobrir o risco destes empréstimos.

O crédito foi mais facilitado e diversificado para melhorar o acesso para produtores das regiões nordeste e norte, ampliando muito o número de beneficiários e a distribuição pelas regiões. O PRONAF pode comemorar a incorporação de até (no momento mais positivo) alcançar pouco mais de 2 milhões de agricultores familiares. O volume de recursos de crédito subiu de 2 para 30 bilhões de reais por ano, muito embora a reconcentração dos recursos na região sul tenha ocorrido e o número de beneficiários tenha caído para menos de 1,5 milhão. O aumento dos valores de cada empréstimo indicou que a categoria de agricultores familiares conhecida como “agronegocinho” foi se apropriando da maior parte do crédito a partir de 2010.

Não se pode criticar apenas o Ministério do Desenvolvimento Agrário por esta estratégia de desenvolvimento, já que ela correspondia não só ao padrão do pensamento econômico dominante entre os técnicos (começando pelo todo poderoso assessor de Lula, Graziano), como às reivindicações dos movimentos sociais e as posições dos partidos de todo o espectro político. A crítica a este modelo de desenvolvimento estava centrada nos ativistas pela agroecologia, bastante minoritários embora bastante atuantes. No Ministério do Desenvolvimento Agrário havia um enclave pró agroecologia liderado por Francisco Caporal e que chegou a definir a política de assistência técnica e extensão rural em 2003, mas esta vitória foi sendo erodida pela predominância da visão convencional entre os quadros e a direção do DATER, pelo menos até a realização da primeira conferência de assistência técnica e extensão rural, já no governo da presidente Dilma Rousseff.

O impacto da política de crédito, somada à política de seguro e de garantia de preços, foi aparecendo ao longo dos governos populares, com a pauta de reivindicações por anistias e renegociações de dívidas tornando-se a mais importante nas tratativas entre os movimentos e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Com o passar do tempo parte dos movimentos, em particular os da Via Campesina, passaram a se definir por outra estratégia, a promoção da agroecologia, mas isto não chegou a se refletir nas pautas de negociação e muito menos nas próprias políticas.

Tomando os resultados da aplicação destas políticas em termos genéricos podemos constatar duas coisas importantes: (i) a diminuição do número de AF que aparece entre os censos agropecuários de 2006 e 2017, da ordem de 400 mil famílias, apesar de perto de 500 mil famílias terem sido assentadas neste intervalo. Estes números indicam uma evasão do campo de quase um milhão de AF; (ii) a diminuição da oferta de alimentos pela AF, reduzida hoje a pouco mais de 25% (em valor) do total.

A formação do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável e sua atuação nos governos populares

A estrutura do conselho foi montada pelo governo e foi sendo alterada ao longo dos anos para incorporar alguns setores, em particular a juventude, as mulheres, e os povos e comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas e seringueiros, entre outros), na mesma medida em que foram sendo criadas secretarias do ministério para cuidar destes tópicos. É interessante notar que a iniciativa da criação de comitês temáticos sempre ficou nas mãos das secretarias do ministério. O DATER criou o comitê de assistência técnica e extensão rural, a secretaria de desenvolvimento territorial criou o comitê de mesmo nome, e por aí seguiram-se a criação dos comitês de juventude etc. Houve duas exceções a esta regra: (a) o comitê de agroecologia, impulsionado por iniciativa de Caporal, não correspondia a nenhuma secretaria; (b) nunca foi formado um comitê de crédito, que era, de muito longe a política de maior relevância no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Estes dois casos merecem uma análise mais profunda.

O Comitê de agroecologia surge pelo impacto do seminário nacional de assistência técnica e extensão rural, organizado por Caporal em 2003 e que criou o PNATER e o PRONATER, ambos definindo a agroecologia como orientação estratégica, isto antes mesmo da criação do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável (em 2004). Caporal abandonou o comitê de assistência técnica e extensão rural para os quadros mais convencionais do DATER (ao qual ele estava ligado), por considerar que a agroecologia devia ser uma proposta transversal, orientando todos os comitês e, portanto, todo o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Por um tempo, ele conseguiu recursos para manter as reuniões deste comitê, mas pouco a pouco foi perdendo espaço, enquanto o comitê de assistência técnica e extensão rural, com o apoio de Argileu (coordenador do DATER, departamento vinculado à SAF), seguiu se fortalecendo e ignorando as decisões radicais do seminário de 2003.

O comitê de agroecologia, do qual eu fiz parte até a sua dissolução, tratava de todos os temas de política pública para a Agricultura Familiar, o que cobrava um enorme esforço de elaboração que dependia de aprovação dos outros comitês temáticos e da plenária do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável para se tornar uma proposta para o Ministério do Desenvolvimento Agrário. A prática mostrou que a capacidade dos participantes deste comitê era muito insuficiente para influenciar os outros comitês. Seria preciso uma dupla militância dos quadros do comitê de agroecologia para poderem levar suas propostas para os outros comitês e isto não aconteceu.

Poderíamos ter reduzido as ambições originais deste comitê e buscado a formulação de um programa específico para a agroecologia, sem a pretensão de influenciar o conjunto das políticas, mas não era a visão do Caporal, nem de ninguém deste grupo. Este erro eu custei a perceber e ele voltou a se manifestar mais adiante quando foram criados o PLANAPO e o PNAPO, no governo Dilma. O comitê de agroecologia foi se esgotando por falta de apoio para Caporal e pela percepção dos participantes da sociedade civil de que tínhamos que levar a proposta agroecológica diretamente para os outros comitês, em particular o de ATER.

O comitê de crédito não foi formado porque não houve apoio do responsável pelo PRONAF. João Luiz Guadagnin preferiu criar um grupo de discussão do crédito por fora do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável, convidando para participar apenas os representantes dos movimentos sociais (incluindo o MST, que não fazia parte do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável). Guadagnin fez isso com tal discrição que o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável levou muito tempo para se tocar da existência destas consultas. A proposta de criação de um comitê de crédito foi aprovada em plenária do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável pelo menos três vezes, mas estas resoluções foram sendo dribladas pelo PRONAF e ele nunca chegou a ser criado. Este fato mostra duas coisas que deveriam ser retidas pelos participantes do novo Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável:

(1) propostas, mesmo se aprovadas pela plenária, não tinham peso se não fossem cobradas por entidades de maior envergadura, como os movimentos sociais do campo. Como estas estavam participando do grupo de consultas de Guadagnin, preferiram não botar pressão para a criação do comitê e, apesar dos meus protestos, o peso de uma ONG como a AS-PTA ou de uma Articulação como a ANA, não era suficiente.

(2) o funcionamento do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável esteve fortemente sujeito aos interesses do governo. Quando interessava a um setor do ministério a criação de um comitê temático com a sociedade civil ele passava a existir, garantindo recursos para operar e tomando decisões que as secretarias e departamentos levavam em conta. Quando não havia este interesse as coisas não andavam. Por outro lado, os representantes do governo no conselho viviam contendo qualquer manifestação de crítica às suas políticas, muitas vezes com a anuência de conselheiros da sociedade civil que temiam que as eventuais críticas virassem munição para a direita. O comportamento dos representantes governamentais e o de muitos da sociedade civil aponta para uma (a meu ver) incompreensão do papel do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável. Vou discutir este ponto mais adiante, no item sobre propostas para o atual conselho.

Esta questão da institucionalidade do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável e do seu papel nas relações com o ministério se manifestou em outros momentos. Eu diria que durante o governo Lula o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável esteve quase totalmente a reboque das iniciativas governamentais. O caso do seminário de ATER que definiu uma orientação política que não tinha respaldo entre a maioria dos técnicos do governo foi uma exceção à regra, mas mesmo neste caso, a iniciativa esteve na mão de um técnico governamental, Caporal.

Na maior parte do tempo de sua existência nos governos de Lula, o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável se ocupou da organização da primeira conferência nacional de desenvolvimento rural. Durante a preparação houve um choque na comissão de elaboração do texto base e que se prolongou até a realização da plenária final. Algumas entidades da sociedade civil procuraram colocar em discussão os impactos e problemas constatados na aplicação das políticas e o governo atuou com mão pesada para evitar que isto acontecesse.

Na segunda conferência (já no governo Dilma), a construção do texto foi feita a partir dos debates na base e o resultado foi surgirem mais críticas às concepções da proposta de desenvolvimento (agroecologia versus desenvolvimento convencional) e às políticas em curso. No entanto, como a edição das resoluções ficou sempre na mão dos agentes do governo, estas posições foram sendo edulcoradas à medida em que os textos iam sendo modificados em cada etapa do processo.

Avaliando este exercício de realização da conferência, adianto que o resultado ficou muito aquém do esforço, e não só pela intervenção pesada do governo. Não posso dizer que seja um esforço inútil em todos os casos pois muita gente considera que as conferências de segurança alimentar, de meio ambiente e de saúde foram sempre muito importantes para balizar as políticas públicas. Mas no caso específico das conferências de desenvolvimento rural, posso dizer que o resultado foi a produção de muita papelada e muito pouca influência na ação do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Após a dissolução do comitê de agroecologia, consensuada entre todos os membros do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável quando Caporal se afastou durante o segundo governo de Lula, a maior parte dos militantes da sociedade civil vinculados a este tema se transferiu para o comitê de ATER ou passaram a pressionar (sem resultado, como já foi dito) pela criação do comitê de crédito.

No último ano do governo Lula, o DATER elaborou o projeto de lei de ATER, sem discutir com o comitê do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável, levando-o diretamente para a Câmara de Deputados, onde existia uma bancada de ex-funcionários das EMATER, em contato e colaboração com o diretor do DATER, Argileu. Com o fato consumado, o comitê ficou paralisado, mas o grupo da sociedade civil vinculado à ANA pressionou o DATER para introduzir algumas modificações no projeto, a serem negociadas com o relator, um deputado do PT da Bahia. Fizemos apenas 4 emendas que foram aceitas pelo DATER e pelo relator. A mais importante cobrava a realização de uma conferência de ATER a cada quatro anos, no começo de cada governo, para formular o programa quatrienal de extensão rural. Esta conferência deveria ser organizada pelo comitê de ATER do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável.

A lei de ATER começou a vigorar no último ano do segundo governo Lula e logo apareceram enormes conflitos entre o formato dos projetos exigido pelo governo e a prática de promoção do desenvolvimento adotada pelas ONGs de ATER, em particular as vinculadas à ANA. Estava em jogo a forma de operacionalizar a política e não a política em si.

Com a chegada de Dilma ao governo em 2011, estava em curso a preparação da conferência de ATER, mas as dificuldades da transição do novo governo, com um ministro do MDA que durou menos de 7 meses, levaram o DATER a ir adiando a conferência e acabando por propor que ela fosse realizada como parte da segunda conferência de desenvolvimento sustentável, marcada para maio ou junho de 2012. O comitê de ATER protestou e cobrou, até por força da lei, que a conferência se realizasse o mais rápido possível e o DATER marcou-a para setembro.

A preparação desta conferência deu lugar a um novo tipo de relação entre o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável e o governo. A queda de braço foi entre a intenção governamental de discutir a generalidade da política e a da sociedade civil que focava na operacionalização da política. Este impasse foi levado até a própria realização da conferência, onde formou-se uma frente das 12 maiores entidades da sociedade civil, inclusive todos os movimentos sociais e identitários, que liderou os GTs e as plenárias e conseguiu impor a sua agenda.

O novo ministro do MDA, Pepe Vargas, entendeu o recado e criou, imediatamente após a conferência, um grupo de trabalho operacional (GTO) que passou a reelaborar, junto com os técnicos do DATER, a forma de operar a política. Nem tudo foram flores apesar de um sincero esforço de busca de entendimento e acordo. A política de ATER continuou, a meu ver, travada por uma série de problemas, alguns vinculados às próprias definições contidas na lei. É algo que o novo Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável deveria ser preocupar em resolver.

Conclusões e propostas para o novo Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável

Durante os 12 anos dos governos populares, o MDA deu sequência às políticas definidas no governo de FHC, sobretudo no que tange a mais importante delas, pelo volume de recursos e pela abrangência dos beneficiários, o crédito. Isto foi feito de forma coerente e abrangente embora desigual. Os tomadores de crédito chegaram, no auge do processo de diversificação, a pouco mais de 2 milhões, enquanto os beneficiados pela assistência técnica, com recursos federais, a perto de 500 mil. No entanto, a assistência técnica oferecida pelas EMATER estava em consonância com o projeto federal e deve ter beneficiado pelo menos mais um milhão. Estes dados são um tanto confusos porque os recursos do DATER foram divididos entre as entidades não governamentais e as públicas estaduais.

A SAF, ao longo deste período, criou outras políticas complementares, sendo a principal a do seguro e ajudou a formular as políticas de compras governamentais, cuja execução estava no MEC (merenda escolar) e no MAPA (PAA). A orientação geral destas políticas, como já foi dito antes, era a promoção do modo convencional de agricultura, baseado nas técnicas da chamada revolução verde. Embora, na análise de sustentabilidade econômica, social, ambiental e energética este modelo seja incorreto, não havia consciência deste fato nem no governo nem nos movimentos sociais e na maioria das entidades não governamentais. Esta consciência foi sendo adquirida ao longo destes anos, mas não a ponto de influenciar as políticas em curso.

Esta situação parece ter mudado, pelo menos se considerarmos as definições adotadas pelo grupo de transição. Formalmente, pelo menos, a agroecologia passa a ser o modelo de desenvolvimento a ser promovido. Entretanto, a transição não indicou como é que deverão ser orientadas as políticas para que este objetivo seja alcançado.

Até agora, o MDA não realizou uma avaliação da situação da agricultura familiar após pouco mais de 12 anos de governos populares e quase 7 anos de desgoverno neoliberal. Também não se debruçou na análise das políticas aplicadas no passado para avaliar o seu papel no quadro atual da AF. Finalmente, ainda falta neste governo uma definição de objetivos mais concretos e de metas para o MDA nos próximos quatro anos. Estes exercícios estão por ser realizados e o que está ocorrendo é a mera continuidade das políticas anteriores. Tudo isto é preocupante porque este novo MDA já tem 8 meses de existência e parece estar atuando de forma errática, discutindo projetos específicos sem um plano coerente para orientar o conjunto.

A meu ver, já que o MDA não toma a iniciativa de fazer este esforço de planejamento acima indicado, o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável tem o papel de cobrá-lo e dele participar.

Neste esforço de definição de objetivos e metas é preciso levar em conta a diversidade da realidade da AF no Brasil. Apesar da definição em prol da agroecologia como objetivo geral no grupo de transição (me pergunto se o ministro está consciente disto), o MDA não pode produzir apenas políticas para a promoção da agroecologia. Por um lado, isto seria ignorar uma parcela grande de agricultores que adotaram as práticas do agronegócio (uns 500 mil AF) e que não conhecem, não confiam ou não sabem como adotar a agroecologia. Por outro lado, mesmo se todos os 3,8 milhões de AF estivessem dispostos a adotar a agroecologia, faltam recursos, sobretudo humanos, mas também materiais, para que isto possa acontecer. Existem poucos técnicos formados nas práticas e métodos da agroecologia, e mesmo se for adotada uma política intensiva de formação não se pode esperar que este problema esteja resolvido neste governo.

Em outras palavras, vai ser preciso orientar e dimensionar cuidadosamente as políticas de promoção da agroecologia e manter políticas mais convencionais para os que não querem, não conhecem ou não sabem como aplicar este paradigma.

Já escrevi sobre estas propostas em outros artigos, uma série intitulada “Um novo lugar para a agricultura”, e não vou repetir aqui.

Resumindo os artigos mencionados:

Acho que o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável deveria criar um comitê de crédito e que este deveria formular uma linha de financiamento convencional, mas com estímulos para a adoção de algumas práticas da agroecologia, desde que seja possível orientar a política de ATER para apoiar estes agricultores nas escolhas e aplicação destas práticas. O modelo prático a ser adotado deveria ser o de promover a substituição do uso de insumos químicos e a adoção de adubos e controles orgânicos. Também deveria ser proposto um crédito para os produtores orgânicos e agroecológicos que já realizaram a transição (uns 70 mil AF).

A agroecologia pode ser a orientação adotada na promoção dos “quintais produtivos”, projeto já anunciado pelo MDA na marcha das margaridas. O público-alvo desta operação chega a 2,3 milhões de mulheres, pertencentes ao grupo de AF caracterizado como minifundista e fortemente concentrado no Nordeste e no Norte. Existem inúmeras experiências, em todos os biomas, mas sobretudo no Nordeste, com resultados muito interessantes.

A prática mostra que este programa não pode estar baseado em crédito, já que o resultado mais importante dos quintais agroecológicos é a autossuficiência alimentar das famílias, com ou sem a venda de excedentes nos mercados locais. O financiamento (a fundo perdido, mas que pode reverter para Fundos Rotativos Solidários nas comunidades) de infraestruturas nos quintais é uma parte fundamental para o sucesso destes empreendimentos, sobretudo as hídricas, mas não só. E os valores atribuídos no projeto definido pelo governo são muito insuficientes para as necessidades apontadas pela experiência.

A formação de técnicas de ATER para apoiar as mulheres agricultoras vai ser fundamental e, como já foi apontado, elas não são numerosas. Vai ser preciso um intenso processo de formação e deveriam ser aproveitadas todas as experiências bem-sucedidas e que deveriam ser sistematizadas e transformadas em manuais práticos para guiarem as técnicas de ATER. Nunca é demais lembrar que a grande maioria das experiências em curso foi feita em colaboração com as entidades da AF e que o trabalho em grupos de mulheres interessadas é muito mais profícuo do que na assistência técnica individual.

Finalmente, cabe discutir como fazer a promoção da agroecologia para AF tradicionais, mas não minifundistas. A meu ver o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável deveria reforçar uma experiência que já tem uns 10 anos, o projeto Ecoforte, patrocinado pelo BNDES e pela Fundação Banco do Brasil. O princípio básico deste projeto é alocar recursos para todos os fins necessários na promoção do desenvolvimento agroecológico em um só lugar: projetos integrados de tipo territorial. Os operadores destes projetos não precisariam buscar recursos em cada uma das políticas (de ATER, de crédito, de seguro, de fomento, de pesquisa, de acesso ao mercado, de beneficiamento entre outras).

Todos estes recursos estariam previstos nos orçamentos de cada projeto. Os recursos deveriam ser acessados através de chamadas para projetos que deveriam ser formulados por entidades dos AF e pelo menos uma entidade de ATER, embora outros tipos de entidades possam ser integradas nos projetos, como especialistas em gestão, ou em pesquisa, por exemplo. Estes projetos poderiam ser apoiados pelos NEA, os núcleos de ensino e extensão em agroecologia, que tem hoje 126 grupos em muitas universidades e escolas técnicas. Não é preciso dizer que os valores de cada projeto no Ecoforte deveriam ser redimensionados e os recursos disponíveis muito ampliados para beneficiar uns 200 mil AF nestes quatro anos.

Recordando o já colocado acima, o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável vai ter que fazer uma profunda revisão da forma de operacionalização da ATER, se necessário reformulando a legislação de assistência técnica e a lei que instituiu a ANATER, Agência Nacional de ATER.

Existem muitas outras políticas que devem ocupar a atenção do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável, em particular as que deverão se voltar para o apoio a populações específicas como indígenas e quilombolas e setores específicos como a juventude ou os assentados da reforma agrária, que tem particularidades a serem contempladas. A meu ver estas outras políticas deveriam ser transversais com as citadas acima, mas afinadas para cada público específico.

Finalmente, quero encerrar esta contribuição chamando a atenção para a necessidade de uma aproximação entre o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável e outros conselhos, em particular o CONSEA e o conselho do PNAPO. No primeiro caso vai ser preciso integrar as preocupações do Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável com a promoção do desenvolvimento da AF com as do CONSEA com a promoção da segurança alimentar. Se o MDA adotar a proposta que adiantei acima de dar uma forte turbinada no projeto dos quintais produtivos, a interrelação com a segurança alimentar é o foco maior em comum, mas o CONSEA está preocupado com o aumento da oferta de alimentos saudáveis para o conjunto da população e isto deveria ser uma das preocupações centrais na formulação das políticas do MDA.

Já a relação com o conselho do PNAPO tem a ver com o fato de que este conselho trabalha com o conjunto de todas as políticas que podem afetar, positivamente ou negativamente a adoção da agroecologia no Brasil. Como as principais políticas que podem promover ou atrasar a promoção da agroecologia são decididas no MDA, sejam elas o crédito, a ATER, as compras governamentais, o seguro, o beneficiamento ou os preços mínimos, as decisões do conselho do PNAPO terão que passar pelo Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável.

Seria melhor que não houvesse esta dupla responsabilidade, mas ela é herança de histórias do passado e não há como apagá-las. Trata-se de uma dicotomia institucional que o Conselho nacional de desenvolvimento rural sustentável e o conselho do PNAPO terão que resolver.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).


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