Por VALERIO ARCARY*
Trump é um perigo bonapartista para o regime democrático-liberal nos EUA?
“Dobrado é o perigo de quem foge ao inimigo. A prudência nunca erra. Quanto mais te agachas, mais te põem o pé em cima” (Sabedoria popular portuguesa).
A esquerda brasileira discutiu com paixão nos últimos dias o que cada um de nós faria, se estivéssemos nos EUA. Em quem votaríamos? Não se trata de um dilema simples. A questão central para a compreensão da intensidade excepcional da disputa eleitoral de 2020 nas eleições norte-americana é saber se a liderança de Trump no partido republicano indica que uma fração da burguesia imperialista chegou à conclusão que é necessário um giro bonapartista no regime democrático-liberal.
Parece incontroverso que a estratégia de Trump, desde a vitória eleitoral em 2016, foi defender um reposicionamento dos EUA para garantir a defesa de sua supremacia no sistema internacional de Estados, diante do fortalecimento da China.
Mas parece, também, incontroverso que esse giro na política externa vem associado a um agigantamento do papel da presidência na política interna, endurecimento do regime, radicalização da pequena-burguesia proprietária, e manifestações públicas de grupos neofascistas. As ameaças às liberdades democráticas mudaram de patamar com a mobilização do aparelho de repressão, sobretudo, depois das mobilizações de massas do Black Lives Matter.
Se esse perigo bonapartista com Trump é real, a melhor tática eleitoral para a esquerda marxista seria o voto em Biden, mesmo sendo o candidato de um partido do imperialismo. Mas se esse perigo não é real, mas somente uma retórica demagógica, o voto seria um erro. Por isso, a difícil decisão tática é de quem está no terreno.
Na tradição marxista as candidaturas são julgadas pelo seu caráter de classe. Os critérios para avaliar que interesses de classe um partido defende são variados. Mas esta caracterização é essencial. Partidos e líderes podem contrariar, conjunturalmente, as opiniões da classe ou fração de classe que representam. Trata-se de luta política. Quando acontece, e isso não é tão excepcional, a disputa interna assume formas mais intensas.
Mas partidos não são estão, socialmente, em disputa. Partidos burgueses não deixam de ser partidos burgueses, mesmo quando estão convulsionados, politicamente, pela luta interna. Sua função é defender o sistema capitalista. Socialistas defendem a necessidade da organização política independente dos trabalhadores. Mas a defesa de um instrumento de luta independente é uma estratégia. No terreno da tática eleitoral há espaço para muitas mediações.
Os dois partidos da classe dominante norte-americana são burgueses. Mas não devemos ser indiferentes às diferenças entre eles, se o que está em disputa é algo tão grave como uma ameaça às liberdades democráticas. A esquerda socialista deve defender a forma superior do regime democrático-liberal contra a forma inferior bonapartista autoritária.
O problema esteve colocado no Brasil, de forma incontornável, durante a ditadura militar, porque havia eleições, mas somente dois partidos podiam se apresentar. A esquerda devia fazer campanha e chamar ao voto no MDB, ou abster-se e defender o voto nulo? Estavam certos os que defenderam que era correto fazer campanha contra as candidaturas da Arena. Estavam certos, também, aqueles que defendiam o uso da legenda do MDB para a apresentação de candidaturas operárias e socialistas.
Foi com esta compreensão que estive na campanha que conseguiu a eleição do presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André, Benedito Marcílio, para deputado federal. Foi nessa campanha que Aurélio Peres, metalúrgico de São Paulo, foi eleito pelo PCdB. Creio que fizemos bem. Por isso, é compreensível que candidaturas socialistas usem a legenda do partido democrata, e procurem se organizar através do DSA, como acumulação de forças no sentido da construção de um partido de independência de classe.
O raciocínio que concluí que todos os governos ao serviço do capital são iguais, desconsiderando as mudanças no regime político é enganoso. É ligeiro, superficial, e até leviano. Num grau de abstração muito alto, é, por suposto correto. Mas devemos ser mais rigorosos. A análise deve ser concreta. Churchill e Hitler, Roosevelt e Mussolini, ou Medici e Ulysses, estavam todos ao serviço do capitalismo, mas defenderam regimes de dominação muito diferentes. E a diferença entre os regimes não se resume à oposição entre ditaduras fascistas e democracias eleitorais. As formas intermediárias concretas têm importância, como podemos observar hoje na Índia, Filipinas, e Hungria.
A Segunda Guerra Mundial deixou o alerta. Não foi somente uma luta pela conquista da supremacia no mercado mundial. Foi um combate implacável entre potências imperialistas em torno a dois regimes políticos. De um lado, o regime mais avançado conquistado pela civilização, à exceção do regime da revolução de outubro, a democracia republicana burguesa. E de outro lado, o mais degenerativo, o mais aberrante e regressivo, o nazifacismo. Porque seu projeto político ia muito além do esmagamento da revolução socialista na Alemanha: além da destruição das organizações dos trabalhadores, o Terceiro Reich fascista exigia a escravização de povos inteiros, como os eslavos, e o genocídio de outros, como os judeus e os ciganos, além da repulsiva homofobia, transformada em política de repressão do Estado.
Há muitos e diferentes tipos de regimes, mesmo de regimes de democracia-liberal, com maiores ou menores liberdades. As relações entre si das instituições do Estado podem assumir distintas formas. Graus diferentes de maior ou menor autoritarismo podem prevalecer. Em outras palavras, os elementos de bonapartismo podem ser maiores ou menores, a blindagem do poder pode ser maior ou menor.
O perigo bonapartista representado por Trump não parece ser um blefe. Tem que ser derrotado.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).