A violência policial na França surpreende?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANSELM JAPPE*

O problema talvez se situe em um nível muito mais profundo, na assimetria da relação entre o policial e o não policial

Todos os dias fala-se de violência policial. Poucos assuntos tem mexido tanto com os ânimos por toda a parte. Eu poderia ressaltar o que escrevi no meu artigo de 2009 “Violência, mas para quê”[1]: “a primeira imagem da violência, assim que se chega na estação de trem ou no aeroporto da França, é a polícia. Nunca vi tantos policiais na França como agora, especialmente em Paris […] E que policiais!: um ar de brutalidade e arrogância que desafia qualquer comparação. Ao fazermos a menor objeção – por exemplo, em verificações de identidade e revistas de bagagem antes de entrar no trem, nunca antes vistas – sentimos que estamos à beira da prisão, da agressão e da acusação de ‘resistência às forças da ordem'”, e que reagimos com indignação ao sabermos dos crimes da polícia através da mídia. Há momentos em que você prefere, olhando em retrospecto, ter exagerado. Não é o caso aqui.[2]

Muitas vezes, as palavras “violência policial” e “racismo” são pronunciadas juntas. Com razão. Tanto a experiência cotidiana como as estatísticas mostram que os migrantes, ou de família migrante, especialmente africanos, têm razão em temer a polícia, mesmo que não tenham feito “nada de errado”. Em setembro de 2020, o Ministro do Interior Castaner admitiu, ainda que da boca para fora, a existência de um “problema de racismo” na polícia e anunciou medidas de combate ao problema. Foi-lhe tirado o ministério alguns dias depois, diante da indignação policial. Na mesma época, uma grande manifestação em Paris protestava contra a violência racista atribuída às “forças da ordem”. A questão retornou com força muito recentemente – em péssimo momento para o governo – com a “surra” em Michel Zecler, um homem negro.

A violência cometida pela polícia, contudo, limita-se a uma questão de racismo? Há dúvidas. Embora não seja verdade que “todo mundo detesta a polícia”[3] (na realidade, uma parte da população a adora e nunca se cansa dela, e os programas dos partidos de direita e extrema direita se reduzem basicamente à promessa de reforçar a polícia e deixá-la completamente livre para atuar), parece certo que “a polícia odeia todo mundo”. Os coletes amarelos agredidos em manifestações eram, afinal, indubitavelmente gauleses.

A polícia francesa é profundamente racista? Um policial afirmou, no Le Monde, que ela não é mais do que outros círculos profissionais nos quais ele já trabalhara.[4] Até pode ser verdade, pois o racismo está em toda parte. Contudo, um corretor de seguros normalmente tem muito menos oportunidades de extravasar seu racismo através da violência física do que um policial, devendo se limitar a fazer “piadas” imbecis.

Pesquisas mostram que, na maioria dos países europeus, policiais votam nos partidos de extrema direita em proporções muito maiores do que outros eleitores. Também sabemos dos muitos contatos, passados ou atuais, entre círculos policiais e grupos fascistas (ou mesmo terroristas).

Se o problema do policiamento se limitasse, porém, a esses fatos “extremos”, talvez se pudesse resolvê-lo com uma melhor seleção e treinamento e expulsando as “maçãs podres” da corporação. Almas puras podem acreditar que, com treinamento policial mais longo, passando de oito para doze meses, tudo seria diferente. Ou ainda, que bastaria um treinador dizer que não se deve bater em um negro da periferia sem motivo para que eles deixassem de fazê-lo…

Aumentar a “diversidade” da corporação também é proposto como solução. No entanto, os policiais na Nigéria costumam ser ainda menos delicados com seus cidadãos do que seus colegas franceses! E, nesse caso, nem pode ser uma questão de racismo…

O problema pode então ser situado em um nível muito mais profundo: a assimetria da relação entre o policial e o não policial. A explicação é fácil: pegue alguém, arme-o até os dentes, coloque-o em uma corporação na qual sempre se defendam os colegas sem discutir, deixe-o chamar reforços ao menor sinal de problema, decida que o fato de não lhe obedecer de imediato constitui um delito de “resistência às forças da ordem” ou de “desacato ao funcionário público” – ainda que se trate apenas de responder em tom diferente de “respeitoso”.

Assegure que praticamente qualquer tratamento infligido ao cidadão pelo policial seja atendido pelos seus colegas, e depois pelos superiores; que os relatórios feitos na camaradagem ou claramente falsificados sejam corriqueiros, enquanto a vítima é acusada e condenada, mesmo contra todas as evidências. Providencie ainda – na probabilidade muito pequena de o policial ser investigado, quando há imagens inegáveis – que ele seja julgado primeiro por seus próprios colegas (a “polícia policial”) e quase sempre absolvido.

Por fim, mesmo na probabilidade ainda menor de seu caso chegar aos tribunais, ele será absolvido ou receberá uma pequena pena, voltando rapidamente ao trabalho. Assegure-se também de que em caso de condenação, mesmo leve, ele receba solidariedade incondicional de seus colegas e que os sindicatos da polícia – eles sim em “em processo de radicalização” –  organizem manifestações nas ruas (sem autorização prévia), que parte das forças políticas o transforme em mártir e arrecadem dinheiro para sua defesa. Assim, como pode surpreender que muitos policiais não resistam à tentação de cometer prevaricações impunemente?

Relações assimétricas levam facilmente ao abuso, especialmente se este não for sancionado. Uma situação de impunidade como essa certamente desperta em muita gente seu sadismo latente, ou pelo menos um desejo mais ou menos forte de onipotência. Pode-se mesmo supor que o sadismo e o desejo de poder constituam uma motivação poderosa, consciente ou inconsciente, para ingressar nas forças da ordem. Não é preciso que todos os policiais sejam valentões sádicos: se são muitos e se agem com impunidade (até com a aprovação dos superiores), eles dão o tom para os demais.

Uma assimetria inscrita até no mármore das leis: a agressão a um policial (ou a certas outras categorias de funcionários públicos) é punida, segundo a lei, mais severamente do que a de um ser humano “normal”. Voltamos, assim, às leis da Antiguidade, como o Código de Hammurabi, de 1750 aC., que pune de forma bem diferente a violência contra o senhor e contra o escravo… Está escrito nos tribunais que “a lei é igual para todos”, mas claramente os policiais são um pouco mais iguais que os outros, como os porcos da fábula de Orwell.

Eis as consequências: uma atitude não servil em relação à polícia é encarada como provocação, com consequências incalculáveis. É preciso tratar os agentes como seres superiores. Pessoas foram mortas pela polícia após uma simples discussão verbal, como o entregador Cédric Chouviat. Pode-se dizer “me deixe em paz, idiota” para todo mundo. Mesmo quando dito ao patrão, no máximo se corre o risco de demissão. No caso da polícia, porém, arrisca-se a vida (o único outro ambiente no qual isso acontece é o de gangues!), ou, pelo menos, ser espancado e acusado de “desacato”.

Vejamos três exemplos banais e sem violência, mas que mostram o terreno em que a violência brota:

(a) Uma jovem de um país europeu chega ao aeroporto de Paris, onde mora. Por nenhuma razão compreensível, ela é detida longamente pela polícia de fronteira e interrogada. Quando é finalmente liberada, ela murmura entre os dentes “Que absurdo!”. “O que você disse? Volte!”. Novos controles, novas intimidações – punição imediata por crime de lesa-majestade (testemunho pessoal).

(b) Um policial aposentado vai à delegacia para registrar queixa por um motivo qualquer. Tendo esperado muito tempo, começa a reclamar. O tom sobe e seus ex-colegas adotam postura ameaçadora. Por fim, ele escapa por pouco de ser preso (carta a um jornal local).

(c) Policiais militares, durante uma verificação de rotina, param um carro. O motorista se apresenta como policial civil. Devido à rivalidade entre as corporações, os policiais militares examinam cuidadosamente o carro até encontrar um motivo para multa. O policial civil, muito irritado, parte cantando pneus. Ele é então parado pelos policiais militares novamente, que lhe dão uma nova multa por “direção perigosa” (depoimento em mídia online).

Sim, a polícia odeia todo mundo. Cada um tem o direito de odiar os outros seres humanos. Porém, quando se lhe conferem armas, cúmplices e a garantia de “estar coberto”, têm-se um problema…

Atualmente, em nenhum outro país europeu o governo dá tanta mostra de estar sob as ordens de sua própria polícia. Por quê ? Talvez esse governo sinta que, se a polícia parar de protegê-lo por uma semana sequer, ele entrará pelo cano…

P.S. Obviamente, podemos nos perguntar sobre as qualidades individuais dos policiais. Sem dúvida, há quem arrisque a vida para salvar uma criança. Pode-se, por outro lado, colocar toda a culpa em um governo específico e se convencer de que outro governo daria ordens bem diferentes ao seu braço armado. Porém, o essencial reside em outro lugar: todas essas são situações em que seres humanos podem fazer praticamente o que quiserem a outros devido a seu papel institucional. Esse é o resultado profundamente perturbador do “Experimento de Aprisionamento de Stanford”, de 1971, que foi tema de um filme recente: o simples fato de se deter um poder quase absoluto sobre outras pessoas pode, mesmo sem incentivo específico, transformar indivíduos (dos quais ninguém suspeitaria, nem eles próprios) em torturadores sádicos. Isso faria parte da “natureza humana” ou seria a consequência de se viver em uma sociedade opressora? Eis uma ótima pergunta para as noites de quarentena! 

*Anselm Jappe é  professor na Academia de Belas Artes de Sassari, na Itália, e autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).

Tradução: Ilan Lapyda

Publicado originalmente no site Mediapart.

Notas


[1] Retomado no livro Crédito à morte (Hedra).

[2] Também me perguntei na ocasião: “Por que existem tão poucas iniciativas em defesa das ‘liberdades civis’? Há grandes manifestações a favor do ‘poder de compra’ ou contra a redução de postos de trabalho na educação, mas nunca contra as câmeras de vigilância, e menos ainda contra o passaporte biométrico ou o cartão de transporte do metrô de Paris (que permite seguir o rastro de cada ‘presa’)”. Pelo menos nesse caso, pode-se dizer: “O país acordou!”.

[3] “Tout le monde déteste la police”, em francês. Trata-se de um slogan comum em manifestações na França [N.T].

[4] “Paroles de policiers: ‘Les gens ne savent pas ce que c’est de se faire cracher dessus et caillasser’”, Le Monde, 15. 12. 2020.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Lanari Bo Eliziário Andrade Chico Whitaker Bernardo Ricupero Otaviano Helene Ricardo Abramovay Marcus Ianoni Paulo Capel Narvai Tales Ab'Sáber Michael Roberts Anderson Alves Esteves Mário Maestri Tarso Genro Carlos Tautz Eugênio Bucci Daniel Costa José Dirceu Flávio R. Kothe Vladimir Safatle José Geraldo Couto Luiz Werneck Vianna Paulo Martins Matheus Silveira de Souza Afrânio Catani Boaventura de Sousa Santos Michael Löwy Alexandre de Freitas Barbosa Fábio Konder Comparato Eleonora Albano Marcos Silva Paulo Fernandes Silveira Osvaldo Coggiola Ronald Rocha Marilia Pacheco Fiorillo Heraldo Campos Paulo Nogueira Batista Jr Lorenzo Vitral Plínio de Arruda Sampaio Jr. Andrés del Río Andrew Korybko João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Boff Luiz Carlos Bresser-Pereira Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Lopes Marilena Chauí Mariarosaria Fabris Francisco de Oliveira Barros Júnior Luís Fernando Vitagliano Eduardo Borges Benicio Viero Schmidt Elias Jabbour Luiz Bernardo Pericás João Adolfo Hansen Luiz Renato Martins João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira Jean Pierre Chauvin Rodrigo de Faria Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jean Marc Von Der Weid Henry Burnett José Micaelson Lacerda Morais Julian Rodrigues Celso Frederico Atilio A. Boron Anselm Jappe Jorge Luiz Souto Maior Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Sérgio Pinheiro Eleutério F. S. Prado Walnice Nogueira Galvão Antonio Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Caio Bugiato André Singer Kátia Gerab Baggio Ricardo Antunes João Carlos Salles Milton Pinheiro Slavoj Žižek Claudio Katz Thomas Piketty Luiz Roberto Alves Leonardo Avritzer Henri Acselrad Leda Maria Paulani Ladislau Dowbor Yuri Martins-Fontes Armando Boito Airton Paschoa Michel Goulart da Silva Ari Marcelo Solon Rafael R. Ioris Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Luis Felipe Miguel Luciano Nascimento Jorge Branco Daniel Brazil João Carlos Loebens Rubens Pinto Lyra Manchetômetro Bruno Machado Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Érico Andrade João Feres Júnior Fernando Nogueira da Costa Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Fabbrini Antonino Infranca Samuel Kilsztajn Gerson Almeida Lincoln Secco Marjorie C. Marona Chico Alencar Fernão Pessoa Ramos Berenice Bento Luiz Marques Lucas Fiaschetti Estevez Antônio Sales Rios Neto Marcos Aurélio da Silva Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo José Luís Fiori Alysson Leandro Mascaro Marcelo Módolo José Costa Júnior Eugênio Trivinho Salem Nasser Vanderlei Tenório Flávio Aguiar Marcelo Guimarães Lima Annateresa Fabris Tadeu Valadares Igor Felippe Santos Renato Dagnino Denilson Cordeiro Sandra Bitencourt Celso Favaretto Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento Juarez Guimarães Luiz Eduardo Soares Vinício Carrilho Martinez Gabriel Cohn Alexandre Aragão de Albuquerque José Raimundo Trindade Remy José Fontana Liszt Vieira Dennis Oliveira Daniel Afonso da Silva Carla Teixeira José Machado Moita Neto André Márcio Neves Soares Ricardo Musse Ronald León Núñez Gilberto Maringoni

NOVAS PUBLICAÇÕES