A sina do Bananistão

Foto de Christiana Carvalho
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Por BRUNO BEAKLINI*

O Brasil precisa quebrar a espinha do colonialismo para combinar segurança alimentar com cadeias de alto valor agregado

Fica praticamente impossível viver a vida cotidiana sem o mínimo de previsibilidade. Quanto mais complexa é a sociedade e abastado o padrão de consumo, mais itens entram na formação desta previsão. Diante da escassez, se inverte a lógica, sendo que a maior condição imprevisível é quando as mais básicas condições matérias de vida sequer são garantidas. O Brasil da pandemia, e antes, desde o início do segundo governo Dilma Rousseff – quando a reeleita presidenta coloca um Chicago Boy na Fazenda, o impagável Joaquim Levy – vive sob uma imprevisibilidade cada vez maior.

A desinformação sistemática dos neoliberais vende a fórmula mágica de “oferta e procura” como aplicável em todos os “mercados”. Nada pode ser mais farsesco. Um, porque nem tudo é “mercado”. Dois, porque no capitalismo, a classe de mercado por excelência é o oligopólio. Cada vez mais precisamos de capacitação tecno-científica para desenvolver indústria de base, de bens de produção e também para controlar cadeias de alto valor agregado. A “lógica” é complexidade e especialização, logo, acaba formando ainda maior concentração, ou seja, oligopólio. Neste sentido, cada indústria conta, sendo mais ou menos complexa. E toda planta industrial que fecha, implicam em perda de empregos diretos e indiretos, cadeias de fornecedores e todo um tecido social-produtivo que cai na “imprevisibilidade”.

Um exemplo da ausência de indústria de base é a carência brasileira na produção dos IFAs – os ingredientes farmacêuticos ativos – os principais insumos da indústria farmacêutica. Já fomos quase autossuficientes no setor, mas a combinação de importação de insumos para formar preços mais baratos com os genéricos e a subsequente desindustrialização deste ramo, fez o Brasil ficar novamente dependente. Com o avanço da pandemia e a necessidade de vacinação em massa, dois grandes produtores, como Índia (um bilhão e 366 milhões de pessoas) e China (um bilhão e 398 milhões), sendo muito populosos, necessariamente podem vir a priorizar atender à sua cidadania ao invés de fornecer para outros países. Se isso ocorrer, e sempre pode ocorrer, logo, não teremos o material necessário para salvar nossa população. Simples e macabro assim.

Outro caso é o da imposição nos termos de troca, em escala de múltiplos fatores. Refiro-me aos Estados Unidos, que compraram de forma antecipada todas as vacinas e insumos possíveis, além de fabricarem por conta própria a vacina anti-Covid. A previsão é de vacinar toda a população adulta estadunidense ainda em abril de 2021. E, provavelmente, não venderão “seus excedentes” de vacina para países onde não houve planejamento adequado, como mais uma vez é o caso do Brasil sob o desgoverno.

O exemplo da perda no fator de troca: a sina do Bananistão

Uma sociedade socialmente justa e politicamente democrática precisa de certo nível de autonomia e independência, ao menos nos setores fundamentais ou estratégicos. Ou um país e seu bloco de poder detêm excelência em alguns fatores de troca, ou simplesmente será alvo e vítima deste próprio jogo. Pouco adianta exportar um navio classe New Panamax (enorme cargueiro que passa no alargado Canal do Panamá) cheio de bananas se no sistema de trocas o país precisa vender cinco embarcações bananeiras para comprar uma traineira de mariola ou doce de banana (uma escala acima na transformação do produto). Pior ainda se para a produção em escala de mariola ou bananada é necessária uma enzima geneticamente modificada, cujos royalties de produção pertencem a uma única empresa, ou quiçá no máximo cinco complexos químicos em escala global.

Podemos alegar que no padrão global de consumo e na disputa por eficiência e produtividade o uso de “defensivos” e “pesticidas” químicos aplicados em organismos geneticamente modificados é uma condição sem volta. Se assim é, e o Brasil é um país agroexportador, logo, precisamos pensar em escala nacional uma produção de fertilizantes e derivados que não onerem a produção primária. Isso não acontece e na média, a cada cem sacas de grãos para exportação (no padrão da soja, por exemplo), cerca de vinte são para pagar royalties e outros direitos de uso de tecnologia intensiva. Faço questão de afirmar aqui: o consumo interno deveria ser baseado na agricultura familiar e camponesa, com produção regionalizada e a partir de produtos orgânicos e sementes nativas. Vejamos.

Repito, nenhuma desgraça que foi narrada acima seria necessária. Um vigoroso colchão social pode e deve começar pela segurança alimentar e a garantia de permanência e presença das famílias camponesas como produtoras agrícolas livres de veneno e intensivos. O programa nacional de alimentação escolar e as proporções de compras dirigidas para a agricultura familiar regionalizada, desde que se constituiu, é um fator fundamental para garantir tanto as crianças e jovens de origens mais humildes no Brasil, assim como a fixação dos camponeses. Outro fator importante é prevenir o avanço da especulação imobiliária, pois a tendência é a invasão dos territórios ao redor de grandes cidades ou áreas metropolitanas, transformando unidades produtivas em imóveis que carecem de infraestrutura ainda mais onerosa.

Estes elementos acima citados, como: zoneamento agrícola; previsão de abastecimento; garantia de compras na agricultura familiar e previsibilidade mínima na vida em sociedade, formam o oposto da balela neoliberal de “liberdade individual” como valor mais importante. Toda liberdade é importante, mas na ausência de condições materiais de vida, a “liberdade” se torna a tirania da concentração de renda e poder, e assim nada se sustenta, nem sequer a indústria dos países emergentes, da periferia ou semiperiferia, como é o caso brasileiro.

Um país que não garante a segurança alimentar de seu povo, compondo, por exemplo, estoques reguladores e sistemas de abastecimento regionalizados, simplesmente não tem condição de enfrentar nada.  Hoje é uma pandemia, amanhã uma guerra, ontem foi uma operação de contra-inteligência do FBI e CIA, dentro do Brasil, conforme comprovado pelas matérias da Vaza Jato (The Intercept Brasil). Sem coordenação estratégica em todos os níveis, ou vira a lei do mais forte, da pura e simples crueldade com um verniz de legalidade, ou então um desgoverno, como o de Jair Bolsonaro e seus asseclas. Pode ser a soma das duas situações, como o Filme de Terror que vivemos hoje em tempo real (citando o genial Sérgio Sampaio, na composição de 1973, ver https://www.youtube.com/watch?v=8l4dDW-qDxI&list=PLyRt6UrE4Q4vthdsmRqJYAMHjRN1LHDih&index=2).

O jogo real do sistema internacional

No jogo sujo do Sistema Internacional, quem tem produção de bens fundamentais impõe suas condições ou coordena ações cooperadas que podem modificar o “equilíbrio” de forças em escala planetária. O papel da China hoje é exemplo disso, pois a capacidade de atuar em todos os níveis da economia capitalista fazem do Estado confuciano um parceiro fundamental para praticamente todos os países.

Dificilmente um país com representação na Assembleia Geral da ONU vai ter todos os fatores necessários para operar com autodeterminação. Mas, quando essa meta permanente sequer é anunciada, não ocupa a mentalidade de quem domina ou dirige fronteira para dentro, aí simplesmente não há caminho a seguir, apenas ficar cambaleando conforme os sabores dos ventos soprados por terceiros.

Há “leis científicas” na economia política que precisam necessariamente ser respeitadas.  Uma delas trata da coordenação e controle (total ou parcial) em setores estratégicos. Quais são esses setores e qual fração dirigente vai coordenar é um debate em forma de luta por poder e recursos. Mas na ausência destas definições, a estupidez, a crueldade e a imbecilização são formas factíveis de domínio das maiorias, incluindo aí as cadeias produtivas que não podem se defender no jogo de barganhas entre politiqueiros, parasitas do sistema financeiro e estamentos em ascensão (como os militares entreguistas associados com Bolsonaro).

E por favor, não venham a me dizer que tenho “preconceito” contra bananas. A fruta é fantástica, assim como todos os produtos dela derivados. A banana realmente não merecia estar pejorativamente associada aos entreguistas coloniais de sempre.

Resumindo: não teria problema vender bananas, desde que a meta fosse produzir também mariola e enzimas. Ou seja, que a produção agromineral exportadora sirva para retomar a indústria e a complexidade da economia brasileira, e não aumentar a sina colonial da plantation ou da mineração. Uma situação ideal é combinar a segurança alimentar com cadeias de alto valor agregado. Poucos países no mundo têm plenas condições dessa realização. O Brasil é um desses mas precisa quebrar a espinha do colonialismo interno para alcançar tal possibilidade.

*Bruno Beaklini é cientista político e professor de relações internacionais. Editor dos canais do Estratégia & Análise.

 

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