Por JOSÉ GERALDO COUTO*
Comentário sobre o filme recém-lançado de Laís Bodanzky
Em abril de 1831, depois de abdicar do trono brasileiro, D. Pedro I embarcou de volta à Europa numa fragata inglesa. Há poucos registros sobre os dois meses que durou a travessia. Nesse vácuo histórico Laís Bodanzky construiu A viagem de Pedro, um exercício ficcional que combina várias coisas: investigação da personalidade do imperador, discussão de um punhado de questões ligadas à identidade nacional e, unindo tudo, uma reflexão sobre as relações entre virilidade e poder, assunto que se revelou grosseiramente atual no megacomício de 7 de setembro.
É o filme mais ambicioso da roteirista e diretora, tanto em termos de amplitude temática como de tamanho da produção, que inclui minuciosa reconstituição de época, elenco multinacional, etc. O mínimo que se pode dizer é que ela enfrentou a tarefa com coragem, imaginação e competência.
Desde a primeira imagem – uma estatueta equestre de Napoleão em postura bélica, sob comentário em off da imperatriz Leopoldina (Luise Heyer) – é central a questão do desejo másculo de poder e glória. E o principal tormento de Pedro (Cauã Reymond) nessa sua ambígua viagem (está partindo para o exílio ou voltando dele?) é, cruamente, sua dificuldade em ter uma ereção.
Impotência simbólica
Logo Pedro, que teve sete filhos com Leopoldina e outros tantos fora do casamento, e que em conversa com o capitão do navio se gaba de ter ejaculado sete vezes numa só noite, agora não consegue fazer sexo com a segunda esposa, Amélia (Victoria Guerra). Real ou fictícia, a disfunção erétil do ex-imperador adquire aqui um caráter simbólico poderoso.
Outra aflição que tortura Pedro na travessia é a culpa, alimentada por flashbacks em que ele trata Leopoldina com estupidez e violência, além de humilhá-la trazendo para a corte sua principal amante, Domitila (Rita Wainer), a marquesa de Santos. Para livrar o ex-imperador da alma atormentada de Leopoldina, o altivo cozinheiro malê do navio (Sérgio Laurentino) prepara-lhe um ebó (despacho, oferenda), num dos momentos mais inspirados do filme.
Às contradições do protagonista – liberal nas ideias e autoritário nas ações, machão e impotente, brasileiro e português – somam-se os atritos no interior do navio, em que há um conflito surdo de poder entre os servidores do ex-imperador e a tripulação inglesa. O porão da embarcação é uma babel de línguas e etnias, e os viajantes negros ali estão numa espécie de limbo entre a escravidão (ainda vigente no Brasil) e a liberdade.
Realismo e alegoria
Para dar conta de toda essa complexidade, a narrativa trafega entre o realismo histórico e a alegoria, distanciando-se tanto do ufanismo patriótico de Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972) como da sátira debochada de Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995). A liberdade poética é facultada pelos delírios e pesadelos de Pedro.
Chamam a atenção algumas opções técnicas e de linguagem, como o formato do quadro (1.33:1), mais “vertical” que o usual, acentuando a aglomeração caótica de personagens e objetos no ambiente claustrofóbico do barco. A ambientação predominantemente noturna e a movimentação de câmera acompanhando ou simulando a oscilação do navio contribuem para a construção da atmosfera de incerteza e perigo.
Igualmente interessantes são algumas soluções de montagem, em que um retrato, uma joia, um ataque epilético ou uma música suscitam a passagem fluente entre presente e passado, real e imaginário.
O desejo de falar de tudo – questões raciais, de gênero, de choque cultural, de religião, de moral, de geopolítica e identidade nacional, entre outras – resulta ocasionalmente numa certa dispersão dramática e corre o risco de atordoar o espectador com o excesso de informações não explicadas.
Mas se trata, inegavelmente, de um grande feito cinematográfico, com maturidade formal e notável segurança na direção de um elenco tão heterogêneo, em que se destacam, além de Cauã Reymond, o irlandês Francis Magee (como capitão do navio) e os grandes atores negros Isabél Zuaa (portuguesa que tem brilhado no cinema brasileiro) e Welket Bungué (guineense que atuou em Berlin Alexanderplatz, Crimes do futuro e Joaquim, entre outros).
*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).
Publicado originalmente no BLOG DO CINEMA
Referência
A viagem de Pedro
Brasil, 2022, 96 minutos
Direção: Laís Bodanzky
Roteiro: Luiz Bolognesi
Elenco: Cauã Reymond, Luise Heyer, Victoria Guerra, Rita Wainer, Sérgio Laurentino, Francis Magee, Isabél Zuaa, Welket Bungué
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