Alternativas ao fascismo neoliberal

Imagem: ColeraAlegria
image_pdf

Por JORGE BRANCO*

Os movimentos de contestação ao neofascismo e ao neoliberalismo, ainda que derrotados episodicamente, se tornaram referência para uma disposição de construir um movimento de contra fluxo

Em 4 de setembro de 2020 registrou-se os 50 anos da vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais do Chile de 1970. Esta vitória foi confirmada, em segundo turno, no dia 24 de outubro do mesmo ano. Pela primeira vez na América Latina, um candidato e um programa de esquerda foram eleitos pelo voto da população. Esse processo somente viria a se repetir no Continente décadas depois, já no século XXI, com as vitórias de alguns candidatos populares e progressistas como Lula em 2002.

Três anos depois da eleição, em 11 de setembro de 1973, um golpe liderado por um facínora e corrupto derrubou o governo da Unidade Popular e assassinou Salvador Allende em plena sede do governo, o Palácio La Moneda.

Passados estas cinco décadas o protagonista do golpe, General Augusto Pinochet, tem sua memória guardada dentro de um saco preto no mundo da memória conhecido como a “lata de lixo da história”, muito bem sistematizada e representada por Roberto Schwarz. Nesta lata, a memória de Pinochet habita perpetuamente com as memórias sobre outros genocidas, torturadores, corruptos e facínoras.

Ao contrário, Allende, morto como indivíduo, vive como símbolo da boa esperança na memória das ideias generosas de liberdade, democracia e igualdade. Allende, ao ser assassinado por ordem de Pinochet, assim como sentenciou sobre si Getúlio Vargas em sua “Carta Testamento”, deixou a vida para entrar na história. Pinochet e os seus não imaginavam que aquelas bombas em La Moneda, naquele 1973, retiraram Allende da vida para colocar-lhe na história.

Esse é um dilema que persegue a humanidade, em especial a humanidade moderna. Um dilema que abstratamente parece simples de dissolver, mas que nas relações duras da economia, da guerra, da ética, da política e das utopias demonstra-se complexo e tortuoso. Tão tortuoso que, em não raros casos, as elites abdicam do caminho virtuoso do progresso civilizatório para escolherem o caminho da imposição da segregação, da exploração, da violência, da hierarquia e da desigualdade. Foi assim, neste processo político, que se fizeram o nazifascismo na Europa, o colonialismo sobre a África, as ditaduras sobre a América Latina.

O Brasil está imerso nesse dilema desde a ascensão do reacionarismo que levou à vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Esta vitória organizou o bloco reacionário que restaurou uma política de segregação racial, de exploração do trabalho, do ódio como conteúdo. Uma simbiose entre o neoliberalismo radicalizado e autoritário com um neofascismo restaurador do atraso.

Esta emergência da extrema direita e do neoliberalismo não se fez sem contestação, porém. A vitória de Bolsonaro nas eleições deu sobrevida à hierarquia do Século XX no Brasil mas a defesa de um país democrático existe, se organiza, resiste.

Todos esses movimentos de contestação ao neofascismo e ao neoliberalismo, ainda que derrotados episodicamente, se tornaram referência para uma disposição de construir um movimento de contra fluxo. O movimento contra o golpe do impeachment de Dilma, o “ele não” – movimento das mulheres de contestação a Bolsonaro durante as eleições -, o desmascaramento da armação realizada pela “Lava Jato”; se pareceram ser murros em ponta de faca em algum momento, hoje se mostram episódios de um processo maior e continuado de construção possível de um reviravolta no país.

Estas eleições municipais começam a dar indícios que poderão se tornar mais um episódio deste tortuoso dilema. Se apresentarão as candidaturas ancoradas no bolsonarismo e, com eles, a defesa dos valores mais autoritários e reacionários que não poderíamos imaginar estivessem vivos neste século, como a discriminação racial, a coisificação da mulher, a hiper exploração do trabalhador, a desdemocratização e a guerra de todos contra todos em um individualismo radicalizado onde o vitorioso já está estabelecido, os muito ricos do capital rentista. De outro, começam a se erguer candidaturas antifascistas e antineoliberais com força e respondendo às melhores conquistas realizadas neste país desde a derrota do Regime Autoritário de 1964.

O dilema está posto portanto. Como expressão da dominação e da hegemonia neoliberal, grandes parcelas dos trabalhadores pobres do país ainda são a base de sustentação das explicações conservadores e retrógradas, negacionista, anti-iluminista. A constância e a existência de alternativas, entretanto, pode fazer erodir esta sustentação.

As candidaturas de esquerda, democráticas e civilizatórias, que se apresentam em especial nas capitais tem um grande papel a cumprir. Estas alternativas permitirão contrapor projetos, entre o passado e o futuro. Entre a afirmação da sociedade hierarquizada e autoritária e o ideário igualitarista.

A contestação social demonstra que o axioma neoliberal do fim da história não passa de desejo, de propaganda ideológica. A história está em curso. Alguns de seus protagonistas estarão ao lado de Allende, outros no mesmo lugar de Pinochet.

*Jorge Branco é doutorando em Ciência Política pela UFRGS.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES