Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Considerações sobre o papel dos modernistas na criação de programas e instituições culturais
A Agenda Cultural criada nos últimos cem anos na cidade de São Paulo desperta admiração e surpresa: como foi possível vivermos sem nada disso? Assim, entende-se porque nossas elites, fossem econômico-sociais, fossem artísticas, enfrentavam tediosas semanas de navio para ir à Europa.
Tudo o que veio depois é consequência do mesmo impulso de renovação que gerou a Semana de Arte Moderna de 1922. Há cem anos atrás, em 1922, comemorava-se com grande pompa e tradicionalismo o Centenário da Independência, incluindo uma Exposição Universal no Rio de Janeiro. Por isso, a Semana seria ideada como contracomemoração, despida de respeito às convenções e visando ao escândalo vanguardista. E isso, no espaço nobre do Theatro Municipal.
São marcos desse ano a publicação do Ulysses, de James Joyce e de The Waste Land, de T. S. Eliot. Assinala-se a morte de Marcel Proust em Paris e a de Lima Barreto no Rio.
O mesmo ano viu ainda a criação, com início no ano seguinte, dos estudos de literatura brasileira na Universidade francesa. A França trouxe para a Exposição Universal no Rio um pavilhão chamado Petit Trianon, cópia do de Maria Antonieta em Versalhes, depois doado à Academia Brasileira de Letras – onde se encontra até hoje.
Outros eventos marcantes desse ano são a ascensão do tenentismo com o episódio de “Os 18 do Forte”, a fundação do Partido Comunista Brasileiro e o primeiro Congresso Feminista do Brasil, comandado por Bertha Lutz.
Bertha Lutz
Uma palavra sobre a renomada cientista. Formada pela Sorbonne, seria bióloga do Museu Nacional e chefe de seu Departamento de Botânica. A vida toda militou pelos direitos da mulher, a começar pelo voto. Foi a delegada do Brasil à Conferência de São Francisco, nos Estados Unidos, que criou a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, depois da Segunda Guerra. O objetivo era promover a paz entre as nações, evitando novas guerras.
A atuação de Bertha Lutz é iluminada pelo documentário Bertha Lutz – A mulher na Carta da ONU (2020, dir. Guto Barra e Tatiana Issa). Baseado em pesquisa de arquivo, ali se mostra como, em meio a 850 delegados dos quais só 8 eram mulheres – ou, pasmem, uma representatividade de 1% –, foi missão pessoal de Bertha Lutz convencer os outros delegados de que a palavra “mulher” deveria ser explicitada a cada vez que se tratasse de direitos humanos na Carta. E isso porque, dizia ela, se não for explicitada, tais direitos serão monopolizados pelos homens e as mulheres excluídas, como sempre. Criou caso e foi mesmo objeto de ataques de outra delegada mulher, que disse considerar “vulgares” tais picuinhas feministas. Por fim, conseguiu impor seu ponto de vista e lá está, na Carta, a expressão “homens e mulheres”, a cada vez.
Mas o resultado para a história traz lições interessantes. A missão de Bertha Lutz foi apagada dos registros, tanto da ONU quando do Itamaraty, e o feito dela atribuído ao conjunto das delegadas mulheres, sem que seu nome seja mencionado. Nem mesmo seu retrato figura entre os milhares que pendem das paredes da sede da ONU, enquanto no Itamaraty ninguém se lembra dela. O documentário mostra como na Conferência as ideias avançadas vinham dos países pobres. Uma vez impostas, tais ideias passaram a ser atribuídas às americanas e inglesas, dentre as 8.
Ver para crer: no site da ONU, lá está a foto da Carta ladeada por Eleanor Roosevelt. Quem vê, deduz que ela foi o principal fator na elaboração do documento. Só que ela não estava lá… Não se discutem os muitos méritos da primeira-dama, mas esse, ou seja, a inclusão das mulheres na Carta, não lhe cabe, pois ela nem sequer era delegada, nem compareceu.
O documentário mostra algo a que já estamos acostumadas: o machismo e o imperialismo andam de mãos dadas, mesmo se isso implique em falsificar a História, no objetivo de esbulhar as mulheres e os países mais pobres. Reivindica-se justiça para Bertha Lutz, que morreria em 1976 aos 84 anos, mas ainda teve forças para, um ano antes, chefiar a delegação brasileira ao primeiro Congresso da Mulher convocado pela ONU, no México.
Os modernistas
Após o arranque inicial dado pela Semana de Arte Moderna em 1922, outras iniciativas e realizações adviriam, ampliando o alcance do novo ideário e despertando as iras dos passadistas. Oswald de Andrade divulga a Semana em Paris, fazendo conferência na Sorbonne e publicando artigo na Revue de l`Amérique Latine, em 1923. A mesma Sorbonne inaugura os cursos de literatura brasileira, com criação formal no ano anterior.
Um marco histórico seria a ocupação pelos modernistas do Salão Anual da Escola de Belas Artes, bastião do tradicionalismo estético, no Rio de Janeiro, em 1931. Sob a égide de Lúcio Costa ao alçar-se à direção da Escola, a reação que se seguiu logo acarretaria sua derrubada.
Os artistas que rezavam pela nova cartilha persistiram em afirmar seu impulso de sociabilidade, cuidando de abrir duas agremiações no mesmo ano de 1932: o CAM e a SPAM.
A primeira, o Clube dos Artistas Modernos, era comandado por Flávio de Carvalho juntamente com Antonio Gomide, Carlos Prado e Di Cavalcânti, todos modernistas da linha de frente. O projeto incluía teatro, salão para exposições, recitais, concertos, música popular etc. A encenação de O bailado do deus morto, de Flávio de Carvalho, resultaria na intervenção da polícia e o fim do CAM em 1934.
Já a SPAM ou Sociedade Pró-Arte Moderna contou com sucesso inicial, devido à mesma combinação que se provara eficaz na Semana: o apoio de uma elite esclarecida, incluindo mecenas e grã-finos. Realizou dois estrondosos bailes de Carnaval, com cenários de Lasar Segall e pantomima de Mário de Andrade. Viu-se sob ataque dos que nela acusavam subversão dos valores tradicionais da família brasileira, logo fechando as portas.
Derivam daí os Salões de Maio, em três anos sucessivos: 1936, 1937 e 1938. Neles ficou claro o quanto o modernismo tinha angariado novos adeptos, multiplicando os artistas em exposição.
Em 1934 sobreviera a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com o objetivo de ser a cabeça teórica da Universidade de São Paulo. Para tanto, trouxeram-se da Europa os mestres franceses para as ciências humanas, os alemães para as ciências naturais, os italianos para as ciências físicas e as matemáticas.
Logo houve aproximação entre os modernistas e a nova Faculdade, verificável em numerosas passagens. Oswald de Andrade apresentou-se em concurso, pleiteando um posto docente. Mário entabularia amigáveis debates pelos jornais com Roger Bastide, com quem trocou abundante correspondência. Financiaria expedições de Claude e Dina Lévi-Strauss aos territórios indígenas, confiando a ela cursos de Etnologia no Departamento de Cultura.
Ainda em 1935 (e até 1938) deu-se o evento extraordinário que foi a nomeação do grande modernista, líder e teórico do movimento para a direção do primeiro Departamento de Cultura do país, criado pela Prefeitura de São Paulo.
O novo Departamento tinha como objetivo fomentar o panorama cultural, visando a democratizá-lo e cobrir lacunas. Instituiu os parques infantis; a Biblioteca Municipal e outras bibliotecas; divisão de teatro; divisão de música, com a Discoteca, orquestra sinfônica, conjunto de câmara, balé; o Patrimônio Histórico; a Sociedade de Etnografia e Folclore etc.
Extravasando do âmbito meramente paroquial, Mário criou uma Missão de Pesquisas Foclóricas que excursionou ao Nordeste. A Missão coletaria fotos e filmagens, procedendo a anotações escritas, bem como a gravações de danças dramáticas e outros eventos musicais. Trouxe uma enorme coleção de objetos de arte popular. Depositado na Discoteca, o espólio aguardaria 70 anos para ser organizado pela musicóloga do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) Flávia Camargo Toni, que promoveu uma exposição, publicando um livro-catálogo e um CD com as gravações.
Mário também logo cairia, destituído pela politicagem. Mas hoje cada estado e cada município possui uma Secretaria da Cultura, modelada conforme o Departamento de Mário de Andrade, e em âmbito federal o país possui um Ministério da Cultura. Entretanto, o primeiro passo coube aos modernistas.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac\Ouro sobre Azul).