A última sessão de música

Imagem: Carlos Cruz-Diez
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Por VITOR MORAIS GRAZIANI*

Considerações sobre a turnê de despedida dos palcos de Milton Nascimento

O título da turnê de despedida dos palcos de Milton Nascimento possui algo chamativo. Que tudo seja milimétricamente preparado, cuidado, trabalhado na obra de Bituca, dispensa comentários – basta ver seus long-plays dos anos na EMI-Odeon para denotar isso (e falo aqui do conjunto: sonoridade, capas, encartes e pessoal envolvido). Virginia Bessa, certa vez, me disse que Milton Nascimento era o mais apolíneo de todos os artistas da entidade MPB.[i] Isto ecoa por tudo, de cabo a rabo, que envolve A última sessão de música.

Eu, que também cresci no interior de Minas Gerais, perto das Três Pontas de Bituca, não consigo deixar de pensar em um pregoeiro vindo anunciar pelas ruas, como numa procissão (que é elemento onipresente em Milton Nascimento) o nome da turnê. “Extra! Hoje! A última sessão de música de Milton Nascimento”. Com humildade única, Milton Nascimento enumera em vídeo pré-gravado exibido antes do início do show seus inúmeros feitos. Não se tratam de feitos possíveis para qualquer músico – brasileiro, negro. Muito se discute, aliás, sobre o papel da negritude na obra de Milton Nascimento. Acostumados com as influências iorubas, sobretudo, na Bahia e Rio de Janeiro, Milton Nascimento assusta num primeiro momento. Sua negritude se exerce a partir das influências das culturas conguesas que penetraram no seio de suas Minas Gerais.

O Congo fora aderido à série de conquistas portuguesas ainda no XV, e, diferente do caso de Angola – “uma conquista dos portugueses”, na visão de Marina de Mello e Souza[ii] – o caso conguês teve a síncope e a resistência indireta como motes desde o princípio. Um maní-Soyo que adere ao cristianismo de imediato; um maní-Congo que se converte, mas continua a exercer as religiões locais sem qualquer cerimônia. Os Congo que aportaram escravizados no Brasil – a maioria, aliás, daqueles que realizaram a “longa travessia” vinha dessa região de África – e que para Minas foram, logo se viram distanciados das realidades dos aquilombamentos.

Por inúmeros motivos, deu-se ali a fusão, já em marcha no Congo, de elementos de suas culturas originárias com a cultura europeia, produzindo uma síntese mestiça – mas não cínica, aculturada, posto que com os escravizados e libertos em protagonismo nessa – que culminaria nas festas de coroação de Rei Congo, nas irmandades negras, em procissões como a do Corpo de Cristo – que José Ramos Tinhorão morreu defendendo ser uma das únicas manifestações culturais efetivamente democráticas do Brasil Colonial[iii] –, em festas como a Folia de Reis (da qual Milton Nascimento extrai “Cálix Bento”, gravada em Geraes, de 1976), etc.

Curioso isso. Não há dúvidas da negritude em Milton depois deste cadinho de história. Mas não consigo parar de pensar em outro músico que também versa em parte de sua obra sobre nosso mais profundo interior. Falo de Tom Zé. Baiano de Irará, próxima às localidades nas quais se fundou o arraial de Canudos, Tom Zé costuma dizer, numa interpretação própria e diametralmente oposta àquela dada por Caetano Veloso, que o Tropicalismo fora fruto do encontro da cultura do mouro, dos moçárabes, com a cultura aristotélica (esta ideia é bem desenvolvida em seu álbum “Tropicália Lixo Lógico”, de 2012).

Acontece que Tom Zé, como bom tropicalista que é, opera – e lembro aqui algo que Celso Favaretto propôs, numa visão geral, na década de 1970 em seu Tropicália, alegoria, alegria – uma descolonização de uma ideologia em crise – a deste país profundo, arcaico.[iv]. Isto é, há o intuito de libertar estes corpos fatigados da exploração capitalista e vertê-los em efetivos sujeitos da História.

Ora, em Milton Nascimento a operação não poderia ser mais oposta. Partindo do mesmo ponto de Tom Zé – claro, guardadas as devidas distâncias e condições geográficas entre o agreste baiano e o sul de Minas Gerais –, isto é, nosso substrato profundo, arcaico, Bituca vai por outro caminho, que reforça a fala de Virginia Bessa sobre seu caráter apolíneo. Ele lamenta e adere. Explico-me: à mesma medida que valoriza nosso arcaísmo enquanto ente de beleza, autenticidade, ele traz consigo inovações significativas na forma cancional, somando ao arcaísmo o que de mais novo possível, num “Tropicalismo às avessas” – reconhecido pelo próprio Caetano em Verdade tropical[v] – posto que sem a aceitação cínica e acrítica do novo tempo da experiência brasileira gestado pelo Golpe Civil-Militar de 1964 que o Tropicalismo Oficial (orbitado em torno de Caetano) assumirá.

Volto, depois disso, ao começo deste escrito. Milton Nascimento não nega o mercado ao trazer para si a ideia de uma turnê de despedida dos palcos intitulada “A última sessão de música”. Mas junto disso, vem o arcaico – o pregoeiro anunciando a última sessão de música de um Deus vivo – em chave valorativa. Forçando um pouco o argumento, talvez seja possível dizer que se Tom Zé descoloniza algo em crise – o arcaico –, Milton Nascimento o coloniza (a palavra é péssima, mas espero que entendam que estou me referindo ao movimento de trazer para si algo tido como negativo mantendo o aspecto integracionista).

E assim se dá, nesta chave, a última sessão de música de Milton Nascimento. Vestido de início com um manto divino – baseado em Arthur Bispo do Rosário – ele anuncia a que vem, valorizando os tambores de Minas – os mesmos das festas que comentei acima. Acontece que já é tarde. E então, em um dos momentos mais emocionantes de toda a apresentação, Milton começa a tocar sua sanfona para entoar “Ponta de Areia” (parceria com Fernando Brant, recolhida em Minas, de 1975). E ali é dada toda a toada que conduzirá a obra de Bituca: “Ponta de areia, ponto final / Da Bahia-Minas, estada natural / Que ligava Minas ao porto, ao mar / Velho maquinista, com seu boné / Lembra o povo alegre que vinha cortejar / Maria fumaça não canta mais”.

Noutras palavras – chega a ser muito errado de minha parte querer traduzir estas palavras tão potentes – a modernização capitalista em voga no Brasil – e aqui estamos falando de uma modernização desigual e combinada – condenou ao fim a estrada de ferro que ligava Minas ao mar. Acabou. Não há mais espaço para isso neste novo tempo da experiência moderna brasileira. Mas e aquele povo que viveu disso por anos e nega-se tanto a se ressentir quanto a abandonar o “velho” em nome do novo? Melancólico é pouco para uma abertura de um show de despedida dos palcos. Apolo anuncia a que vem: vai valorizar seu povo e trazê-lo para seu entorno. Mas atenção: como nos lembra Vinícius Gueraldo, o arranjo original de “Ponta de Areia” contém uma introdução atonal[vi]: atitude vanguardista? Questão menor, o que importa é o casamento entre o que já foi e o que virá. Nada será como antes.

Dado o leitmotiv da apresentação, Milton Nascimento retoma às canções que o apresentaram ao mercado na década de 1960. Importante lembrar de “Canção do Sal” – gravada primeira por Elis Regina em 1965 – e “Morro Velho”. São canções que, já no início da carreira, apontavam para a exploração das populações menos favorecidas e para as incongruências da vida: há um ar de não-aceitação travestido de passividade em “Morro Velho” –  “Já não brinca mais, trabalha” é um verso de partir corações engajados. Deixando de lado todo aquele panfletarismo pró-experiências armadas em voga no pós-1964, Milton Nascimento denuncia sem deixar de sofrer. Este derrotismo, este ponto de vista dos vencidos que não sabem o que mais podem fazer para resistir ante à destruição de tudo e todos, ganha um contorno singular quando se chega ao momento em que se inicia a formação do Clube da Esquina, com a adesão ao rock progressivo da turma de Wagner Tiso.

Canção-chave para a solução deste impasse é “Para Lennon e McCartney”, de Márcio Borges, Lô Borges e Fernando Brant, apresentada no show logo após as canções da década de 1960. As canções gravadas por Milton são sempre claras no quesito mensagens afirmativas – nem sempre o resultado é positivo, podendo verter-se em clichês baratos, caso de “Canção da América”, parceria com Fernando Brant. Fato é que a resposta ao dilema vivenciado em canções como “Morro Velho”, essa melancolia do tempo, a falta de uma luz no fim do túnel, vem em claro recado aos maiores ídolos pops do mundo naquele momento, os Beatles, que também influenciam Milton: “Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber” – “Sou do mundo, sou Minas Gerais”. Não resta dúvidas: a resposta é a mesma de tantos outros incorporados forçosamente à ordem capitalista que se viam abonados àquela altura do campeonato, ou seja, afirmar sua identidade, sem medo de rechaços.

Fico imaginando a potência disso, em se direcionar aos maiores músicos em termos de mercado de seu tempo – Lennon e McCartney – e ter o destemor de afirmar aquilo que se é – é o que se pode oferecer – e, como se não bastasse, ser aceito pelo mercado (nessa mesma época Tom Zé amargava um duro ostracismo que quase lhe custou tudo que fizera até então). É certo, todavia, que esta relação com o mercado se alteraria com o tempo. Após o experimentalismo de Milagre dos Peixes, de 1973, disco censurado quase que por inteiro, vem o momento do aceno mais explícito ao mercado, o que levaria ao boom de vendas – claro que comparado aos demais artistas da MPB – de seus discos Minas (1975) e Geraes (1976). Seguindo a linha interpretativa de Vinícius Gueraldo, se em Minas há uma exteriorização, notada na parceria com Caetano “Paula e Bebeto”, haveria em Geraes uma dissolução[vii]. O caso de Geraes é singular, aliás, posto ser um disco com alto número de vendas e sonoridade arcaica a qual se somam letras que versam sobre o mundo rural, num geral – há exceções, claro, como “Menino”, parceria com Ronaldo Bastos que homenageia o estudante secundarista Édson Luís assassinado pela Ditadura em 1968.

Há algo em Geraes interessante de se notar. Este disco aparenta ser a expressão mais bem concretizada do projeto autoral de Milton Nascimento, posto que congrega o lirismo da MPB – “O que será (à flor da pele)”, de Chico Buarque, que também participa no fonograma – com as tradições populares – a já citada “Cálix Bento” – passando pela denúncia deste processo de modernização capitalista – “Promessas do Sol”, parceria com Fernando Brant e uma rara canção de Milton que não aponta caminho algum para o problema colocado, como nos lembra Sheyla Diniz[viii] – e pela resistência da vida em sua forma mais sublime – “Volver a los 17”, de Violeta Parra, gravada em parceria com Mercedes Sosa.

É, em síntese, um álbum que congrega diversos Brasis num só sob uma mesma forma. Simbólico, aliás, que Milton Nascimento entoe a parcela destinada às tradições populares em sua obra no momento de sua despedida dos palcos: “Cálix Bento”, “Peixinhos do Mar” e “Cuitelinho” apareçam num pot-pourri que reforça o argumento de que há, ali, uma preocupação em se fazer manter vivo algo que já não existe mais.

E aí entra algo extremamente melancólico: sem Milton Nascimento, quem fará com que tudo isso continue vivo, pulsante, teimando em existir quando se prega que se deve deixar o passado no passado? Sim, é certo que Milton Nascimento tem acenado às novas gerações – durante a pandemia fez uma live com Liniker (que chegou a cantar com Milton Nascimento na turnê de despedida) e Xênia França; Zé Ibarra atua com protagonismo na banda de “A última sessão de música” – mas nenhum integrante dessas conseguirá substituir a potência de Milton Nascimento.

Colocar em cena tradições e práticas sociais já em vias de esquecimento, sob forma moderna, mas crítica à modernidade – o que nos faz lembrar a resistência indireta, o resistir por dentro das irmandades negras, por exemplo – e, não obstante, com protagonismo no mercado, valendo-se dele para fazer permanecer vivo o que estava condenado à morte, me parece o grande legado de Milton Nascimento.

Seja como for, Bituca prega que cantemos, dancemos, conversemos no bar – referência à “Saudades dos aviões da Panair”, parceria com Fernando Brant – no momento em que, à luz da “revolução neoliberal”, descrita magistralmente por Dardot e Laval[ix], qualquer interioridade parece aniquilada pelo cortejo triunfal dos vencedores. Talvez Milton Nascimento seja o Ailton Krenak de nossa música, e perder sua presença nos palcos, nesta que é uma das horas mais dramáticas de nossa História, é certamente uma perda sem tamanhos.

Que Milton Nascimento, como Apolo, como um sábio conguês, permaneça presente Brasil afora e, com ele, a marca daqueles que há tantos tempos têm sido silenciados pelo “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso”[x] na esperança interminável, por mais dura que seja a realidade, de que nalgum momento futuro ainda que tardio, se tornem sujeitos não apenas de suas histórias, mas de nossa História. Viva Milton Nascimento!

*Vitor Morais Graziani é graduando em história na Universidade de São Paulo (USP).

 

Notas


[i] Comunicação pessoal, 25.09.2020.

[ii] SOUZA, Marina de Mello e. Angola: uma conquista dos portugueses. In: Além do visível. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2018, pp. 85 – 141.

[iii] TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Editora 34, 2000, pp. 79 – 86.

[iv] FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. Cotia: Ateliê editorial, 2006, pp. 120 – 121.

[v] VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 276 – 277.

[vi] GUERALDO, Vinícius José Fecchio. Em busca do consenso: Milton Nascimento e a perda dos laços comunitários. Dissertação (Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras). São Paulo: IEB/USP, 2017, p. 78.

[vii] GUERALDO, Vinícius José Fecchio. Em busca do consenso: Milton Nascimento e a perda dos laços comunitários. Dissertação (Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras). São Paulo: IEB/USP, 2017.

[viii] DINIZ, Sheyla Castro. “Nuvem cigana”: a trajetória do Clube da Esquina no campo da MPB. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Campinas: Unicamp/IFCH, 2012, p. 105.

[ix] DARDOT, Pierre/LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo editorial, 2016.

[x] SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 110.

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