Artista como pessoa comum

Marco Buti, atacamachaça 80, gravura em metal, 2021
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Por MARCO BUTI*

Arte sozinha não “salva” ninguém, mas talvez atraia muitos outros saberes, que poderiam continuar desconhecidos

Artista, segundo Paul Klee, ocupa a posição de caule, intermediária entre raízes e copa.[1] É pouco comum alguma modéstia, pelo menos a partir do Renascimento, com a orgulhosa separação entre artesanato e arte. Artista deixava de ser pessoa comum. Enquanto o artesanato ia sendo menos acentuado, artista assumia outras atividades prosaicas, como professor. Se outras pessoas comuns, personagens do sistema das artes – curador, crítico, teórica, historiador, gestora cultural, colecionador,vendedora, leiloeiro, patrocinadora, assistente – despertassem o mesmo esforço interpretativo aplicado à criação artística, teríamos um quadro mais completo desse pequeno mundo.

Pode-se julgar com mais objetividade o artesanal, no resultado concreto das ações inteligentes sobre a matéria. A possível avaliação é mais direta, quando a finalidade é realizar um objeto. Ao ter como finalidade das ações com a matéria não o objeto, mas os sentidos que este pode emitir, o terreno torna-se escorregadio, e só um julgamento mais duvidoso é possível. Aproximando-se da poesia, toda técnica e material torna-se grosseiro.

É um equívoco frequente conceber a “Arte” a partir da experiencia pessoal. Mas arte é tão indefinível que, com alguma honestidade, pode-se ter quando muito esperanças de ser artista, sem recorrer à chancela oficial. Estabelecer distancias artificiais convém para tornar a arte menos pública, mais controlável, mais dependente. Um direito passa a ser oferecido como “salvação”, de maneira assistencialista. O modelo de artista em vigor, com nome próprio em destaque, ainda atende o meio profissional, e torna os coletivos inovadores.

1.

Uma expressão representativa da contemporaneidade é considerar uma pessoa “do bem” ou “do mal”. Embora contestado em alguns campos, o pensamento binário continua em pleno vigor. Não ajuda a compreender que o mesmo ser capaz de baixas ações possa realizar arte de alto nível. É parte do achatamento mental instaurado, notadamente a partir do final da década de 1970. A complexidade de qualquer ser humano não se prestaria aos slogans. Mas aceitamos ser convertidos apenas em consumidores, contribuintes, usuárias: pontos na curva. Só artista cria. Com alguma pesquisa, não é tão difícil rastrear uma mesquinhez, o ato falho – desviando o olhar da obra maiúscula, o que realmente interessaria, justificando as tentativas biográficas e de contextualização.

2.

Excesso de autoestima, atitudes aristocráticas e blasé, vaidade, desprezo, arrogância, narcisismo, exibicionismo, autopromoção, encontrados também no meio artístico, longe de destacar alguém extraordinário da massa, apenas confirmam o ser humano comum.

Gostamos de imaginar artistas como loucos, transgressoras, sérios, coerentes, revolucionárias, conservadores, arrebatados, melancólicas, oportunistas, vendidos, intelectuais, caóticos, lógicas, mártires, malditas, ídolos, modelos, contidos, inspiradas, racionais, sutis, éticos, visionárias, angustiados, serenos, narcisistas, modestas, arrogantes, generosas, bajuladores, impávidas, heróis, seres livres. Exceto pessoas comuns, que poderiam ser tudo isso, em proporções, tempos e dominâncias mutáveis, sucessiva ou simultaneamente. Imprevisíveis, complexas.

É possível a decepção ao conhecer artistas reais, tendo a obra como imagem do ser. A correspondência artista/obra é raríssima. Dependendo de como se concebe e pratica, arte pode ser de nível espantosamente baixo.

3.

O usual é a necessidade de regras, também para artistas, tanto para serem respeitadas quanto transgredidas, com o mesmo objetivo de estar presente no meio das belas artes, em suas versões mutantes, adequando-se aos interesses do presente, reduzindo a arte a fórmulas renováveis. A recusa, pela discordância com os padrões instituídos, é menos praticada que a esperada transgressão.

Elevando artista a “ser criador”, cria-se uma ficção separando das pessoas comuns, que não tem mais acesso a tal figura próxima aos poderes. Para a grande maioria, que mantém uma relação marginal com a arte, o contato tende a ser dirigido pela fama. Que projeta uma imagem pública e interessada, afastada do convívio com as pessoas comuns, na posição subserviente de admirador, “fã”.

Mas a ficção só vale para quem é tornada estrela; 99% não tem notoriedade, ou notoriedade local, regional, como quem se dedica também ao ensino de arte. Aí, artista pode sentar no boteco e nos acompanhar numa cerveja. Sua condição genérica é gastar, com a necessidade de arte, uma porcentagem dos ganhos de outra fonte de renda, ou ter uma vida mais modesta que os desejos correntes, ao contrário da imagem de riqueza sem sentido associada às imagens públicas.

O pedestal para artista é mais resiliente que o da escultura, mas o destino geral é o esquecimento.

4.

O talento existe, mas não é o que o senso comum tende a imaginar – algum tipo de onipotência, facilidade ilimitada, domínio inato. Prefiro pensar, primeiramente, na incapacidade ou intolerância de fazer qualquer outra coisa. Segundo, arriscar a escolha da coisa que talvez se consiga fazer, talvez dando algum sentido à vida, sem tornar o utilitário dominante. Depois, a exploração inteligente destes limites. Mas esta opção central é extremamente minoritária.

Para a maioria mantendo relações marginais com a arte, parecem coisas fora de alcance, ou pouco compreensíveis; portanto, admiráveis. Como, para artistas, o conhecimento fundamental de outras profissões pode ser a incapacidade maior. A manipulável admiração dá aura “heroica” a artistas, seres capazes do impossível, embora realizado. Mas o espanto deveria ser pela ordinária existência degradada – oferecida, imposta, aceita, desejada, buscada, quantificada.

5.

Arte é de difícil definição, não se sabe muito bem o que seja. Uma atividade esquisita, praticada por pessoas comuns, mas que colocam no centro de suas vidas o que não deveria ser prioridade, ocupação relegada ao “lazer”, como “entretenimento”, estando resolvidas as exigências inadiáveis para uma existência digna. Conceber a arte como conhecimento, e relação fundamental com o mundo, isso é o incomum. Essas pessoas são pouco numerosas, e tendem a ser vistas como esquisitas por quem, devido a escolha ou obrigação, tem prioridades mais utilitárias. É extremamente difícil, quase impossível, explicar que para artistas, mesmo compartilhando as mesmas necessidades, o utilitário não seja o único alimento essencial, e a útil, mas duvidosíssima arte mantenha a primazia. Quando o reconhecimento, outorgado por muito poucos, possibilita a artistas realizações impressionantes e visibilidade, parece a posse de qualidades raras permitindo o inalcançável.

Artista viva e morto ficam igualmente distantes. Com tal ser é difícil conseguir proximidade, tende-se a supor partindo do trabalho, mistificar e mitificar. Parece alguém absolutamente criativo, com liberdade irrestrita, continuamente no palco, sem se conhecer a rede em que opera. Artista sem fama, ao nosso lado, pode ser tida apenas como dissonância. Não é tão fácil reconhecer quando os modelos dominantes têm de fato grandeza independente do verniz, nem a grandeza no anonimato. Ver o que realmente é, seja artesanato, indústria, ação, conceito, choque sensorial, espetáculo, impressão esmagadora, sussurro.

6.

Não creio haver algo comum que caracterize artistas. Penso que a opção pela arte vem de uma incapacidade, aversão, repulsa pelas atividades mais difundidas. Pode ser um encontro com uma capacidade imprevista. Mas considerando essa atividade ainda como formadora do ser humano, é uma maneira de se colocar no mundo, não fora – alguma salvação. De fora fica quem passa a vida em naufrágio, consumindo o tempo apenas utilitariamente, sem ser alimentado pelo conhecimento gerado por seus atos.

Claro que a necessidade de sobrevivência não favorece escolhas, e um número razoável de artistas querem ficar fora, ao adentrar certos círculos a todo custo. Os modelos dominantes de arte circulam pelas relações de poder e seus vernizes, como a pretensa “educação” – trajes, atitudes, desejos, consumos, linguagens. Mas mesmo quem não tem escolha pode fazer e querer proximidade com uma arte sem verniz, circulando fora do circuito mais oficial, entre desconhecidos.

7.

Abismo, drama, salvação, palavras grandiosas usadas para falar de vidas que só conhecemos um pouco pela obra realizada (o que realmente interessa). Arte sozinha não “salva” ninguém – ainda menos a curto prazo, no tempo de uma pandemia – mas talvez atraia muitos outros saberes, que poderiam continuar desconhecidos, ao longo das vidas paralelas, que arriscam não se encontrar nunca. A boia precisa de muitos outros conhecimentos, construídos no percurso do tempo. Nada basta.[2]

*Marco Buti é professor titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Notas


[1] KLEE, Paul. On modern art. Londres, Faber and Faber Limited, 1948.

[2] O texto chegou até este ponto graças a uma indagação de Mariana Leme sobre as propostas de salvação pela arte, circulando durante a pandemia de Covid 19.

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