Ainda a lista da Fuvest

"Fragmentos de um Livro dos Mortos", acervo do MET/ Nova York, c. 1390–1353 AC?
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Por MARIA ALICE MONUTTI & RICARDO KOBAYASKI*

Em tempos em que a opinião se torna a estrutura principal do pensamento dominante, qualquer um fica à vontade para afirmar qualquer bobagem sobre assuntos que desconhece.

“A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo em comum”
(Hannah Arendt, “A crise na educação”)

1.

Em diálogo com uma carta de professores e críticos literários contra o critério de seleção de obras literárias do vestibular da Universidade de São Paulo, Maria Arminda do Nascimento Arruda, Aluísio Cotrim Segurado e Gustavo F. de Campos Monaco, membros do conselho curador da Fuvest, publicaram num jornal impresso o artigo “A Fuvest e a marginalidade das escritoras”. De lá para cá, a pobreza de seus argumentos – bem detalhada por Paulo Franchetti em texto divulgado no site A Terra é Redonda – abriu a porteira para outros artigos que lhe seguiram, tão carentes quanto de reflexão sobre o assunto.

Os três burocratas da USP rejeitaram a compreensão de que seu critério de escolha das obras exigidas no vestibular de 2026 a 2029 enfraqueceu o lugar da literatura. Contra essa crítica, alegaram que outras questões da prova recorrem a livros ficcionais que não são obrigatórios. Essa declaração ignora o papel formativo da literatura, o funcionamento de seu ensino em sala de aula, reafirmando o caráter instrumental que lhe destinam.

A resolução de uma questão de história envolvendo algum trecho de uma narrativa de Clarice Lispector, por exemplo, prescinde do conhecimento da obra na qual ele se insere e do conjunto da produção da escritora. O vestibulando prende-se somente ao excerto escolhido. Nenhum professor ministrará aulas sobre diferentes obras, movido somente pela possibilidade de que elas estarão, quem sabe, presentes como ilustração em alguma questão da prova. A tendência entre os jovens de lerem apenas o que é obrigatório converge para os métodos de preparação para o vestibular, baseados numa pedagogia instrumental.

A composição do material didático do ensino médio continuará demandando principalmente a leitura da lista de livros obrigatórios. Além disso, despertar o gosto pelas artes não se faz só por imposição, mas por meio de um trabalho pedagógico organizado por docentes bem preparados e remunerados, e tempo disponível para a preparação das aulas, longe das apostilas voltadas para o vestibular. Infelizmente, o sistema de ensino brasileiro está longe disso, principalmente onde é mais necessário, nas escolas públicas.

Os membros do conselho da Fuvest asseguram em seu texto que, ao elegerem um critério extraliterário de seleção dos livros, seu compromisso foi induzir o ensino médio a absorver “pesquisas mais avançadas”. Se assim foi, arrombaram uma porta aberta, já que, independentemente dessa ação e antes dela, a pesquisa seja de obras consagradas, ou daquelas de caráter feminista, antirracista, LGBTQIAPN+ e indígena já estava presente nas universidades públicas e nas aulas do ensino médio.

A afirmação de Arruda, Segurado e Monaco segundo a qual a participação em sua lista de livros “confere prestígio aos autores, às casas editoriais e é componente da construção do cânone literário” transparece mais que um desejo de onipotência. Demonstra a crença de que sua orientação ao mercado editorial possui a capacidade de construir novos cânones, numa confusão entre estes e os catálogos das editoras.

Não é segredo, no entanto, que livros facilmente encontráveis no mercado por conta de constantes reedições e reimpressões, muitos acessíveis na internet, diminuem as taxas de lucro. Com a lista da Fuvest, as grandes editoras reforçarão sua liderança na venda de algumas obras, no pronto investimento em novos paradidáticos ou na aquisição dos direitos autorais de livros que ainda não caíram em domínio público, como alertou o artigo de Paulo Franchetti.

Em outra argumentação que atende às expectativas neoliberais de apagamento da história, os membros do comitê da Fuvest se referem à observação da carta de professores e críticos literários, publicada no site A Terra é Redonda, a respeito da retirada de sua lista, por quatro anos, da produção letrada do Brasil colônia. Em resposta a esse questionamento, reafirmam altissonantemente a intenção de privilegiar obras que tratam de assuntos mais atuais. Para eles, a finalidade daquela retirada seria “trazer para o debate a riqueza da literatura contemporânea” como se isso exigisse a exclusão de uma riqueza diversa.

Nesse ponto, é bom reiterar aos leitores sem tempo ou com preguiça para folhear a carta com atenção: não se contestam novas obras e vertentes estéticas da lista, tampouco que ela traga livros escritos por mulheres. O documento questionando a Fuvest coloca em debate o apagamento de obras fundamentais da literatura brasileira que, por conta do miserável sistema de ensino e por não serem exigência do vestibular, não serão lidas por uma geração de estudantes. Quem conhece uma sala de aula do ensino médio, em especial da rede pública, sabe dos obstáculos que interditam o direito constitucional, negado a esses jovens, de receberem uma educação ao menos razoável, em que eles possam ter contato com obras dos diferentes tempos da literatura do país e com diversas formas de expressão artística.

Arruda, Segurado e Monaco apostam que já está em curso uma transformação do cânone, “que se refere à evolução e expansão dos critérios usados para determinar quais obras literárias são consideradas essenciais”. Com essa afirmação nada pueril, eles se colocam como arautos do progresso, daquela mesma ideologia que sustentou a violência contra os povos indígenas, afrodescendentes e mulheres sob a falácia de que são tipos humanos “inferiores”. Assim repetem o anseio por “revoluções pelo alto”, na ilusão de que a destruição de tudo é sinônimo de avanço, modernidade e transformação. “Um evolucionismo pobre e enganador domina nossa concepção de mudança” (Jessé de Souza Martins, As Duas Mortes de Júlia Lopes).

O processo de construção de um cânone, no entanto, dura em média mais de meio século. Resulta de um projeto coletivo que envolve diferentes gerações de críticos, professores e escritores que colocam as novas obras em diálogo com as consagradas, formando um sistema. Antes do movimento romântico, que se bateu contra a tradição retórica e poética em curso havia séculos, Shakespeare não era considerado bom escritor. Seu reposicionamento no cânone europeu não implicou, no entanto, o descarte de escritores então tidos como modelares, mas a sua valorização ao lado dos outros autores.

Morreram a instituição retórica e o movimento romântico, mas esse conjunto de literatos, inclusive aqueles então chamados de “modernos”, participa lado a lado do pecúlio de boa parte das letras ocidentais. Mas no ensino médio de São Paulo concebido pela Fuvest, uma parcela significativa da tradição deve desaparecer por três ou quatro anos.

Os três professores encerram seu texto com uma citação de Nísia Floresta: “Por mais rigorosas que tenham sido as instituições dos povos, concernentes à exclusão absoluta da mulher de toda a espécie de governo público, quem há aí que ignore ter ela uma maior influência nas ações dos homens, e por conseguinte nos destinos dos povos?”. Retirando a frase contrária às práticas hipermisóginas de seu tempo histórico e de sua finalidade pedagógica, os gestores da Fuvest universalizam e exaltam como função da mulher governar às escondidas o patriarcado.

Tudo se passa, nessa óptica, como se ninguém antes do comitê gestor da Fuvest tivesse noção dessa norma burguesa, como se esse debate não estivesse sendo feito há tempos, e de modo crítico, por professores e professoras do ensino médio, fortemente movidos por questões de gênero, raça e classe social.

2.

Em tempos em que a opinião se torna a estrutura principal do pensamento dominante, qualquer um fica à vontade para afirmar qualquer bobagem sobre assuntos que desconhece, sobre a eficácia ou não das vacinas, a eficiência da máquina eletrônica de contagem dos votos, as consequências do efeito estufa, o ponto zero de não retorno da temperatura ambiente etc. etc. etc. São, em geral, palpites que, acumulando chavões taxativos, imbuem-se da paixão de quem se orgulha da própria ignorância.

O artigo “Racionalizações encobridoras”, de Érico Andrade e João Paulo Lima Silva e Filho, publicado no site A Terra é Redonda, constitui um entre tantos exemplos da regressão ao pensamento metafísico pré-kantiano. Organizado como uma recolha de jargões, o traço característico do texto de Andrade & Silva e Filho é a platitude contraditória, como na frase: “longe de ser um critério único, a escolha exclusiva de autoras mulheres pela Fuvest parece ser uma reação a tantas listas anteriores, predominantemente compostas por homens, sobretudo brancos”.

Posta e resposta inúmeras vezes nas redes sociais desde que se iniciou a polêmica sobre a lista de livros do vestibular da USP, essa argumentação despreza a história de produção e circulação dos discursos, pleiteando o “direito” contemporâneo de perpetuar os erros do passado. O principal, no entanto, é que, não se sabe se por ingenuidade ou por má fé, a brilhante frase outorga à Fuvest a função de agente revolucionária contra as desigualdades étnicas e de gêneros.

Outra trivialidade do texto de Andrade & Silva e Filho consiste em dizer que “num país marcado por desigualdades, as escolhas que parecem neutras e acadêmicas revelam-se na verdade influenciadas por um sistema que associa mérito a privilégio”. Do que eles falam aí, qual vínculo traçam entre todas as espécies de desigualdade e a seleção de livros exclusivamente de autoras? Andrade & Silva e Filho realizaram uma análise sociológica das obras selecionadas pela Fuvest, verificando que a grande maioria das autoras não é filha da classe média ou dominante? Ou fizeram um estudo dessas obras baseados no submarxismo, corrente na primeira metade do século XX, que reprovava as produções artísticas dos filhos da elite econômica?

Psicanalistas competentes possuem a capacidade de análise do discurso para ajudar seus pacientes a dominarem a linguagem do inconsciente. Mas num ato discursivo distante dessa tendência, torna-se ridículo o uso da expressão “racionalidade encobridora”. Andrade & Silva e Filho a empregam movidos pela pretensão de traçar uma psicologia vulgar de mais de cem signatários da carta contrária à Fuvest. No fragmento de frase que se segue, esses Quixotes de uma impossível racionalização iluminadora se investem, em mais um ato antipsicanalítico, das pompas do discurso de mestre: “o que está verdadeiramente em jogo…”. Com esse “verdadeiramente”, os dois se acreditam livres da tarefa de realizar uma análise da carta dos professores e críticos literários. Limitam-se a julgar, sem mais, que, ao reivindicarem a pluralidade de critérios para a composição da lista da Fuvest, os signatários da carta teriam, “na verdade”, afirmado uma relação entre o mérito acadêmico e os privilégios sociais.

As razões desse “justiçamento generalizante”, típico do tribunal penal das redes sociais, surgem no reiterado emprego (quatro vezes) do termo “intelectuais” para designar os assinantes da carta contra a Fuvest e no pré-conceito contra a academia. Sem demonstrar inquietação com a parcialidade de seu ponto de vista, Andrade & Silva e Filho se colocam, com essas duas estratégias enunciativas, do lado da metodologia de ensino que defende uma escola anti-intelectual, ressuscitando Olavo de Carvalho.

No conjunto do curto texto dos dois, é hilária a insistência em disseminar banalidades: “o cânone é político”; “os significados da cultura de um grupo não são natureza”; “as escolhas que parecem neutras e acadêmicas…”. Reinventaram a pólvora. Além disso, supõem que só na academia as escolhas são parciais. Alguém precisa dizer-lhes que, desde a queda do Antigo Regime, a discussão sobre a impossibilidade de neutralidade na ciência, na escrita da história, na filosofia, na psicanálise e em todos os campos do conhecimento vem sendo largamente discutida.

Na literatura, fundamentou a criação de Madame Bovary (1856), levou Machado de Assis a inventar narradores inesperados e acumulou incontáveis títulos que ocupam uma biblioteca inteira. Mas a disponibilidade para consultá-los só será possível mediante a libertação das formas do “pensamento” heterônomo, típicas da escola “sem” partido.

3.

Esses dois articulistas não estão sós em seu papo de botequim. Uma crítica literária comentou, em sua página nas redes sociais, uma sugestão publicada num artigo de um jornal carioca. Para ela, a discussão sobre o valor estético de uma obra desconsidera as desigualdades sociais no meio literário e o valor da venda de milhares de livros para os candidatos ao vestibular. Num borboletear mágico sobre categorias de linhagens discursivas incompatíveis, essa estudiosa, favorável à lista da Fuvest, conseguiu reunir ecleticamente resíduos das reflexões marxistas sobre a luta de classes e a defesa de uma reserva de mercado para as escritoras. Nessa óptica, se esse objetivo último for conquistado, tudo bem que se mantenham os conflitos sociais, étnicos e de gêneros.

O festival de bobagens que rege boa parte dos argumentos favoráveis à lista da Fuvest tem sido acompanhado, em alguns casos, da cultura do cancelamento determinando que “quem não está a meu favor, só pode estar contra mim”. Esse debate sectário dissocia a batalha contra a exploração dos trabalhadores, pelos donos dos meios de produção, da luta contra o racismo e em favor da igualdade de gêneros, poupando de crítica o atual sistema econômico de dominação de todos e todas.

Em um artigo publicado no portal de um jornal paulistano, um argumento contrário à carta de professores e críticos literários alcançou um grau acentuado de indigência ética e intelectual. Nele, o colunista sustenta que a lista de livros da Fuvest teria sido uma consequência natural das políticas de “ações afirmativas” dos governos do PT. A hipótese deslocou a responsabilidade dessa fundação para o vestibular – instância, vale lembrar, do poder executivo tucano e republicano de São Paulo – para os governos federais. Além disso, apagou a origem dos ativismos por reconhecimento e afirmação de direitos nos EUA dos anos 1960, tornando-os produto brasileiro. Puxando um naco da farinha polêmica para seu pirão de estudos decolonialistas, decreta que é proibido pensar. Para ele, quem critica a Fuvest, ameaça, “atende a uma lógica de exclusão colonialista”.

Distorcendo argumentos e interpretando a sua própria distorção, o colunista apressado compreendeu que os assinantes daquela carta teriam considerado permanente a exclusão da autoria masculina, o que significaria partilhar do pensamento colonialista segundo o qual, “para que um exista, o outro precisa desaparecer”. Essa formulação distanciou o critério da lista da Fuvest e o sistema capitalista de sua prática exclusivista, transferindo-a para quem deles discorda.

Nenhum dos textos aqui comentados explorou um questionamento decisivo da carta de professores e críticos literários: o de que, seja quando orienta uma pauta contemporânea na leitura de obras do passado que não a previram, seja por excluir livros que considera “antigos”, ou selecionar um título de objetivo extraliterário, a Fuvest demonstra desapreço pela ficção e sua historicidade.

Se a ausência, em sua lista, de Antônio Vieira, Mariana Alcoforado, Cláudio Manuel da Costa, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa não levará à sua morte no campo letrado, os eliminará do processo de formação de toda uma geração de alunos do ensino médio. A exclusão de autores fundamentais da literatura, das artes e da história do país fará com que esses estudantes percam a oportunidade de conhecer uma parcela dessa história.

*Maria Alice Monutti é formada em Letras e professora de Literatura na rede privada de ensino.

*Ricardo Kobayaski, coordenador do site A Terra é Redonda, ativista de direitos humanos, professor de língua portuguesa, literatura e redação, deu aulas na rede pública para o ensino médio e em cursos pré-vestibulares.


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