Agitação, propaganda e mobilização

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
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Por CARLA TEIXEIRA*

O essencial é saber que nenhuma conciliação/acomodação beneficia os trabalhadores sem a construção de mobilização nas ruas

As eleições de 2022 são, sem dúvidas, as mais importantes desde a fundação da Nova República. Após o golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita ao poder mediante a fraudulenta eleição presidencial de 2018 – que Lula, o candidato favorito, foi impedido de concorrer – há uma crise entre aqueles que rasgaram o pacto dos anos 1980. O que está em jogo é o aprofundamento das medidas autoritárias e antipopulares tomadas a partir do governo usurpador de Michel Temer ou o resgate dos compromissos democráticos e sociais estabelecidos pela Constituição Cidadã. Nessa disputa, é preciso considerar os aspectos que definem as culturas políticas brasileiras e utilizar as contradições postas no interior das classes dominantes para tirar a milícia do poder e garantir um governo democrático com forte apoio popular.

Antes de tudo, cabe considerar que o advento de uma cultura política é um processo lento e geracional. De acordo com Berstein, talvez seja necessário, no mínimo, duas gerações para que uma ideia nova, baseada nos problemas da sociedade, penetre nos espíritos sob forma de um conjunto de representações de caráter normativo até que acabe por surgir como evidente a um grupo importante de cidadãos. Os canais por onde passa a integração dessa (nova) cultura política são, precisamente, os da socialização política tradicional: família, escola, universidade, trabalho, meio religioso, militar, a mídia etc. Nenhum desses vetores procede por doutrinação, mas compõem influências diversas que oferecem ao sujeito as culturas políticas de seu tempo/lugar no mundo.

Pensando o caso brasileiro, especificamente, o historiador Rodrigo Motta (2018) aponta uma série de comportamentos que são arraigados em nossa tradição: o patrimonialismo, a cordialidade, o paternalismo, o autoritarismo, o clientelismo, o pragmatismo, a frágil cidadania e o pouco envolvimento da população com a coisa pública – herança direta da exclusão originada na escravidão e na barreira que por um século fechou a cidadania aos analfabetos. Entre tantos, dois despontam como aspectos básicos para identificar as culturas políticas brasileiras: conciliação/acomodação e personalismo.

O personalismo está fundado no predomínio dos laços pessoais em prejuízo de relações impessoais. Os brasileiros tendem a privilegiar a fidelidade aos vínculos de parentesco, de amizade, de compadrio ou de patronagem ao invés de normas universais. A identificação política se dá com pessoas e não com projetos políticos. Vem daí a sequência de grandes líderes carismáticos em nossa história republicana. Mas também ajuda a entender a facilidade com que mentiras como “kit gay”, “mamadeira de piroca” e “ideologia de gênero” se disseminaram durante as eleições de 2018. A credibilidade do conteúdo virtual enviado pela tia, pelo primo, pelo amigo era muito mais potente do que qualquer propaganda política que buscasse desmentir a (des)informação.

Por sua vez, a conciliação/acomodação trata das relações e dos conflitos entre as raças, os gêneros e as classes sociais como um fenômeno ligado ao processo de dominação. É uma estratégia de caráter assimétrico que necessariamente implica o envolvimento da massa popular. É um jogo de concessões mútuas. Os grupos dominantes procuram construir estruturas de poder estáveis que evitem rupturas revolucionárias mediante arranjos nem sempre explícitos. Este esquema acomoda conflitos e tensões no Brasil desde o século XIX.

Há vários episódios da nossa história que retratam a predominância da acomodação/conciliação no arranjo político: a Independência do Brasil (1822) – evitou rupturas sociais como o fim da escravidão; a manutenção da unidade territorial – conquistada mediante acordos e violência contra os revoltosos; acordo partidário do Segundo Império; a criação da República (1889); Era Vargas – que inseriu parte da esquerda no aparelho do Estado e promoveu uma legislação social para afastar o radicalismo; o fim da Ditadura Militar (1964-1988) – que jamais puniu os agentes da repressão.

A frágil adesão popular aos partidos e ao debate de ideias políticas, os baixos índices de participação política dos cidadãos, a frequente falta de confiança em ações políticas coletivas, a costumeira desconfiança em relação às instituições políticas, o apego às lideranças carismáticas, o apreço por políticas gradualistas e a aversão a soluções radicais são alguns fatores que favorecem a solução política “pelo alto”. Se por um lado a acomodação reduz a violência política – não a violência social – e mantém a unidade de um país marcado por grande diversidade, por outro dificulta a superação efetiva do legado da escravidão.

Se você teve fôlego para chegar até aqui depois desse mergulho teórico, respira um pouco para ajudar a assimilar que as culturas políticas não se desfazem do dia para a noite. A concilição/acomodação e personalismo são características que atrasam o desenvolvimento da luta popular, mas também são fatores determinantes para a política brasileira. Eu não gosto, pode ser que você lendo também não goste, mas negar isso é, no mínimo, um comportamento anticientífico. E o Lula, ligeiro, sabe disso. Então se reúne com lideranças políticas, representantes da burguesia e da oligarquia ao mesmo tempo em que apresenta um projeto antiimperialista (sustentado pelo fortalecimento dos BRICS, da América Latina e de uma geopolítica multipolar) para viabilizar a proposta de inclusão social com participação popular e soberania nacional para o Brasil. João Goulart, em 1964, foi o último presidente que defendeu pautas semelhantes.

A novidade em 2022 é que esta desponta para ser (até aqui) a primeira eleição da Nova República em que não estará em jogo o antipetismo (filho bastardo do anticomunismo), mas o antibolsonarismo – basta ver a alta rejeição a Bolsonaro nas pesquisas eleitorais. Em primeiro lugar na corrida presidencial, Lula é o antibolsonarismo que traz à mesa da burguesia (sem opção eleitoral na terceira via) a possibilidade de conciliação/acomodação num país em crise e que possui todas as condições para entrar em convulsão social a qualquer momento. Bolsonaro sabe disso, por isso prega golpe a torto e a direito.

Apesar de buscar a acomodação, trazendo o ex-tucano/ex-neoliberal Geraldo Alckmin (PSB) para a linha sucessória, Lula está apoiado pela aliança PT-PSOL-PCdoB-REDE-PV-PSB-SOLIDARIEDADE que vai da esquerda ao centro, mas não chega a alcançar os partidos da direita tradicional que compõem o fisiológico “centrão”, ainda cooptado pelo orçamento secreto e a caneta delirante do deputado Arthur Lira (PP-AL). A juventude brasileira, engajada em números recordes para a emissão do título eleitoral, mostra que há uma mudança em curso a respeito da tradição de “baixo índice de participação política”. Os movimentos sociais e de base projetam novas lideranças que trazem para o debate a necessidade de rupturas drásticas com práticas autoritárias e excludentes. São os filhos conscientes das políticas públicas petistas. Quiçá, novas culturas políticas em formação.

O lançamento da pré-candidatura Lula-Alckmin, em 7 de maio, foi marcada pelo clima de festa com um discurso de harmonia institucional, soberania nacional e bem-estar social. Promessas de lealdade mútua foram celebradas entre ambos com a sugestão culinária de “Lula com chuchu”: um prato cheio das nossas mais tradicionais culturas políticas. Para estar à altura, Geraldo de Pinda (o ressuscitado político após três anos falecido) tem se mostrado um “chuchu picante”: mil críticas ao governo Bolsonaro – deve estar experimentando para ver se engolimos ele (risos).

O essencial, de agora em diante, é saber que nenhuma conciliação/acomodação beneficia os trabalhadores sem a construção de mobilização nas ruas. É preciso fazer muito mais do que o fiasco do 1º de maio para garantir que as pautas defendidas por Lula não se tornem promessas de palanque eleitoral. Desde já e durante o governo, a militância deve estar nos bairros, nas ruas e conversar com as pessoas; os partidos, sindicatos e organizações precisam disponibilizar transporte e pensar no bem-estar dos presentes durante as manifestações. Agitação, propaganda e mobilização sem medo de investir recursos. Lula lá, com dignidade, o Brasil merece!

O terceiro mandato de Lula tem tudo para tornar-se um governo de transição. Como todo esquema de conciliação/acomodação, as mudanças serão lentas, graduais e limitadas. Não devemos esperar a  resolução imediata de problemas estruturais, como a reforma agrária, por exemplo. O importante é compreender que o ano de 2023, com a vitória de Lula, poderá ser o início de uma nova etapa da nossa história republicana. A conscientização das massas e a conquista de corações e mentes tem de apontar para a construção de uma Assembleia Nacional Constituinte livre, soberana, exclusiva e com ampla participação do povo em suas definições: a porta de entrada para a República que deverá encher de cidadania e soberania popular a nossa frágil e violada democracia.

*Carla Teixeira é doutoranda em história na UFMG.

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