Abjeto negacionismo

Imagem: Zeynep Silan
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Por ANTÔNIO DAVID*

A nota da CONIB é um ataque desonesto à política externa brasileira, pois nega o genocídio palestino, omite o extremismo do governo Netanyahu e tenta silenciar quem denuncia a violência da extrema direita israelense, repetindo a lógica colonial que oprime Gaza há décadas

1.

A Confederação Israelita do Brasil (CONIB) divulgou no último dia 23 de julho uma nota na qual acusa o governo brasileiro de romper com a “tradição de equilíbrio e moderação” de sua política externa, que teria enveredado para o “extremismo”.

A nota foi divulgada poucos minutos após o anúncio, pelo Itamaraty, de que está em fase final a participação formal do Brasil no processo movido pela África do Sul contra Israel junto à Corte Internacional de Justiça, com base na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A nota da CONIB é desonesta, arrogante e apenas revela o viés político de extrema direita da entidade.

Desonesta porque insiste na esdrúxula tese de que o que o governo de Israel tem feito em Gaza reduz-se apenas e tão somente a uma “luta para se defender” daqueles que representam uma ameaça à existência de Israel – o Hamas e seus aliados –, e de que a “responsabilidade” pelas mortes dos palestinos em Gaza, que a CONIB chama de “trágicas”, seria exclusivamente do Hamas, que “iniciou esse conflito” e que “usa” os palestinos como “escudos humanos”.

Com isso, a CONIB exime totalmente o governo israelense da responsabilidade pelo massacre em Gaza, a despeito de as mortes serem causadas por armas israelenses. Desonesta igualmente porque omite em seu comunicado o número de mortes (mais de 50 mil), mas também porque não se trata apenas de mortes, mas da submissão de todo um povo a inúmeras formas de violência, física, moral e psicológica, no que se inclui o uso da fome como arma de guerra.

Desonesta porque omite as inúmeras tomadas de posição de membros do governo israelense e de indivíduos e grupos em Israel que pedem aberta e publicamente, todos os dias, o assassinato de todos os palestinos, inclusive bebês, e muito antes do massacre de 7 de outubro de 2023. Genocídio não é apenas ir às vias de fato na eliminação física de um povo, mas é a ação que mantém todo um povo sob permanente estado de violência sistêmica porque se o considera digno de sofrimento e matável.

É a forma mais degenerada do que o geógrafo israelense Oren Yiftachel chama de etnocracia. Nesse sentido, é repulsivo ler a nota quando, no dia anterior à sua divulgação, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação de Israel, Gila Gamilel, postou um video em sua conta na rede social X na qual, usando inteligência artificial, retrata uma Gaza reconstruída como Riviera, e um texto na qual afirma: “Somos nós ou eles!” (זה אנחנו או – הם !). Não há outro nome para essa tomada de posição que não limpeza étnica.

Teria sido relevante se a CONIB se manifestasse sobre essa declaração, e sobre tantos outros posicionamentos fascistas, em Israel e fora de Israel, em favor da extrema-direita israelense, mas a CONIB oportunamente opta por silenciar, o que é o mesmo que ser cúmplice.

Desonesta porque pretende iludir o leitor ao argumentar que o Hamas poderia encerrar “imediatamente” o massacre (que a nota eufemisticamente chama de “conflito”) por meio da libertação dos reféns e de sua rendição. Todos sabem que o Hamas é uma ideologia e, como tal, não é suscetível de “rendição”: se, hipoteticamente, todos os militantes se renderem, no dia seguinte haverá outros novos militantes.

A CONIB leva o leitor a erro ao sugerir que o objetivo do atual governo israelense é a rendição dos militantes do Hamas, quando o objetivo declarado é a expulsão dos palestinos da região.

A esse respeito, a CONIB poderia levar em consideração a insuspeita opinião do ex-secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken, que em entrevista concedida recentemente reconheceu que a pretensão de se eliminar o Hamas é equivocada. A CONIB omite que a estratégia de sucessivos governos israelenses (não todos) de subjugar a Autoridade Palestina para não ter de negociar um estado palestino – ponto igualmente destacado por Anthony Blinken – foi determinante para o crescimento do Hamas, segundo o mantra “dividir para conquistar”. Quero crer que ninguém acusará Anthony Blinken de jogar a favor do Hamas.

Denunciar e combater a extrema direita israelense não é ser a favor do Hamas, da mesma maneira que denunciar e combater o Hamas, seus métodos, e seu objetivo de criar um estado palestino teocrático e expulsar todos os israelenses da região, seu execrável antissemitismo, não é ser a favor do Likud, Shas, Otzma Yehudit ou qualquer outro grupo fascista em Israel, que igualmente expõem abertamente e com orgulho seus preconceitos contra os palestinos, preconceitos estes tão execráveis quanto o antissemitismo. Apenas pessoas muito limitadas intelectual, cultural, moral e politicamente pensam em termos binários: “somos nós ou eles”.

É óbvio que uma parte das pessoas que defendem a causa palestina no Brasil e no mundo advoga em favor do Hamas e pela expulsão de todos os israelenses da região, ou sua aniquilação, como se os judeus não tivessem um vínculo histórico com a região tanto quanto os palestinos e como se não fosse possível a paz entre os povos.

Quanto a essas pessoas, só posso dizer que suas opiniões e tomadas de posição são tão estúpidas quanto àquelas que chegam ao ponto de negar a existência dos palestinos, e que essas pessoas são tão fascistas quanto o fascista Benjamin Netanyahu ou o fascista Itamar Ben-Gvir ou o fascista Bezalel Smotrich ou qualquer outro fascista em Israel, dentro e fora do atual governo – para os quais a CONIB lamentavelmente passa pano. Todos se complementam e se fortalecem em seus fascismos. No fundo são o mesmo.

Finalmente, a nota da CONIB é desonesta por usar o Holocausto como pretexto para acusar de “falsa” e “perversa” a denúncia de genocídio por iniciativa da África do Sul junto à Corte Internacional, que a recebeu e emitiu mandato de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, além do comandante militar do Hamas, Mohammed Deif.

Perverso é o argumento de que, porque “o termo genocídio foi criado justamente para definir o Holocausto”, então não é genocício o que estamos testemunhando em Gaza. Será perverso e falso considerar o genocídio armênio um “genocídio”? Ou o genocídio em Ruanda um “genocídio”?

A história não deu uma carta branca ao governo israelense para fazer o que quer, como quer e quando quer contra o povo palestino, tampouco um direito exclusivo. Sobretudo, o Holocausto não deveria ser evocado para a dissimulada justificativa de crimes de guerra, políticas de limpeza étnica e genocídios, e usá-lo para esse fim é que é um abjeto atentado à memória das vítimas e sobreviventes.

As vítimas do regime nazista, judeus e outros, foram vítimas antes de tudo do abominável preconceito de que são matáveis, de que não mereciam viver, de que deveriam sofrer e morrer. Se a CONIB não fechasse os olhos para a intenção do governo israelense de criar um campo de concentração no sul de Gaza, eufemisticamente nomeado “cidade humanitária”, talvez veria perversidade não na ação movida pela África do Sul junto à Corte Internacional, mas no lugar onde a perversidade realmente acontece.

2.

A nota da CONIB opera com inversões. É a CONIB que desconhece equilíbrio e moderação e que recai em extremismo ao dissimuladamente se prostar ao lado da extrema-direita israelense. Ao acusar o governo brasileiro de “demonizar Israel”, a CONIB torna indistintos o país Israel dos indivíduos Netanyahu e os demais fascistas que foram acusados – não por acaso, trata-se da mesma estratégia argumentativa, da mesma falácia, usada por Benjamin Netanyahu para se defender perante os tribunais israelenses: acusar a mim é prejudicar Israel. L’Israel c’est moi.

Ocorre que “Israel” designa um país, que, como todos os países no mundo, é dividido. Em Israel há indivíduos e grupos que defendem a democracia e os Direitos Humanos e há indivíduos e grupos que atacam a democracia e os Direitos Humanos. Há direita e há esquerda, e na esquerda há jovens que se recusam a participar do massacre em Gaza. E há a extrema direita, que governa Israel. Não por acaso, a Corte determinou a prisão não de “Israel”, mas de dois indivíduos israelenses, cada qual com nome e sobrenome.

A CONIB é a favor da extrema direita israelense, mas dissimula essa posição, fazendo o leitor a crer que Israel é uma sociedade homogênea e indivisa, quando na verdade é recortada por divisões. É a CONIB que “distorce fatos” e “adota narrativas falsas”, não apenas pelo que diz, mas também, e sobretudo, pelo que oportunamente omite, pelo que silencia.

A nota da CONIB é arrogante quando afirma que o suposto “rompimento da longa amizade e parceria do Brasil com Israel” é uma medida que “não tem o apoio do povo brasileiro”. A CONIB não é porta-voz do povo brasileiro. Mas sequer da comunidade judaica no Brasil a CONIB é porta-voz, pois também essa é dividida, tanto quanto o povo brasileiro e o povo israelense.

A CONIB se faz de porta-voz da extrema direita judaica no Brasil e da extrema direita israelense, e se faz por escolha própria, porque escolheu um lado. Assim como no Brasil uma parte escolheu o lado da extrema-direita brasileira, e em Israel uma parte escolheu o lado da extrema direita israelense. Quanto à “amizade e parceria” entre Brasil e Israel, ela só será rompida se os planos do fascista e corrupto Benjamin Netanyahu de acabar com a já precária democracia (etnocrática) em Israel e de fazer do Estado de Israel a extensão direta de seus ideais fascistas se concretizarem. Quero crer que em Israel haja grupos, movimentos e instituições que o impeçam.

3.

Em sua nota, a CONIB fez questão de nomear não apenas o presidente Lula, mas também seu assessor especial para assuntos externos, Celso Amorim. Essa estratégia argumentativa soa como um ato falho. Ao nomear seus desafetos – que sempre defenderam a solução de dois estados –, a CONIB nada mais fez do que indicar, como de praxe dissimuladamente, com quem a entidade guarda relação de afeição.

Um dos indivíduos por quem a CONIB tem afeição é, como todos sabemos, um inominável ex-presidente, agora réu em um processo judicial no qual é acusado de golpe de Estado e outros crimes, menos graves do que os crimes de Benjamin Netanyahu e seus cúmplices, mas ainda assim graves, e que enquanto presidente dizia apoiar incondicionalmente “Israel” – leia-se, o governo encabeçado por Netanyahu e a extrema direita israelense.

Acaso a CONIB dirá que a acusação criminal contra esse indivíduo equivale a “demonizar o Brasil”? Não surpreenderia, pois esse é o discurso dos apoiadores do inominável, que chamam a si mesmos de “patriotas”. É típico da extrema direita dissimular-se a si mesma, apresentando-se como porta-voz de toda a nação.

Não é demais lembrar que esse mesmo indivíduo, antes de ser eleito presidente, ainda em 2017, vomitou ofensas contra quilombolas em um evento social perante membros da comunidade judaica do Rio de Janeiro, reunidos no clube Hebraica. Naquela ocasião, a CONIB se posicionou publicamente e, em nota, disse “[defender], de forma intransigente, os valores da democracia e da tolerância e o respeito absoluto a todas as minorias”, mas não fez qualquer menção explícita às palavras ditas naquela noite.

Talvez a entidade tenha sido mais suave na ocasião do que agora porque a palestra “produziu divisão e confusão na comunidade judaica”. Foi a palestra que produziu a divisão, ou a divisão já existia e a palestra apenas a escancarou? A participação do Brasil na ação junto à Corte Internacional não produz igualmente “divisão e confusão” na comunidade judaica?

Seja como for, lamentáveis mesmo foram os risos de alguns na plateia naquela noite, em flagrante cumplicidade com o racismo descarado do palestrante. O jornal O Estado de S. Paulo noticiou que, ao final, ele “foi muito aplaudido e ouviu gritos de apoio, sendo chamado de ‘mito’ por parte da plateia”. Os risos e aplausos de parte da plateia também foram um infame atentado à memória das vítimas e sobreviventes do Holocauso e de todos os genocídios já praticados, pois todos nascem exatamente assim, dessa maneira. Já outros, judeus e não judeus, protestaram.

PS: Depois que este texto foi escrito, foi noticiado, no dia 25 de julho, que, por decisão do presidente Lula, o Brasil deixaria a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). A adesão à iniciativa deu-se no governo anterior. Em que pesem as críticas ao entendimento do que é antissemitismo no âmbito da IHRA – que torna equivalentes antissemitismo e críticas políticas legítimas ao governo Israelense e a grupos políticos e indivíduos dentro e fora de Israel –, considero essa decisão um erro político.

Tanto quanto o país Israel, e IHRA é um campo de batalha, onde entendimentos e visões diferentes estão em confronto, e sair da Aliança é contribuir para jogar a luta contra o antissemitismo no colo da extrema direita. A decisão fortalece exatamente os fascistas que têm a pretensão de falar em nome de todo povo israelense (e de todos os judeus) – portanto, fortalece o governo de Benjamin Netanyahu –, contribuindo ainda mais para o isolamento e silenciamento da esquerda judaica, dentro e fora de Israel. Consequentemente, enfraquece a luta central neste momento, que é a denúncia e o combate ao massacre em Gaza.

*Antônio David é professor do Departamento de História da Unicamp.


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