Por MÁRCIO MEIRA*
Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política
Em memória do jurista Dalmo Dallari, defensor e aliado decisivo dos indígenas na Constituinte, denuncio: a aposta deste governo genocida é a destruição do conjunto de políticas públicas voltadas aos povos originários do Brasil.
Brasil vivencia um abril vermelho de urucu. Mais de 7 mil mulheres e homens indígenas, de vários povos e de todas as regiões do Brasil, marcaram um novo recorde de presença em Brasília, com a pauta ‘Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política’. Para quem passou pela esplanada dos ministérios foi impossível ignorar os corpos pintados de vermelho, em sinal de luta.
O Acampamento Terra Livre de 2022 já é o maior evento de protesto desses povos na história. É estrondoso, portanto, o silencio da chamada mídia corporativa sobre as manifestações e ameaças do governo Bolsonaro e de seus asseclas aos temas gravíssimos que os indígenas denunciam para o mundo. As denúncias conectam os direitos humanos à proteção ambiental como um único e indissociável desafio de impacto local e global, sobretudo os relacionados à emergência climática.
Quase um ano se passou desde a realização do último acampamento, em junho de 2021, até então a maior mobilização indígena já realizada na capital federal do Brasil, com mais de 5 mil participantes. O ato ficou marcado pela imensa dança circular noturna, pontuada de luzes, feita na Praça dos Três Poderes, representando uma das mais contundentes manifestações populares contra o atual governo do Brasil, cuja imagem circulou mundo afora.
A pauta central das reivindicações era a garantia dos direitos indígenas no Brasil, ameaçados por iniciativas como o Projeto de Lei 490/2007, uma iniciativa que propõe modificar o Estatuto do Índio, como é chamada a Lei 6001/73, no que diz respeito aos direitos territoriais.
Hoje se somam àquelas, outras ameaças anunciadas como prioridade do governo federal no Congresso, como o Projeto de Lei 191/2020, que abre as terras indígenas para exploração em grande escala, como mineração, hidrelétricas e outros planos de infraestrutura, a ser votado em regime de urgência por imposição do atual presidente da Câmara, Arthur Lira.
Paira também sobre nossas cabeças o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do chamado “marco temporal”, a ser retomado ainda neste semestre, além do pacote que compõe os projetos de lei 6.299/2002, liberando agrotóxicos, 2.633/2020 e 510/2021, favorecendo a grilagem; e 3.729/2004, do licenciamento ambiental. Todas essas iniciativas atentam diretamente contra os princípios fundamentais da Constituição, sobretudo em relação aos direitos territoriais indígenas.
A atual demonstração de luta e resistência dos indígenas ocorre porque desde 2019, com o início do governo de Jair Bolsonaro, além das iniciativas legislativas evocadas acima, houve um recrudescimento de ações e omissões criminosas, contrárias aos indígenas, empreendidas ou respaldadas pelo governo federal e pelas forças econômicas e políticas anti-indígenas a ele vinculadas, presentes no Congresso e fora dele.
Especialmente os ataques às terras indígenas na Amazônia Legal tem causado um aumento descontrolado do desmatamento nessas importantes áreas protegidas, caracterizando afronta tanto à legislação indigenista quanto à ambiental, e inclusive contra a soberania brasileira e os compromissos internacionais do país.
O aumento do desmatamento na Amazônia chegou a mais de 9 mil km² em 2019, refletindo então uma alta de 100% em cinco anos. E 2021 bateu mais uma vez esse recorde, com um aumento de 100% em relação ao ano anterior.
O primeiro trimestre de 2022 já bateu novamente esse recorde. Os dados são do INPE. Enquanto isso, Ibama, ICMBio e Funai, órgãos responsáveis pela proteção das áreas protegidas, tem sido destruídos, na forma de uma “cupinização”, de dentro para fora, como afirmou acertadamente a ministra Carmen Lúcia, em voto histórico sobre a chamada “pauta verde” no Supremo Tribunal Federal.
Cabe reiterar que a Constituição de 1988 conta com um capítulo próprio, com os artigos 231 e 232, entre outros dispersos pela Carta, que disciplinam de forma rigorosa a matéria indigenista como um direito fundamental. O caput do artigo 231 reconhece aos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam conforme seus usos, costumes e tradições, e determina que a União promova a sua demarcação e proteção dos seus bens.
Quanto ao Estatuto do Índio, de 1973, os dispositivos relativos aos direitos territoriais estão em pleno vigor, sendo regulamentados pelo Decreto 1775/1996, e mais recentemente pelo Decreto 7747/2012, que instituiu o marco legal da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas, que visa garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das Terras Indígenas.
Regulamentando a Constituição de 1988, tais mecanismos jurídicos asseguram a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural dos povos indígenas, respeitando sua autonomia e formas de gestão ambiental e territorial.
Apesar dessa legislação, que procura redimir a dívida histórica com os povos originários, nos últimos três anos a situação das comunidades indígenas tem se tornado cada vez mais vulnerável a várias situações de violência: invasão dos territórios tradicionais, exploração ilegal de madeira, garimpagem ilegal, arrendamento ilegal das terras indígenas a setores do agronegócio, pressão de fundamentalistas religiosos, tudo agravado pela pandemia.
A situação de ameaça aos povos indígenas em situação de isolamento voluntário ou recente contato na Amazônia extrapolou todas as variáveis de segurança, definidas pela legislação brasileira, considerada de referência internacional.
Repito aqui o que escrevi em 2021, na edição da Focus: a aposta deste governo genocida é a destruição do conjunto de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, com ênfase no combate às demarcações de seus territórios tradicionalmente ocupados.
Essa turma de bandidos ancorada no governo federal desde 2019, é movida pela roubalheira, o ressentimento e um espírito vingativo contra os princípios do pacto democrático assentado pela Constituição de 1988, e por isso apostam em mudanças legislativas que a afrontam. Os indígenas estão entre as vítimas mais vulneráveis dessa verdadeira necropolítica bolsonarista.
É sempre bom lembrar, entretanto, que nem sempre foi assim, na história recente do país. Os governos do Brasil de 1988 até o Golpe de 2016, de diferentes espectros políticos, mantiveram e garantiram, mesmo que às vezes minimamente, o respeito aos direitos ambientais e dos povos indígenas estabelecidos na Carta Magna. Afinal, esses direitos foram fruto de muitas lutas, dos indígenas e da grande maioria da sociedade brasileira durante a Assembleia Constituinte de 1987.
Com uma enorme variedade de povos, línguas, culturas, e também de posições políticas diversificadas dentro de suas organizações, articuladas em torno da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o que mais caracteriza os indígenas acampados em Brasília é a sua diversidade.
Porém, se há algo que os unifica é o desejo pelo final iminente do governo Bolsonaro e do pesadelo que ele representa. A cor vermelha do urucu revela, sobretudo, a expectativa desses coletivos de que depois deste pesadelo seus direitos sejam respeitados e suas autonomias e diversidades socioculturais valorizadas, trazendo paz e esperança para suas vidas e das novas gerações
*Márcio Meira, antropólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e professor do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural do MPEG. Foi presidente da Funai entre 2007 e 2012.
Publicado originalmente na revista Focus Brasil.