A reorganização da resistência palestina: a decadência do AL-Fatah

Imagem: Chrisna Senatus
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Por MURILO AMADIO CIPOLLONE* e LUCAS OLIVEIRA MENDITI DO AMARAL**

O povo palestino vê-se constrangido pelas próprias fricções e sectarismos de um povo sociologicamente complexo

Introdução

Neste artigo, pretendemos nos debruçar sobre a reorganização da resistência palestina pós-Nakba (pós-1948), seguindo, mais precisamente, o caminho da Organização para a Libertação Palestina (OLP) e do seu principal partido, Al-Fatah. Entretanto, falar em reorganização pressupõe a existência de uma resistência anterior que fora sufocada e destruída, necessitando, assim, reorganizar-se. Partamos, então, do auge da resistência palestina antes de sua desorganização: a Revolta de 1936.

Diante da crescente ameaça sionista e da inação do Império Britânico, os palestinos começam a realizar levantes contra a ocupação judaica. Não obstante, foi com a grande Revolta Árabe de 1936 que teve início a resistência palestina armada. Os palestinos, impulsionados pelo assassinato de uma importante liderança em 12 de novembro de 1935, o Sheikh Izz al-Din al-Quassam, se revoltaram contra o Império britânico esperando alcançar a sua independência nacional e demonstrar sua aversão ao estabelecimento de um “lar nacional judeu” na Palestina[i]. O movimento escapou da própria liderança árabe, sendo que os camponeses deram à revolta a forma de uma insurreição armada, na chamada Jihad sagrada do campo[ii].

Os ingleses esmagaram a revolta brutalmente com um combate que durou 3 anos. As tropas britânicas explodiam casas, caçavam e matavam todas as lideranças palestinas; muitos aldeões foram presos, feridos ou mortos e todas as unidades militares palestinas foram sucateadas[iii]. Com isso, o império colonial teve sucesso em desorganizar a resistência palestina armada; isto é, as lideranças foram mortas, as já poucas armas tomadas e os possíveis combatentes mortos, de tal sorte que na Nakba, em 1948, as forças palestinas estavam exauridas e precisariam ser reorganizadas para lutar contra o empreendimento colonialista sionista.

Ora, mesmo que o objeto desse artigo seja outro, é de bom tom registrar que a resistência palestina se inicia no mesmo momento em que as investidas sionistas na Palestina surgem na história. Nesse sentido, boa parte da luta anticolonial do povo palestino nas primeiras décadas da colonização, antes da Nakba, pois, tratou de não só resistir a tomada de suas terras, mas também de afirmar a sua própria existência enquanto grupo étnico, de forma a enfrentar um dos alicerces de todo a época do colonialismo: a terra sem povo. No caso da colonização israelense, se construiu o mito fundante da terra sem povo para o povo sem terra, da nação judaica ultra tecnológica no atrasado deserto do oriente médio. Daí o uso da bandeira palestina e da kufiya na luta organizada o povo palestino e nos movimentos de solidariedade internacional.

Já sem a posse de 78% de suas próprias terras, a resistência palestina teve de se estruturar não apenas para promover o processo de proteção do território remanescente, mas, em primeiro lugar, de retorno à totalidade da Palestina histórica. Cuida-se da reorganização de sua resistência.

Ser Palestino pós-1948

De acordo com Edward Said[iv], ser palestino depois da Nakba é viver em um lugar que não existe no real, ou seja, é viver em uma utopia. Esse fator utópico se revela nas próprias políticas de Israel que, quando não está dizimando ou expulsando o povo palestino, trata os palestinos como se não estivessem lá, como se não existissem. Ser palestino é lutar por um lugar que não existe mais.

Portanto, desde que foram expulsos de suas terras, os palestinos estão privados de se perfazer enquanto povo e enquanto indivíduos. Contudo, o povo palestino insiste dolorosamente em calçar seu caminho de retorno ao espaço que os completa e determina enquanto sujeitos e enquanto pessoas. Tal luta se realiza no objetivo perene de conquistar um território ancestral que, ao mesmo tempo, é também um território novo.

As terras da Palestina histórica, assim, revelam-se, como um lugar de retorno – retorno para sua terra, sua herança, sua cultura etc. –, mas se revelam também como aquele lugar que permitirá a criação de uma nova experiência histórica. Interessante notar, pelo tanto, que toda experiência de resistência reflete, de algum modo, essa dualidade de aspirações. É o que registra Edward Said[v]:

Um refugiado da Galileia ou de Jafa que vive no Líbano ou no Kuwait pensa, em primeiro lugar, naquilo que ele perdeu quando partiu em 1948 ou depois; ele quer ser levado de volta ou lutar pelo caminho de volta à Palestina. Ele quer retornar. Por outro lado, o palestino que mora em Gaza, Nazaré ou Nablus enfrenta ou, de certo modo, esbarra todos os dias com um poder de ocupações, com seus símbolos de autoridade, com seu domínio incontrolado; ele quer que esse poder seja removido […] Ele quer o novo. Um palestino quer mudar, o outro quer permanecer, mas ambos querem uma mudança radical.

De todas as experiências de resistência palestina pós-1948, talvez a OLP seja a mais proeminente na história (com a constante dominância do Al-Fatah), sendo assim, passemos ao exame dessa experiência.

Organização para a Libertação da Palestina OLP)

A OLP tem protagonismo inegável na organização da resistência palestina. A importância dela vem do papel fundamental não só para os palestinos que ainda residem na Palestina, mas também aos exilados. Após a Nakba, as lideranças palestinas foram exiladas e passaram a tentar se reorganizar a partir do exílio em países como Egito e Líbano, sendo que já em 1964 é criada pela Liga Árabe a Organização para a Libertação da Palestina, ou OLP, com base na resistência legítima contra a ocupação da Palestina Histórica por uma força militar estrangeira.

A OLP fez um grande feito nesse sentindo, pois, em um cenário de imensa fragmentação do povo palestino, conquistou o apoio e a solidariedade de amplas camadas da população mundial e foi, desde 1964 até 1988, a organização da resistência palestina mais proeminente e oficialmente reconhecida tanto no mundo árabe quanto internacionalmente[vi]. Para além disso, a OLP é considerada como porta-voz e representante do povo palestino, com isso, a OLP é a principal responsável por fazer com que a Palestina e seu povo reaparecesse no cenário internacional e na opinião pública, enquanto povo resistente. Said[vii] resume a questão:

Em suma, o papel da OLP é representar os palestinos como nenhuma outra organização poderia (e, também nesse ponto, a OLP abre espaço para qualquer palestino em qualquer parte; essa é sua realização mais importante); e, além disso, apesar das deficiências de suas políticas ou lideranças, seu papel é manter viva a causa palestina, algo maior do que organizações ou políticas provisórias.

Mais que isso, a OLP também foi responsável por realizar uma mudança de eixo no foco de atuação da resistência; por esses termos, a luta passou a ocorrer também dentro dos territórios ocupados, e não apenas nos países fronteiriços do território palestino ocupado, Israel. Além disso, com a liderança do Al-Fatah, a OLP passou a se organizar em diversos países onde existiam acampamentos de palestinos – algumas vezes se constituindo mesmo como um poder paralelo e atuando muito mais como um Estado propriamente do que como um movimento nacional de libertação e resistência.

Por fim, cumpre salientar a estrutura da OLP. Assim, tem-se que além da liderança do Fatah, a OLP engloba o Exército Palestino de Libertação Nacional (EPLN) e os partidos da esquerda palestina, como a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e o Partido do Povo Palestino (PPP), antigo Partido Comunista Palestino (PCP)2. O trabalho agora deve se voltar, já que esse é seu recorte, ao Al-Fatah, que por muito tempo ocupou a parcela hegemônica e, pois, a direção da OLP [viii]. Vejamos.

Al-Fatah: líder da OLP

Al-Fatah surgiu em 1965 com um pequeno ataque a Israel, desde então, até meados da década de 1980 (em que o Fatah e as demais organizações nacionalistas da OLP entraram em decadência, cedendo espaço para um Islã político), o partido era o maior grupo de resistência palestina, liderado por Yasser Arafat[ix].

O Fatah se estrutura e compõe por um quadro militar e político que envolvia a maioria dos refugiados palestinos e dos viventes na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Ou seja, o Fatah fazia-se presente na quase totalidade do povo palestino, no exílio ou nos territórios.

Trata-se de uma organização nasserista, isto é, assim como Gamal Abdel Nasser fazia no Egito, o Fatah não tinha a pretensão de se resumir a um símbolo visível de autoridade, mas, sobretudo, de representar e organizar a gramática de uma filosofia nacional centralizadora que deveria nortear todo o movimento da resistência palestina. Dessa maneira, o Fatah aspirava a constituir e estabelecer uma narrativa totalizante da luta; em uma palavra, no movimento se verifica a pretensão de colocar os termos pelos quais toda a luta do povo palestino se desenvolve[x].

De acordo com Said, o Fatah, em sua elaboração teórica, a qual legitima sua prática social, não desenvolve questões de classes nem outras análises para o movimento. Para a organização, cumpre unicamente ser palestino e oprimido para se erguer contra a colonização sionista. Ou seja, sociologiamente, o Fatah se organiza como um movimento laico e não-marxista, e, não necessariamente à esquerda do espectro político da resistência. Como tratado no tópico anterior, o Fatah ao longo de praticamente duas décadas conseguiu ocupar oposto de força hegemônica dentro da OLP, e, de fato, estruturou a gramática da filosofia política.

Ainda mais, o Fatah, especialmente Yasser Arafat, foi bastante pragmático em boa parte de sua história, adotando uma linha política bastante consequente para os objetivos de libertação e de retorno dos palestinos à sua terra pátria. Não obstante, o movimento abandonou os princípios da própria OLP em diversos posicionamentos, sendo que o maior deles foi, precisamente, o reconhecimento do Estado de Israel sobre 78% da Palestina histórica em 1988[xi].

O Fatah permanecia em uma espécie de zona de conforto para diversas questões, o que possibilitou a formação de uma burocracia estatal parasita e enriquecida, o que fez com que o partido recebesse muitas críticas de outros grupos políticos palestinos e caiu, a partir da década de 1980, no descrédito do povo palestino[xii]. Acerca disso, lamenta Said[xiii]:

Acima de tudo, por quanto tempo os políticos palestinos liderados pelo Fatah ainda se contentarão com um pouco aqui, um pouco ali, com um líder dizendo X, outro dizendo Y, com burocracias e slogans cumprindo a função de organização revolucionária e tomada de consciência, com condescendência, em vez de execução do trabalho, com obediência cega aos líderes, em vez de responsabilidade séria?

A história mostrou que o Fatah foi incapaz de levar adiante a libertação do povo palestino. Suas políticas, antes radicais e pragmáticas, cederam espaço ao consenso com o colonizador, e, pelo claro, com sua capitulação. Na medida em que foi incapaz de atender aos desígnios de liberdade e de justiça dos palestinos, o Fatah perdeu em importância em representatividade no seio do povo palestino, em detrimento do Islã político.

Decadência da OLP

Em sessão do Conselho Nacional Palestino, de 1988, na Argélia, A OLP, liderada pelo Al-Fatah aprovou a Declaração da Independência Palestina, em que proclama o “estabelecimento do Estado da Palestina em nossa terra palestina, tendo por capital Jerusalém”. Ao mesmo tempo, a OLP reconheceu o direito do Estado de Israel existir ao lado de um Estado Palestino. Ou seja, houve o reconhecimento do plano de Partilha da Palestina da ONU, “antes apresentado pela organização [OLP] como sendo um instrumento da aliança do sionismo com o imperialismo para ampliar sua influência e exercer a dominação territorial de uma parte estratégica do Oriente Médio”[xiv]. Em suma, sob a liderança do Al-Fatah, a OLP abandona os seus princípios de resistência.

Tal movimentação decorreu, sobretudo, da celebração dos Acordos de Oslo. Entretanto, não cumprimento de diversas cláusulas dos acordos firmados, ajudaram a erodir a credibilidade que parte do povo palestino depositava na OLP e, em primeiro lugar, no Fatah.

É nessa conjuntura, qual seja, a de abandono de uma resistência radical e rigorosa para com seus princípios, ao que se deve somar as denúncias de corrupção dos quadros do Fatah dentro da OLP, que o Islã político, representado sobretudo pelo Hamas, criado em 1988.

O Hamas é, intrinsecamente, uma alternativa ao Fatah, não em a relação à luta por libertação, mas no que tange os caminhos para alcançá-la. Enquanto o segundo quer Estado nacional palestino, o primeiro almeja construir um Estado Islâmico. O Islã político do grupo foi visto com bons olhos por Israel, já que enfraquecia a principal fonte de resistência palestina da época. Em 2005, o Hamas ganhou as eleições municipais em Gaza, assumindo o protagonismo da resistência oficialmente[xv].

Considerações finais

O trabalho buscou explorar a história da resistência da Palestina contra o avanço imperialista israelense. Para tanto, empreendemos uma tentativa de compreender a necessidade de uma reorganização, refletimos sobre o que é ser palestino após a Nakba e destacamos as principais propostas de organização política criadas pelos palestinos para concretizar esse objetivo de emancipação, com destaque para o surgimento e desenvolvimento da OLP e do Al-Fatah.

As tarefas de compreensão da resistência palestina são tarefas hercúleas, já que, para além de todas as complicações impostas pelo próprio colonizador, o povo palestino vê-se constrangido pelas próprias fricções e sectarismos de um povo sociologicamente bastante complexo. Importa, no limite, ocupar as fileiras de sua resistência, além de ajudar a promover a solidariedade pela consolidação e uma Palestina livre do rio ao mar. A palavra final:

A compreensão sobre os debates políticos internos no movimento nacional da resistência palestina é sempre uma tarefa muito difícil, pois a realidade cotidiana do conflito promove mudanças significativas todos os dias, e muitos analistas são surpreendidos por importantes acontecimentos – muitas vezes inesperados – que nos obrigam a revisar constantemente aquilo que pensamos e escrevemos sobre esta situação concreta. Acreditamos que conhecer profundamente quem são, como se organizam e quais os principais desafios dos marxistas e seus partidos/movimentos na Palestina seja uma das tarefas fundamentais para que possamos fortalecer nossos laços de solidariedade e nosso compromisso com esta causa legítima de um povo que tem sabido manter sua dignidade e ousadia mesmo diante das mais difíceis situações.[xvi]

* Murilo Amadio Cipollone é bacharel em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do coletivo de pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo na mesma instituição.

** Lucas Oliveira Menditi do Amaral é bacharel em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do coletivo de pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo na mesma instituição.

Bibliografia


BUZETTO, Marcelo. Os Marxistas e a Questão Palestina: os desafios da esquerda. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, pp. 130-146, 1a sem. 2012.

COGGIOLA, Osvaldo. Fontes da resistência palestina. A Terra é redonda, 2023. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/fontes-da-resistencia-palestina/>. Acesso em: 22/12/2023.

KANAFANI, Ghassan. A Revolta Árabe de 1936-1939 na Palestina. São Paulo: Sundermann, s.d.p.

PAPPÉ, Ilan. A limpeza étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann, 2016.

SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.

Notas


[i] KANAFANI, Ghassan. A Revolta Árabe de 1936-1939 na Palestina. São Paulo: Sundermann, s.d.p., p. 68.

[ii] Ibid., pp. 79-80.

[iii] PAPPÉ, Ilan. A limpeza étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann, 2016, pp. 34.

[iv] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p. 143.

[v] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p. 145.

[vi] BUZETTO, Marcelo. Os Marxistas e a Questão Palestina: os desafios da esquerda. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, pp. 130-146, 1a sem. 2012. p. 132

[vii] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p. 189.

[viii] BUZETTO, Marcelo. Os Marxistas e a Questão Palestina: os desafios da esquerda. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, pp. 130-146, 1a sem. 2012. p. 135.

[ix] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. pp. 181-182.

[x] Ibid., p. 182.

[xi] Ibid., pp.183-184.

[xii] COGGIOLA, Osvaldo. Fontes da resistência palestina. A Terra é redonda, 2023. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/fontes-da-resistencia-palestina/>. Acesso em: 22/12/2023.

[xiii] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. pp. 185.

[xiv] BUZETTO, Marcelo. Os Marxistas e a Questão Palestina: os desafios da esquerda. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, pp. 130-146, 1ª sem. 2012. P. 136.

[xv] COGGIOLA, Osvaldo. Fontes da resistência palestina. A Terra é redonda, 2023. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/fontes-da-resistencia-palestina/>. Acesso em: 22/12/2023.

[xvi] BUZETTO, Marcelo. Os Marxistas e a Questão Palestina: os desafios da esquerda. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, pp. 130-146, 1ª sem. 2012. P. 145.


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