A vida ameaçada

Imagem: Izabella Árvai
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Por LISZT VIEIRA*

Da destruição ambiental ao ecossocialismo

Bem antes da catástrofe climática no Rio Grande do Sul, já era conhecida e divulgada a quatro ventos a denúncia sobre a degradação ambiental no Brasil e no mundo. Em 2022, cerca de 40.000 km2 de floresta tropical foram devastados na Amazônia. Todos os dias, 1,5 milhão de árvores foram derrubadas. O governo de Jair Bolsonaro estimulou o desmatamento, o garimpo ilegal que polui com mercúrio os grandes rios da Amazônia. As invasões de terras indígenas triplicaram entre 2019 e 2021. Em 2022, o desmatamento bateu novos recordes: 74 mil queimadas foram registradas na Amazônia, 51% a mais que em 2021.

No Cerrado, a taxa de desmatamento explodiu em 34% em três anos. O Pantanal foi devastado por gigantescos incêndios em 2020. 1.700 novos agrotóxicos foram autorizados, muitos dos quais banidos do mercado europeu. Segundo diversos cientistas e organizações da sociedade civil, quase um quinto da floresta amazônica já foi destruída. Ela está se aproximando de seu ponto de “não retorno” que resultaria na transformação de trechos inteiros de selva em savana.

De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (RAD) do MapBiomas, divulgado em 28 de maio de 2024, o Brasil perdeu 8,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos últimos cinco anos, o equivalente a duas vezes o Estado do Rio de Janeiro. A agropecuária foi o vetor de 97% desta expansão no período. O Cerrado supera Amazônia como bioma mais desmatado no país em 2023, o equivalente a 61% da vegetação suprimida no país no ano passado. O valor representa um crescimento do desmatamento no bioma de 68% em comparação com 2022.

No caminho inverso, o desmatamento na Amazônia apresentou redução de 62% no período. No Cerrado, a área desmatada em 2023 foi de 1,11 milhão de hectares e na Amazônia, 454 mil hectares. As regras do Código Florestal, que permite supressão muito maior em propriedades no Cerrado do que na Amazônia, dificultam a fiscalização e a repressão. Ressalte-se que, em termos nacionais, houveuma queda de 11,6% na área desmatada no país no ano passado, em relação a 2022.

O Relatório Internacional do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão da ONU) de 2023 confirmava as advertências anteriores sobre as graves consequências se a temperatura global ultrapassar 1,5º C. Antes da catástrofe climática no Rio Grade do Sul, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas IPCC lançou em 28 de fevereiro de 2022, seu Sexto Relatório de Avaliação. De acordo com o Relatório, no que se refere ao Brasil as consequências previsíveis são as seguintes, segundo o site Clima Info:

(i) O calor e a umidade ultrapassarão os limites da sobrevivência, se a humanidade não fizer a necessária redução das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). (ii) Secas e enchentes devastarão as casas e os meios de subsistência no Brasil se governos e empresas não cortarem radicalmente as emissões de GEE. (iii) A produção de alimentos será afetada pelas mudanças climáticas. O Brasil enfrentará grandes prejuízos econômicos se as emissões nacionais e globais não forem reduzidas rapidamente. (iv) O Brasil será atingido pelos efeitos de eventos extremos que acontecem em outros lugares.

 Todas as atividades produtivas têm impacto ambiental. Globalmente, 73% das emissões de GEE vêm da queima de combustíveis fósseis. No Brasil, o agro é responsável por 75% das emissões. A maior parte vem da mudança no uso da terra, que é a destruição de biomas para dar lugar a pastos e plantações. Como as árvores capturam GEE, o desmatamento libera esses gases estufa para a atmosfera, contribuindo para o aquecimento global.

Apesar de toda a catástrofe climática no Rio Grande do Sul, a boiada continua passando no Congresso. A PEC 03/2022 extingue a área de Marinha, abre a porteira para a privatização das praias, entregando todo o litoral para especulação imobiliária. Em vez de praia, teremos prédios e esgoto. O casamento da ganância com a ignorância levará a desastres ambientais de grandes proporções.

A crise climática leva à destruição dos recursos naturais e ameaça a sobrevivência da humanidade no planeta. Ocorre que, no Brasil, as políticas econômicas que tradicionalmente se alternaram no poder, o neoliberalismo e o desenvolvimentismo, desprezaram ambas a questão ambiental. O meio ambiente como questão política não existia nas utopias do liberalismo e do socialismo. O liberalismo no Brasil ainda apoia o mito da “mão invisível do mercado” formulado por Adam Smith no século XIX, e defende, com apoio da mídia, o Estado Mínimo.

Por outro lado, muitos desenvolvimentistas de esquerda diziam que “o meio ambiente é entrave para o desenvolvimento”. Até hoje, para muitos políticos, meio ambiente é visto como questão secundária, uma caixinha à parte, no Ministério do Meio Ambiente, ignorado e às vezes boicotado pelos outros ministros. Tendo em vista a gravidade da crise climática e a devastação da biodiversidade ameaçando a destruição dos recursos naturais e a sobrevivência da humanidade, o meio ambiente não pode ser tratado como assunto secundário. É uma questão transversal que atravessa as políticas públicas.

A catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul trouxe lições importantes para quem não recusa a realidade. Em primeiro lugar, a necessidade de ampliar e priorizar a política de sustentabilidade socioambiental, sempre relegada ao segundo plano. Isso supõe pelo menos os seguintes pontos: (a) superar o modelo neoextrativista dependente do agronegócio predatório, apoiado pela direita, (b) superar o modelo desenvolvimentista, tradicionalmente apoiado pela esquerda, (c) rejeitar definitivamente o modelo neoliberal e seus dogmas que impedem o desenvolvimento, como Estado Mínimo e austeridade fiscal, (d) apoiar uma reforma urbana e desenvolver um novo conceito de cidade com planejamento a longo prazo e priorizando a qualidade de vida dos cidadãos, (e) assumir o desenvolvimento sustentável com respeito à proteção ambiental, justiça social e diversidade cultural.

Durante décadas, muitos cientistas – a maioria financiada pelas empresas de petróleo – negavam a existência da crise climática. Mas a ONU já bateu o martelo: Corremos sério risco de ultrapassar o aumento de temperatura de 1,5º C, acarretando eventos climáticos extremos com efeitos dramáticos. Mantido o ritmo atual, ultrapassaremos 2º C, o que acarretará consequências trágicas para a humanidade, ameaçando no limite sua própria sobrevivência.

No caso do Brasil, o Sudeste brasileiro só não é um deserto, como ocorre em Atacama no Chile, por exemplo, porque é beneficiado pelos chamados “rios voadores” que trazem umidade da floresta amazônica que, ao ser desmatada, ameaça a Amazônia e o Sudeste de desertificação. O quadro abaixo é esclarecedor e alarmante.

Fonte: Instituto de Oceanografia da USP.

Apesar das advertências dos cientistas e das recomendações dos Relatórios do IPCC, os governos nacionais, reunidos todo ano para discutir a crise climática nas chamadas COP (Conferência das Partes), não tomaram nem executaram decisões concretas para reduzir a emissão de GEE. O mundo caminha para uma crise civilizatória profunda que exigirá mudanças drásticas no modo de produção e no modo de vida. O atual modelo de produção industrial, seja capitalista ou socialista, é altamente poluidor. Nos países baseados no neoextrativismo e na economia primária voltada à exportação, como o Brasil, os métodos predatórios de produção agropecuária e extração de matérias primas, como minérios, terão de ser modificados.

Em nosso país, o destaque cabe ao desmatamento, o grande vilão das nossas emissões de GEE que contribuem para o aquecimento global. O desmatamento na Amazônia foi principal responsável pela elevação de 9,5% nos GEE verificada em 2020, indicam dados do Observatório do Clima. Cerca de 75% das nossas emissões estão vinculadas a um setor da economia: o agronegócio. Um estudo publicado em 7/3/2022 na revista Nature Climate Change afirma que a Amazônia se aproxima de um ponto em que a devastação será irreversível, ou seja, um “ponto de não retorno”.

Pelas projeções das Nações Unidas, teremos 200 milhões de refugiados do clima até 2050. Outras estimativas são ainda mais pessimistas: 1 bilhão de pobres vulneráveis sem condições de sobrevivência. Calor extremo, cidades submersas, falta de comida, se o aquecimento global ultrapassar a meta de 1,5°C. Especialistas preveem um futuro “semi-distópico”, com fome, conflitos e migrações em massa.

O Acordo de Paris, assinado em 2015, teve como objetivo limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC. Mas centenas dos principais cientistas climáticos do mundo acreditam que as temperaturas globais poderão subir até mesmo para 2,5°C acima dos níveis pré-industriais neste século, causando consequências catastróficas para a humanidade e o planeta. O relatório sobre o Estado do Clima Global 2023, da Organização Meteorológica Mundial, mostra que os recordes foram mais uma vez quebrados, em termos de níveis de GEE, temperaturas da superfície, calor e acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, cobertura de gelo marinho na Antártida e recuo dos glaciares. Ondas de calor, inundações, secas, incêndios florestais e ciclones tropicais vão se intensificar rapidamente, causando miséria e caos, alterando a vida quotidiana de milhões de pessoas e ocasionando bilhões de prejuízo em perdas econômicas (Um Só Planeta, 14/5/2024).

China, EUA e Índia são os três maiores emissores de GEE, além de serem os mais populosos do mundo. Os três contribuem com 42,6% das emissões totais, enquanto os 100 países menos populosos são responsáveis por apenas 2,9%, de acordo com o relatório do World Resources Institute, segundo o qual “o mundo não pode combater com sucesso as mudanças climáticas sem uma ação significativa dos 10 maiores emissores”. O Brasil é o quinto maior emissor, atrás apenas da China, EUA, Índia, Rússia. Entretanto, um fator importante a ser considerado é o volume histórico de emissões.

Apesar de hoje emitir mais que os EUA, a China ainda não chegou ao volume histórico emitido pelos americanos. Globalmente as emissões do 1% mais rico equivalem às emissões dos 66% mais pobres. Os 20 países mais ricos do mundo (G20) foram responsáveis por 76% das emissões globais. Já os países menos desenvolvidos foram responsáveis por 3,8% das emissões globais.

A civilização do combustível fóssil ameaça a sobrevivência humana no planeta que está em risco pelo esgotamento, em futuro previsível, de matérias primas essenciais à vida humana, tendo em vista o uso abusivo de recursos naturais que destroem a biodiversidade e liberam GEE, com enorme impacto nas mudanças climáticas.

Pela sua grandeza e biodiversidade, o Brasil poderia assumir liderança internacional no combate às mudanças climáticas. Mas isso exige consciência da importância da sustentabilidade, ignorada em geral pelos Governos, principalmente pelos governos neoliberais e negacionistas de direita e extrema direita, comprometidos exclusivamente com os interesses econômicos do mercado, em detrimento do desenvolvimento sustentável do país.

Uma das principais tarefas que caberia ao governo Lula seria assumir uma liderança mundial na defesa da sustentabilidade socioambiental para reduzir drasticamente a desigualdade social e os riscos ecológicos que ameaçam a sobrevivência humana, principalmente dos pobres. Uma grande oportunidade será a realização em Belém do Pará, em 2025, da COP 20, reunindo os governos de todo o mundo para discutir as ameaças das mudanças climáticas.

Mas, na contramão dessa possível liderança mundial, que o Brasil poderia ter face à sua extraordinária riqueza natural, está a decisão de explorar petróleo na margem equatorial da Amazônia. “Não podemos abrir novos poços de petróleo”, alerta o climatologista de renome internacional Carlos Nobre que adverte: “projetos de lei para que se desmate e degrade mais o ambiente não podem ser aprovados”.

Se a ficha caiu no Rio Grande do Sul após a tragédia climática de maio 2024, no Congresso Nacional a boiada continua passando. Ou querendo passar pelos projetos em andamento de extinção do licenciamento ambiental, das reservas indígenas, redução da reserva legal na Amazônia e privatização das praias.

Hoje, a vida humana e animal está ameaçada pelas mudanças climáticas, resultantes principalmente da emissão de gases de efeito estufa e, no Brasil, do desmatamento provocado pelo agronegócio predatório, apoiado pelos negacionistas e neoliberais, em geral com o apoio da mídia. Seria de se esperar que a catástrofe no Rio Grande do Sul abalasse as opiniões tradicionais e, na esquerda, contribuísse para uma crítica profunda não apenas ao neoliberalismo e ao tradicional desenvolvimentismo que ignora a sustentabilidade, mas também – e sobretudo – ao negacionismo climático e seus dogmas, ostensivos na direita e às vezes, embora ocultos, presentes na esquerda.

Mas isso parece não estar ocorrendo como demonstra a decisão do Governo Lula, com o apoio ou silêncio da esquerda, de explorar petróleo na Margem Equatorial do Amazonas, na contramão da transição energética.

O Coordenador do Programa de Mudanças Climáticas da ONU, Niklas Hagelberg, declarou que “de secas na Amazônia e no Nordeste a inundações no Sul, a gama de potenciais desastres requer planejamento abrangente e estratégias de adaptação para mitigar impactos e proteger sua população e recursos naturais”. Afirmou ainda que “as cidades precisam aprimorar defesas contra inundações, implantar soluções baseadas na natureza, rever códigos de construção e proteger os ecossistemas naturais que protegem contra eventos extremos” (O Globo, 23/5/2024).

Para que tudo isso ocorra, seria necessário que os políticos e os empresários se convencessem da gravidade da crise climática, o que não acontece, mesmo após a catástrofe no Rio Grande do Sul. Os tomadores de decisão no Brasil nunca deram prioridade à questão ambiental, em geral considerada secundária ou renegada inteiramente como falsa questão. Seria necessária uma grande campanha nacional de educação ambiental e alerta para considerar importante uma questão que, muitas vezes, tem impactos no longo prazo, quanto os políticos e empresários priorizam o curto prazo.

A devastação ambiental traz consequências graves em termos de eventos climáticos extremos. O que já sabemos é que não basta discutir apenas a transição energética para reduzir e no limite suprimir os combustíveis fósseis em favor de energias renováveis. Isso é um grande passo, mas será necessário enfrentar o desafio de uma transformação ecológica que vai exigir um novo modo de vida e de produção. A alternativa será o colapso da atual civilização, a extinção em massa de todas as espécies vivas. A Terra já foi palco de cinco extinções em massa antes da que agora nos ameaça.

O que está em questão não é o planeta, é a sobrevivência da humanidade no planeta, ameaçada pelo produtivismo inerente ao sistema capitalista. Até o presente momento, a única proposta que apresentou um caminho de superação e salvação foi a utopia do ecossocialismo, que critica o mercado capitalista e o Estado socialista burocrático e produtivista, ambos responsáveis por uma industrialização destruidora do meio ambiente.

Enquanto o capitalismo, principalmente em sua versão neoliberal, transforma direitos em mercadorias, visando a lucro, o ecossocialismo – nas palavras do intelectual marxista Michael Lowy – propõe “um projeto democrático, ecológico e libertário”. É a grande utopia do século XXI. Ou a conquistamos, ou iremos nos destruir.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


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